quarta-feira, 31 de maio de 2023

Prêmio Alambique

A revista acadêmica Zanzalá divulgou em seu saite a chamada do Prêmio Alambique, concurso literário internacional cujo objetivo é homenagear um livro acadêmico de ficção científica e/ou fantástico do mundo hispânico e luso-brasileiro. 
Os livros inscritos serão avaliados por um juri especializado formado por David Dalton (UNCC), M. Elizabeth Ginway (UFL), Pablo Brescia (USF), Miguel Ángel Fernández Delgado e Juan Carlos Toledano Redondo. Para concorrer, os títulos precisam ser encaminhados por seus autores ou editores aos membros do juri, em forma físca ou eletrônica. 
Esta edição do certame vai avaliar o que foi publicado em 2022. 
Mais informações, aqui

terça-feira, 30 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: A estrela de Iemanjá, Simone Saueressig

A estrela de Iemanjá, Simone Saueressig. Ilustrações de Maurício Veneza. 168 páginas. São Paulo: Cortez, 2009.

A ficção fantástica produzida no Brasil, com honrosas exceções, não privilegia as características nacionais. Não que isso tenha sido sempre assim. Muitos fantasistas brasileiros não sentiram dificuldade em inserir o imaginário nos cenários brasileiros. Mas, no que se refere a fc&f contemporânea feita nos últimos quarenta anos dentro dos muros do fandom, havia a princípio uma grande dificuldade em enxergar a fantasia e a tecnologia no ambiente cotidiano local. Os autores costumeiramente apelavam para ambientes europeus e norte-americanos, aproveitando também para batizar os personagens com nomes associados a cultura anglo-europeia, pois o contrário lhes soava de tal modo deslocado que impedia que fosse levado a sério, o que o escritor Braulio Tavares veio a batizar como "Síndrome do Capitão Barbosa". Em 1986, o escritor-fã Ivan Carlos Regina (O fruto maduro da civilização, GRD, 1993), propôs nas páginas do fanzine Somnium um manifesto de valorização da brasilidade na ficção científica nacional, que ficou conhecido como Movimento Antropofágico da FCB, em referência ao Manifesto Antropofágico da Semana de 1922. Em torno do texto de Regina reagiram inúmeros autores, a favor e contra, e com os passar dos anos as imagens, nomes e culturas brasileiros emergiram em boa parte dos textos realizados pelos fãs, o que felizmente continua acontecendo hoje.
Contudo, muito disso deve-se a um esforço militante de um determinado setor que busca uma identidade para a ficção fantástica brasileira. A maior parte desses autores avançou sobre temas e conceitos que para si próprios não eram naturais. Não vou dizer aqui que isso não não funcionou, porque funcionou sim. Mas o "brasileirismo" vai muito além de ambientes.
Uma das maiores dificuldades dos autores é com os personagens. É muito difícil definir idiossincrasias pessoais sem cair na caricatura e no estereótipo. Na digna tentativa de evitar essa armadilha, os personagens acabam homogenizados, achatados num espaço de pouca manobrabilidade, que é ainda mais engessada nas mãos de autores menos experientes.
Então, para demarcar bem seus personagens, os autores costumam lançar mão dos arquétipos. Funciona, do ponto de vista dramático, mas os personagens ficam distantes do leitor, tão irreais como os personagens mitológicos.
Ainda há muita dificuldade em modular personagens e, entre os mais evitados, estão os personagens pretros. Isso porque a ampla maioria dos autores brasileiros que se exercita na fc&f são brancos. Não passaram e nunca passarão pelas dificuldades de ser uma pewssoa preta num país que aboliu a escravidão há pouco mais de um século. Talvez haja um certo mal estar entre esta legião de escritores brancos em se colocar no lugar de um preto brasileiro, então melhor nem tentar.
Entretanto, há tentativas bem sucedidas mas, de forma geral, os personagens pretos só o são porque o autor decidiu descrevê-los assim. No mais, eles se comportam exatamente como qualquer outro, não há muita da etnia em sua vida. Uma das desculpas recorrentes entre os autores é querer reafirmar a igualdade entre pretos e brancos, que a cor da pele não faz diferença. Mas faz: interfere de maneira importante na psiquê do indivíduo e na forma como ele é tratado na sociedade. Talvez apenas os próprios autores pretos tenham suficiente sensibilidade para construir personagens pretos palpáveis mas, infelizmente, estes são minoria no fandom. Por isso, não é de se surpreender que tenham sido tão poucas as tentativas de usar o panteão africano como base de histórias especulativas. Talvez haja aqui alguma preocupação com o fato desse imaginário ser base de religiões vivas no país, como a umbanda e o candomblé.
Mesmo assim, a corajosa escritora gaúcha Simone Saueressig, autora de A noite da grande magia branca (Cortez, 2006) e A fortaleza de cristal (L&PM, 2006), ousou investir nesse tema em seu romance A estrela de Iemanjá, publicado pela editora paulista Cortez em uma edição ilustrada por Maurício Veneza, com acabamento luxuoso até então  pouco visto nas letras nacionais.
A história, indicada pela editora para aulas de língua portuguesa, geografia e história, conta como três jovens pescadores pretos, Tomás, Cosme e Daniel, inadvertidamente capturam em sua rede a poderosa estrela do mar de Iemanjá, roubada de sua proprietária por Joelho e Benevides, dois salafrários que para isso usaram um submarino. Durante a fuga, a estrela causou problemas na máquina e, morto de medo, Benevides jogou a estrela por uma escotilha, justamente quando a rede dos meninos flutuava por ali. 
Os poderes da estrela provocam uma tempestade furiosa que arremessa os garotos na praia de Aganjú, uma ilha desconhecida que não devia estar ali. Eles ajudam Ubatá, uma garota que está numa importante missão e, para isso, teve de roubar o amuleto de uma raça de seres ferozes. Para voltar para casa, os meninos terão de acompanhar Ubatá para o interior da ilha, em busca de ajuda. Mas eles não imaginam que Joelho e Benevides estão logo atrás deles, pois querem recuperar a estrela, que eles carregam sem saber do que se trata. A ilha de Aganjú esconde um universo maravilhoso, repleto de magia, perigos e mistérios que os meninos terão de superar caso queiram escapar dessa armadilha mortal, que envolve o próprio fim dos tempos para todo o planeta.
Não é a primeira vez que Simone conta uma história com orixás. Em O palácio de Ifê (L&PM, 1989), a autora enveredou pelo tema, numa aventura que também tem contornos juvenis, mas é algo mais dramática.
Simone não evita temas regionalistas e folclóricos, ao contrário, ela os persegue com rara criatividade e poesia. Talvez tenha sido por isso que a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil selecionou A estrela de Iemanjá para representar o Brasil na Feira do Livro Infantil de Bolonha 2010, junto a outros 210 títulos que foram apresentados a editores, escritores, ilustradores e estudiosos do mercado internacional. Foi a primeira vez que a autora de Novo Hamburgo teve um de seus livros selecionados para a mostra.
A simples presença do trabalho de Simone entre os leitores jovens cria uma boa expectativa para as futuras gerações de escritores, que terão nela uma excelente referência criativa. Ainda que muita gente sofra, por convicção, da Síndrome do Capitão Barbosa, está bastante claro que não há nenhuma dificuldade ou facilidade agregada ao texto apenas pelo fato dele fazer uso de imagens e etnias brasileiras. Não é preciso disfarçar a origem cultural para ser "melhor recebido" pelo mainstream, seja no mercado nacional seja no internacional. Faça-se o que quiser, tanto faz. O que conta a qualidade do trabalho realizado e, sem dúvida, isso não falta a Simone.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Lançamento: Nova

A editora Aleph, bastante conhecida por seu catálogo especializado em grandes clássicos da ficção científica, anunciou o lançamento do romance "space opera" Nova, originalmente publicado em 1968, indicado ao Prêmio Hugo e inédito no Brasil, criação do Grande Mestre Samuel R. Delany, premiadíssimo escritor do gênero que, incrivelmente, tem poucos trabalhos de sua vasta obra publicados no Brasil.*
Diz o texto de divlgação: "No século 32, a humanidade expandiu seus domínios para além de seu planeta natal, estabelecendo-se em múltiplos mundos. É nesse contexto que uma velha rivalidade de infância entre o capitão Lorq Von Ray, filho de uma importante família mineradora, e os herdeiros da empresa que controla a estrutura de transportes interplanetária evolui para uma guerra econômica e pessoal entre dois modelos de sociedade. Para vencer essa disputa, o capitão parte em busca de um valioso combustível diretamente de sua fonte: o núcleo de uma nova, explosão estelar capaz de gerar quantidades inimagináveis desse elemento."
O livro tem tradução de Petê Risatti e está em pré-venda aqui, com brindes especiais. 

*O Catálogo de ficção científica e fantasia em língua portuguesa de R. C. Nascimento, relaciona Prisoneiros das chamas (La Selva, 1964), A cidade dos mil sóis (RGE,1967), Metagaláxia (Bruguera, 1971), As torres de Toron (Bruguera, 1972) e A balada de Beta-2 (Tecnoprint, 1977), todos fora de catálogo. Somente em 2019 conheceríamos Babel 17/Estrela imperial, volume com duas novelas do autor, pela Morro Branco.

sábado, 27 de maio de 2023

Lançamento: A última da festa

Futuros apocalípticos são, desde sempre, um tema popular no âmbito da ficção fantástica, e depois do enorme sucesso da série The walking dead, essas histórias estão ficando frequentes também na televisão. 
Tratam-se de aventuras de pessoas solitárias por ambientes perigosos de uma civilização devastada por algum tipo de catástrofe. Histórias de séries recentes como as de The last of us, originalmente um jogo de computador, e Station Eleven, baseado no romance de Emily St. John Mandel, demonstram que o estilo é propício para reflexões profundas sobre a condição humana e o caráter das pessoas. 
É nessa linha que também se instala A última da festa (Last one at the party), romance de estreia da escritora britânica Bethany Clift, publicado originalmente em 2021, que chega ao Brasil pela Editora Jangada, com tradução de Jacqueline Damásio Valpassos.
Diz o texto de divulgação: "Em dezembro de 2023, o mundo como o conhecemos acabou! A raça humana foi exterminada por um vírus chamado 6DM (até seis dias) que indica o máximo de tempo que a pessoa pode durar antes que seu corpo se autodestrua. Mas, de alguma forma, em Londres, uma mulher ainda vive! Ela passou a vida inteira abrindo mão do que queria, tentando desesperadamente se encaixar na sociedade. Uma mulher totalmente despreparada para enfrentar o futuro sozinha. Agora, num mundo apocalíptico e com apenas um golden retriever como companhia, ela precisa viajar por cidades em chamas, desviando de cadáveres em decomposição e ratos vorazes, em uma jornada para descobrir se de fato é a última sobrevivente na Terra. Quem ela se tornará agora que está completamente sozinha?"
O livro tem 392 páginas e já está a venda no site da editora, aqui.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Poe 200 anos

Poe 200 anos: Contos inspirados em Edgar Allan Poe, Maurício Montenegro & Ademir Pascale, orgs. 140 páginas. São Paulo: All Print, 2010.

2009 marcou o duplo centenário do nascimento de Edgar Allan Poe, escritor americano que morreu na miséria, mas cuja obra influenciou toda a literatura moderna e é hoje muito respeitada.
Poe reuniu em si um vórtice criativo do qual emergiram as bases de toda a ficção fantástica, qual seja, a ficção científica, a fantasia e o terror, além do romance de mistério e investigação. Como Poe tem um grande contingente de fãs, isso facilitou o trabalho de Maurício Montenegro e Ademir Pascale em reunir vinte e dois textos de autores de todo o Brasil nesta antologia comemorativa que se pretendia fosse publicada em 2009, mas acabou saindo no ano seguinte.
O conhecido escritor carioca Miguel Carqueija, autor de Farei meu destino (Giz, 2008), assina o prefácio, em que apresenta a vida e a obra de Poe. Ele também participa com um conto, "O quarto caso de Dupim", um texto simples, elegante e divertido no qual o detetive criado por Poe ajuda a polícia francesa a encontrar um empresário americano desaparecido em Paris. Um ótimo contraponto ao clima predominantemente funesto da antologia.
O volume também traz trabalhos dos dois organizadores e de Alex Lopes, Alícia Azevedo, André Catarinacho Boschi, Deborah O'Lins de Barros, Dimitry Usiel, Duda Falcão, Frank Bacurau, Georgette Silen, Gil Piva, Jocir Prandi, Kathia Brienza, Luicana Fátima, M. D. Amado, Mariana Albuquerque, Márson Alquati, O. A. Secatto, Ronaldo Luiz Souza, Roseli Princhatto Arruda Nuzzi e Thiago Félix.
Além do texto de Carqueija, também se destacam os contos comentados a seguir, nos quais os autores encontraram uma forma pessoal de homenagear Poe.
"Relíquia", de Duda Falcão, homenageia o conto "O gato preto", e narra a história de um menino curioso que visita uma espécie de show de aberrações literárias. Metalinguagem realizada com talento e sensibilidade poética, num estilo que lembra mais o estilo de Ray Bradbury – outro grande mestre da ficção fantástica.
"Um homem afortunado", de Kathia Brienza, embarca numa homenagem a "O barril de Amontillado", contando sobre um professor oportunista que progride na profissão às custas de trapaças. Ao ganhar um concurso de monografias acadêmicas roubando o trabalho de seu rival, sente que chegou ao ápice de sua carreira. Mas nem tudo vai ser sempre como ele deseja. Um ótimo trabalho, saboroso e bem realizado.
Mariana Albuquerque é um nome conhecido do fandom, participou de vários fanzines e antologias, e publicou os livros Coração de demônio (Writers)  e O pássaro e o rochedo (Nativa). Ela assina "A máscara de Vênus", um texto curto que homenageia "A máscara da morte rubra", sendo a única ficção científica em todo o volume. Conta o que acontece ao que resta da civilização, refugiada na Antártida depois do fim do mundo. O conto que tem a melhor primeira frase da antologia: "No equador, os oceanos ferviam". Muito inspirador.
"Inferno no circo" é um conto simples e efetivo, dentro do que se pode esperar de uma homenagem a Poe, com a bem mais que emocionante estreia no circo do orangotango de "Os crimes da Rua Morgue". O autor, Jocir Prandi, é gaúcho de Vacaria e participou de várias antologias. Seu primeiro livro é Inspiração à beira do abismo (Evangraf).
"Louco, eu?", de Ademir Pascale, baseia-se no conto "O coração delator" e conta a história de um psicopata que acredita ver demônios e falar com animais. Apesar de previsível, é um trabalho bem redigido e tem um momento brilhante, quando o protagonista dialoga com fantasmas dos autores dos livros que lê.
Fecha a antologia o texto "Memórias póstumas de Edgar Allan Poe", de Roseli Princhatto Arruda Nuzzi, que não é exatamente um conto, mas uma biografia romanceada na qual um Poe desencarnado narra uma série de fatos de sua vida que podem ou não ser verdade, pois a credibilidade foi comprometida pela mistura com ficção.
Os demais trabalhos seguem uma narrativa algo recorrente, centrada na primeira pessoa e imitando, às vezes bem, o estilo de Poe, mas que resulta em histórias previsíveis e de pouco brilho próprio.
O livro é bem editado, com erros mínimos de revisão, e são homenageados vários outros contos do "Poeta Louco". É justamente esse diálogo com a obra maiúscula de Poe que "contamina" a antologia dando-lhe contornos nobres e clássicos.
Para quem conhece o trabalho de Edgar Allan Poe, a leitura de Poe 200 anos é divertida. Contudo, quem não conhece deve ler os textos originais do autor antes de embarcar nesta verdadeira tietagem literária pois, de outro modo, a maior parte da graça será perdida.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Lua negra, Laura Elias

Lua negra, Laura Elias. 190 páginas. Capa: Altair Sampaio. São Paulo: Mythos, 2010.

Lua negra é o segundo volume da série Red kings, sequência de Crepúsculo vermelho, publicado em 2009 pela mesma editora. Mas a leitura deste volume prescinde daquele e o leitor não terá dificuldade em acompanhar a história sem ter lido o primeiro volume, como foi o meu caso.
A protagonista da série é Megan Grey, jovem de dezessete anos de idade que mantém um relacionamento emocionalmente intenso com Bill Stone, líder da banda de sucesso The Red Kings of Dark Paradise e, não por acaso, também um descendente da linhagem dos rovdyr, raça inumana de caçadores de vampiros que sustentam uma guerra secreta com poderosas e tradicionais famílias de sugadores. Envolvida na disputa, Megan foi mortalmente ferida no primeiro romance da série e sobreviveu graças ao sangue de Bill que lhe foi administrado.
A história de Lua negra inicia durante um inverno especialmente severo, que tornou branca a paisagem da pequena cidade de Red Leaves, onde Megan vive com sua família, enquanto Bill está fora em excursão com sua banda. Mas o rigor desse inverno não é natural e sim decorrente do despertar de forças antigas e poderosas. Um exército feroz de monstros do Ártico está marchando para o sul, disposto a aniquilar tudo o que encontrar pelo caminho, e a onda de baixas temperaturas e tempestades violentíssimas é apenas seu cartão de visitas.
O risco de aniquilamento une vampiros e rovdyrs contra o inimigo comum, numa batalha sangrenta nos campos nevados de Red Leaves. Segredos de família, intrigas e fantasmas do passado vão tornar a relação de Megan e Bill uma montanha russa de acontecimentos trágicos, com muita ação e violência. Megan ainda enfrentará o despertar de estranhos poderes herdados do sangue rovdyr de Bill, que ela não entende e nem controla.
Laura Elias tem uma narrativa ágil, fluida e agradável, apesar do tema mórbido. A linha principal da história acompanha o ponto de vista da Megan mas salta, eventualmente, para plots paralelos. Há uma grande quantidade de personagens coadjuvantes orbitando a relação de Megan e Bill, que os mantém quase sempre afastados e levam a impetuosa Megan a meter-se em enrascadas mortais para ficar perto de seu amado.
Nem todos os mistérios apresentados na trama são explicados, uma vez que Lua negra não é uma conclusão e a história deve ter pelo menos mais um volume, provisoriamente intitulado Luz na noite, sem data de publicação definida*.
Laura Elias é fluminense de Barra Mansa, radicada em Santo André, no ABC paulista. Apesar de pouco conhecida, é uma autora experiente, com mais de 35 livros publicados sob diversos psedônimos, tais como Loreley Mackenzie, Sophie H. Jones, Suzy Stone, Laura Brightfield. A maior parte de sua obra é formada por romances populares realistas, mas a autora também navega no fantástico – como nos livros da série Red kings – e no infanto-juvenil, como no livro Tristin Mckey e o mistério do dragão dourado, assinado como Elizabeth Carrol, publicado em 2007 também pela Mythos. Sua produtividade autoral é invejável, e ela afirma com tranquilidade que consegue produzir um romance do porte de Lua negra em poucas semanas, pois esta é uma exigência comum no mercado em que ela atua.
A autora revelou, numa de suas muitas palestras e entrevistas, que o título e os nomes dos personagens de Crepúsculo vermelho foram definidos pelo editor, originalmente eram outros. Isso porque a Mythos não sabia se um romance de horror iria emplacar entre o seu público e Laura nunca havia trabalhado no gênero, embora sempre tivesse gostado dele. Quando Crepúsculo vermelho finalmente foi distribuído, em 2009, tornou-se o seu livro mais vendido, o que lhe deu maior liberdade em Lua negra.
Os livros da coleção Mythos Books seguem o padrão dos romances de banca tradicionais, como os das populares coleções Harlequim, Bianca e Sabrina, com capas envernizadas em papel mole e miolo em papel jornal impresso em rotativa. A produção é modesta, mas caprichada, com boa apresentação e revisão, e um preço ao consumidor bastante acessível.
Laura Elias foi pioneira nos romances fantásticos brasileiros dirigidos às mulheres e distribuídos em banca. Antes dela, tivemos apenas livros de pequeno porte dirigidos aos leitores masculinos, como os da Coleção Mini Bolso, da Editora Opera Graphica, da Coleção Império, publicada pela Editora MC, e da série Pocket Suspense, da Editora Fittipaldi. Contudo, o sucesso deste trabalho da Laura Elias não se confirmou como tendência de mercado, devido aos inúmeros problemas que assolaram a indústria editorial nos anos seguintes, bem como às mudanças radicais do modelo do negócio, se é que ainda podemos chamá-lo assim. Tanto é que a autora desapareceu desse ambiente e há anos não apresenta novos trabalhos. O que é uma grande pena, em todos os sentidos.

* O romance foi publicado em 2013 pela Editora Literata sob o título de A rainha vermelha.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Lançamento: Sem tempo a perder

A editora Goya acaba de anunciar o pré-lançamento de Sem tempo a perder, uma coletânea de artigos publicados no blogue da autora. 
Diz o texto de apresentação: "Por anos, a escritora Ursula K. Le Guin conquistou gerações de leitores com seus mundos imaginários. Durante a última parte de sua vida, a velhice, ela explorou um novo território: ensaios para o público geral, publicados em seu blog. Esses textos estão reunidos aqui e representam a junção perfeita da escrita envolvente e evocativa de suas narrativas ficcionais com temas universais como envelhecimento, família e... amor, seja por seus amigos, seja por seus animais de estimação. Com maestria ímpar e um domínio narrativo sem igual, Le Guin conduz o leitor por seus questionamentos e reflexões sobre como envelhecer muda a percepção que temos do mundo à nossa volta. Sem cair em um monólogo piegas nem em uma glorificação infundada, ela consegue mostrar com clareza os sofrimentos e as grandezas de um período da vida tão pouco explorado na literatura."
Ursula K. Le Guin está entre as mais premiadas escritoras da ficção fantástica mundial. Falecida em 2018, aos 88 anos, Le Guin deixou uma obra extensa e valorizada por suas posições feministas e libertárias. A mão esquerda da escuridãoOs depossuídos e Floresta é o nome do mundo são bestsellers do gênero e verdadeiras unanimidades entre os leitores. Ainda que Sem tempo a perder não seja necessariamente um texto ligado a fc&f, vindo de Le Guin certamente ecoa aspectos de sua carreira que devem interessar aos fãs.
O volume tem 272 páginas e tem a data de publicação anunciada em 7 de junho, mas já é possível reservar aqui um exemplar com desconto.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Clube Andarilhos

A exemplo de outras editoras, a Andarilho inaugurou seu próprio clube de leitura, cujo diferencial é a dedicação à ficção fantástica. Mediante uma assinatura, o interessado recebe mensalmente uma caixa com um livro do gênero acompanhado de diversos mimos, como marcadores de páginas personalizados, placas decorativas, cartões de visita, cartões postais, livretos com contos extras etc. O conceito é trazer obras clássicas e inéditas de autores consagrados e pouco conhecidos. 
Já foram entregues caixas com os livros O cículo verde, de Arthur Machen; Vivendo só, de Stella Benson; Pela arte, de Tod Robbins; Uma troca de almas, de Barry Pain; Jimbo, de Algernon Blackwood; Pesadelo, de Gertrude Barrows Bennett; A coluna do tempo, de Malcolm Jameson; e A fábrica do absoluto, de Karel Capek.
Os livros têm formato de bolso para favorecer a leitura em todos os lugares. 
Mais informações no saite da editora, aqui.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Uma princesa de Marte, Edgar Rice Burroughs

Uma princesa de Marte (A princess of Mars), Edgar Rice Burroughs. 270 páginas. Tradução de Ricardo Giassetti. São Paulo: Aleph, 2010.

O mercado editorial brasileiro tem um déficit gigantesco em relação a fc&f de todas as épocas. Os motivos disso são inúmeros e passam pela falta de investimento, falta de educação, falta de critérios, falta de competência, entre outros. Ainda hoje, muitos editores continuam a pautar os títulos que pretendem publicar a partir de apelos acessórios, como por exemplo se o dito cujo vai ganhar alguma adaptação no cinema ou se tornar uma série de tv, como se os leitores só se interessassem por livros com esses vínculos, o que não é verdade.
Isso fica muito evidente quando se fala em Edgard Rice Burroughs (1875-1950), escritor americano que construiu um grande império de entretenimento graças a uma resma de séries de aventuras que escreveu na primeira metade do século 20. No Brasil, a única coisa que vem a mente quando se fala no autor é a série Tarzan dos macacos, personagem de grande sucesso que teve boa atenção dos editores por algum tempo – hoje está imerecidamente esquecido, uma vez que já não ocupa mais na mídia o espaço de outros tempos.
Mas, Burrougs não teve em sua carreira unicamente Tarzan. Ele foi um autor produtivo, que escreveu outros seriados interessantes e bem sucedidos, como Carson de Vênus, Pellucidar e John Carter de Marte que, inacreditavelmente, continuam inéditos em língua portuguesa. Ou estavam.
Pelo menos um desses personagens chegou enfim ao Brasil, traduzido pela editora Aleph. Uma princesa de Marte é o primeiro de uma série de onze livros da franquia Barsoom, publicado primeiramente em 1912 na forma de um seriado na revista All-Story Magazine. Trata-se de uma aventura que é, de muitas formas, o protótipo da pulp fiction que tanto sucesso fez em seu tempo. Trata-se de uma ficção científica com elementos de fantasia, chamada pelos teóricos do gênero como Ficção Planetária, pois toda a história gira em torno da descrição de um planeta alienígena, no caso Marte que, desde as declarações do astrônomo Percival Lowel, em 1895, sobre a possível habitabilidade do planeta vermelho, tornou-se alvo de interesse popular.
O romance foi influente em sua época e muitos escritores de ficção científica já declararam ter sido inspirados por ele. E não é por menos. A história é fabulosa, repleta de sense of wonder e até hoje impressiona.
Uma princesa de Marte conta o que acontece com John Carter, veterano da guerra civil americana que, depois de resgatar o corpo de um companheiro atacado por índios selvagens, abriga-se em uma caverna que é tabu entre os indígenas. Ali ele é alcançado por um gás que o adormece profundamente. Quando desperta, não está mais na caverna, mas num lugar absolutamente estranho, nu e incapaz de andar, próximo a uma estrutura repleta de ovos que ele logo vai descobrir, de uma forma bastante desagradável, ser uma incubadora dos tharks, raça de  grandes seres verdes de quatro braços. Escravizado pelos tharks, Carter aprende sua língua e os impressiona com sua coragem e força desproporcional, uma vez que a gravidade do lugar é muito menor que a da Terra. Adquire o estatus de guerreiro depois de matar um deles e, apesar de ser um prisioneiro, ganha alguma autonomia dentro da tribo, onde faz amigos como o guerreiro Tars Tarkas e a fêmea thark Zola, assim como muitos inimigos formidáveis.
Quando os tharks atacam uma frota de grandes carros a vela, Carter descobre que em Barsoom, a forma como os tharks chamam seu planeta, é habitado também por uma raça humana. Eles capturam Dejah Toris, princesa de Helium, um reino fortificado que está envolvido numa guerra terrível contra o reino de Zodanga.
Os habitantes de Barsoon, que Carter vai descobrir ser o planeta Marte, vivem em guerra constante, atacando-se mutuamente. A biosfera de Barsoon sofre um processo acentuado de decadência, os oceanos e rios secaram e a atmosfera só é mantida graças a uma usina de processamento de oxigênio que existe há tanto tempo que sua tecnologia não é mais conhecida pelos barsoonianos.
Além de homens e tharks, Barsoon é habitado por uma série de animais interessantíssimos, alguns muito perigosos, outros assustadores, como o pequeno Woola, uma espécie de cão de múltiplas pernas que se afeiçoa a Carter, o mais fiel amigo que ele faz em Barsoon.
De combate em combate, Carter conquista o coração da bela Dejah Thoris, ajuda Helium a derrotar seus inimigos e até salva o planeta da destruição iminente, mas acaba voltando à caverna na Terra, muitos anos depois de sua partida – o tempo em Barsoon progride mais lentamente que aqui - onde passa o restante de seus dias.
A aventura é relatada na forma de um diário, escrito pelo próprio John Carter nos anos em que passou na Terra e deixado como herança a um sobrinho que o revela ao leitor conforme o recebeu, após o desaparecimento do tio. O romance não especifica se Carter retornou à Barsoon, mas uma vez que este é apenas o primeiro livro de uma série, é bastante provável que a resposta seja positiva.
Contudo, não há nenhuma garantia que os demais livros da série Barsoon – ou das outras séries de Burroughs – sejam publicados no Brasil*. Ficamos um pouco menos desinformados do que antes, porém com apenas este único exemplo da divertida ficção científica deste precursor importante do gênero.
E não dá para deixar de lembrar que Uma princesa de Marte só chegou ao Brasil porque, em 2009, os estúdios Disney anunciaram a produção um filme com a história – lançado em 2012 –, além do cineasta James Cameron ter afirmado que esse romance foi parte da inspiração para fazer o seu blockbuster Avatar. Ou seja, quanto mais as coisas mudam, mais continuam iguais.

* A editora brasileira descontinuou a série em 2012 depois de publicar mais dois títulos: Os deuses de Marte (The gods of Mars), e O comandante de Marte (The warlords of Mars).

sábado, 20 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Guerra justa, Carlos Orsi

Guerra justa
, Carlos Orsi. 150 páginas. São Paulo: Draco, 2010.

Um dia, no futuro imaginado por Carlos Orsi, um grande meteoro vai se abater sobre a Terra Santa, transformando-a em pó e deixando uma enorme cratera onde antes havia as bases mais sagradas das religiões ocidentais, abalando a fé ao ponto de eliminar do mundo todas a religiões conhecidas. No vácuo desse cataclisma, emerge um novo profeta – o Pontífice – que funda uma religião apoiada na tecnologia de ponta, cujo santuário fica em órbita da Terra, numa estação espacial.
Essa nova teologia, chamada de Quinta Revelação, ganha poder no mundo graças a capacidade do Pontífice para prever o futuro. Sua igreja torna-se, rapidamente, um governo mundial todo poderoso, um estado policial teocrata que literalmente controla a vida de todos através de implantes de alta tecnologia, decidindo os rumos da política internacional e determinando quem vive ou morre nas inevitáveis tragédias naturais.
Mas há pessoas que não concordam com o predomínio dessa força política e movem um plano secreto para desacreditá-la. Uma delas é Rebeca, infiltrada na estação espacial da Quinta Revelação. Ela rouba dados importantes do santuário e é morta durante a fuga, mas não antes de encaminhar esses dados ao seu destino, uma inteligência artificial chamada Ma Go que, com essa informação, adquire a mesma capacidade do Pontífice para antecipar acontecimentos futuros e estabelece um outro pólo de poder para confrontar a hegemonia da Quinta Revelação.
Rebeca tem uma irmã, Rafaela, pesquisadora de implantes de processamento a serviço da Quinta Revelação, que é abordada pelo grupo de dissidentes a qual sua irmã fazia parte. Ela é levada à Ma Go e lá confronta toda a verdade por trás da doutrina da Quinta Revelação e dos supostos poderes de seu lider espiritual. Ma Go pretende usar Rafaela para presentear o Pontífice com um poder ainda mais refinado, que pode colocar a igreja da Quinta Revelação num caminho menos impiedoso.
Carlos Orsi é um dos autores mais interessantes da Segunda Onda de Ficção Científica Brasileira. Seus contos estão entre os melhores que essa geração produziu, alguns deles publicados nas suas coletâneas Medo, mistério e morte (Didática Paulista, 1996), Tempos de fúria (Novo Século, 2006), Campo total (Draco, 2013) e Mistérios do mal (Draco, 2016), além de participações em diversas antologias.
Guerra justa foi seu primeiro romance, embora seja bastante curto. Pelo menos trinta de suas 150 páginas não têm texto, pois foram usadas como respiro entre os capítulos. Pelos padrões americanos, trata-se de uma novela, portanto. Mas esse tratamento gráfico deu ao romance uma leveza visual incomum e muito personalizada, usando inclusive o interessante recurso de páginas em negro, com texto vazado em branco.
Inteligências artificiais, pós-humanidade, manipulação da opinião pública e da informação a serviço de uma religião hegemônica revelam uma visão pessimista do autor com relação às religiões, que nada teriam a oferecer ao homem além de dor e sofrimento. Entrevistado no Anuário brasileiro de literatura fantástica - 2005, Orsi afirmou que acredita que, um dia, tudo o que existe será explicado pela ciência: Guerra justa é assim o seu libelo contra o misticismo religioso.
Apesar de ter apontado suas baterias às religiões, Orsi acabou acertando em outro alvo, qual seja, a absoluta incapacidade do ser humano para fazer o bem, pois nesse futuro distópico e violento, quem redime a humanidade é a inteligência artificial Ma Go. Orsi cria, assim, sua própria versão de Deus.
Contudo, algumas coisas não convencem no enredo, a começar da premissa algo exagerada de que todas as religiões desabariam caso as cidades sagradas dos cristãos, judeus e muçulmanos fossem destruídas por uma tragédia cósmica. Afinal, estas não são as únicas religiões do mundo e tanto o judaismo quanto o cristianismo já sobreviveram, em outras épocas, a destruição de seus templos mais sagrados.
O autor demostra habilidade ao emular o estilo de autores como Willian Gibson e Bruce Sterling – os mais populares fundadores do movimento cyberpunk – como, por exemplo, a forma episódica, com uma porção de personagens cujas histórias vinculam-se frouxamente, e uma espécie de globalização narrativa que lança a trama para os quatro cantos do mundo e até para fora dele, num mosaico expressionista em que a sensação vale mais que o enredo. A única personagem mais elaborada é Rafaela, que ancora levemente a trama mas não chega a causar identificação com o leitor. Seu destino, ainda que importante para o desfecho da história, é de somenos relevância damática.
Ainda que não esteja entre seus trabalhos mais expressivos, Guerra justa é um texto autoral interessante porque Orsi expõe nele algo de sua íntima convicção filosófica, indo além do simples exercício estético literário ou do entretenimento descomprometido que geralmente caracteriza a ficção científica brasileira. Um pouco de polêmica só pode fazer bem a um gênero que tem o talento histórico de discutir temas difíceis.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Xenocídio, Orson Scott Card

Xenocídio (Xenocide), Orson Scott Card. 536 páginas. Tradução de Sylvio Monteiro Deutsch. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2010.

Orson Scott Card está entre os autores estrangeiros mais bem relacionados com o fandom brasileiro de ficção científica, o que é uma grande sorte nossa. Card morou no Brasil durante algum tempo nos anos 1970, como missionário, aprendeu a falar o português com desenvoltura e nutre pelo Brasil um carinho especial. Mesmo depois de sua temporada missionária, ele voltou pelo menos duas vezes ao Brasil, numa delas tivemos a oportunidade de compartilhar sua companhia num encontro de autores e editores em Sumaré*, no interior do Estado de São Paulo.
O autor promoveu então o lançamento de um de seus livros no país, mais exatamente o clássico O jogo do exterminador (Ender's game), publicado em 1990 pela editora Aleph inaugurando a coleção Zenith. Logo também seria publicada a sua sequência, O orador dos mortos (Speaker for the dead, 1990), pela mesma editora. Ambos os romances realizaram o feito de ganhar, por dois anos consecutivos, os mais importantes prêmios da fc mundial, o Hugo (1985 e 1986) e o Nebula (1986 e 1987), sendo o Card o único autor a realizar esse feito.
De Card também foram traduzidos, ainda nos anos 1990, os romances Um planeta chamado Traição (Treason, Record, 1993), A odisseia de Worthing (The Worthing saga, Record, 1994) e a novelização O segredo do abismo (The abyss, Record, 1989), além de diversos contos em revistas e antologias, entre eles o conto que deu origem ao romance O jogo do exterminador, também ganhador do Hugo, publicado pela revista Issac Asimov Magazine. Card ainda colaborou, por muitos anos, com diversos fanzines brasileiros. Contudo, a partir dos anos 1990 o autor ausentou-se do cenário editorial brasileiro, com raríssimas aparições. Até que a editora Devir republicou em 2006 O jogo do exterminador, seguido de O orador dos mortos em 2007 e, finalmente em 2010, a terceira parte da saga, até então inédita em língua portuguesa, Xenocídio.
Os vinte anos de espera foram longos, mas amplamente recompensados pela excelente edição da Devir, com a ótima tradução de Sylvio Monteiro Deutsch e a bela capa de Vargner Vargas.
Quem leu O jogo do exterminador sabe que Ender Wiggins, quando criança e sem que ele soubesse, foi treinado exaustivamente numa escola militar para ser usado como o estrategista de uma guerra de extermínio contra uma civilização alienígena, os abelhudos, um tipo de inseto inteligente e de hábitos gregários, que vive em colmeias.
O orador dos mortos conta o que aconteceu com Ender depois que a guerra acabou. Vagando pela galáxia em velocidades acima da luz, Ender assumiu a tarefa de orador dos mortos e, por isso, teve sua vida relativisticamente estendida. Enquanto a raça humana se espalhava pelo universo em dois mil anos de história, Ender não envelheceu mais do que quarenta anos. Em suas andanças, ele chega ao planeta Lusitânia, onde uma colônia científica formada por brasileiros encontrou uma raça inteligente de seres que são um curioso caso de interação entre animal e planta.
Xenocídio retoma a história da colônia em Lusitânia, onde os cientistas brasileiros tentam encontrar uma cura definitiva para o descolada, vírus nativo do planeta cuja letalidade é tamanha que ninguém que uma vez lá tenha pousado pode sair. Ender constitui família com uma das brasileiras do colônia e, secretamente, estabelece uma colmeia dos abelhudos a partir de um ovo de rainha que ele guardou cuidadosamente ao longo dos anos em que vagou pela galáxia.
As notícias sobre a virulência do descolada assustaram o corrupto Congresso Estelar, que decidiu enviar à Lusitânia uma frota de extermínio armada com o Doutorzinho, uma bomba destruidora de planetas, e garantir de uma vez por todas que a doença nunca saia de Lusitânia. A única forma de evitar que um novo xenocídio tenha lugar é encontrar a cura do descolada e, para ganhar tempo, Ender pede a Jane, uma inteligência artificial que o acompanha há tempos, para interromper todas as comunicações com a frota de extermínio.
Enquanto isso, no planeta Caminho, colonizado por chineses, Han Qing-jao, uma garotinha dotada de uma enorme inteligência é encarregada pelo Congresso de descobrir como e por quê a frota de extermínio desapareceu dos radares, e sua investigação, associada à relação conturbada com seu pai, ambos vítimas de um violento transtorno obsessivo compulsivo, assim como de ambos com a pajem Si Wang-Mu e Jane – a inteligência artificial de Ender – serão a chave da libertação de dois planetas e das três únicas raças alienígenas inteligentes conhecidas. Ou, quem sabe, quatro.
Um dos grande trunfos de Card, contudo, não é de sua lavra. Trata-se do ansível, um aparelho de comunicação subespacial primeiramente citado pela escritora americana Ursula LeGuin, que permite a comunicação instantânea com qualquer ponto da galáxia, independente de sua distância. É o ansível que dá sustentação a toda trama da saga de Ender, que ganha relevos cosmológicos a partir de Xenocídio. E essa discussão cosmológica é um dos grandes méritos do romance, que constrói uma intrincada teoria digna das mais elaboradas hardfictions, com desdobramentos em várias perspectivas, especialmente religiosas. O romance também traz outra grande discussão sobre bioética e ecologia, numa profundidade que só encontra paralelo nos romances da série Duna, de Frank Herbert.
Card não evita temas polêmicos e não extirpa a face religiosa de sua ficção, o que desagrada uma ampla parcela de leitores mais afeitos à ficção científica de ação. Não que Card não tenha habilidade para tal. Tanto que Xenocídio apresenta vários momentos de ação e violência intensa, mas os melhores momentos da trama são filosóficos, na forma de diálogos tensos entre os muitos protagonistas deste que é, sem dúvida, um dos melhores romances de ficção científica já publicados no Brasil. O fato de não ter repetido o desempenho de suas prequelas no que diz respeito aos prêmios, embora tenha sido indicado para o Hugo e para o Locus, não representa uma queda de qualidade, muito pelo contrário. Todas as discussões travadas no romance são intensas e bem articuladas, e sua riqueza é muito bem explorada pelo autor.
A Devir publicou, em 2013, o romance Filhos da mente (Children of the mind), quarto e último romance do primeiro arco de histórias, abrindo a possibilidade de que, no futuro, além da série completa de Ender – que tem mais seis romances, uma coletânea e diversos romances e novelas spinoffs nas séries Shadow saga, Formic wars e Fleet school –, possamos receber outras bem sucedidas séries que Card publicou nos EUA, como Homecoming e Tales of Alvin Maker, bem como mais de sua ficção curta que é de extrema qualidade.

* Trata-se da I InteriorCon, acontecida em 1990.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Time out – Os viajantes do tempo

Time out: Os viajantes do tempo, Ademir Pascale, org. 120 páginas. Apresentação de André Carneiro. Belo Horizonte: Estronho, 2011.

Seguindo a tendência iniciada em 2009, 2011 continuou a trazer à luz uma grande quantidade de antologias temáticas, que não deixam de ser uma tradição na fc&f brasileira. Algumas editoras têm de fato se especializado nisso, produzindo antologias em quantidade, embora de tiragens pequenas e memória ainda menor. A maior parte das dezenas de antologias publicadas no período receberam pouquíssimas resenhas e já nem são mais lembradas. Mesmo assim, o ambiente de antologias continua aquecido, com muitos projetos em fase de montagem por diversas editoras, apresentando novos autores, ao lado de veteranos que também precisam de espaço para mostrar seus escritos. Afinal, a quantidade de lançamentos não significa que os mais experientes já tenham estabilidade editorial – pelo contrário, tudo continua incerto e imprevisível, e é preciso aproveitar as oportunidades.
A mineira Estronho é uma das editoras que têm trabalhado fortemente no segmento das antologias temáticas, e em 2011 investiu alguns cartuchos na ficção científica, mas exatamente no subgênero da viagem no tempo, com a antologia Time out: Os viajantes do tempo.
Organizada pelo escritor Ademir Pascale, um dos campeões em organização de antologias temáticas em todos os tempos, Time out reúne oito contos de autores brasileiros, complementados por um ensaio sobre o tema e a apresentação do veterano escritor André Carneiro, uma autoridade no que se refere a ficção especulativa no Brasil.
O conto que abre a antologia é “Déjà-vu: O forte”, de Roberto de Sousa Causo, o texto de ficção mais elaborado do livro. Conta a história de uma mulher diagnosticada com doença terminal, que faz uma viagem sentimental pelo Brasil. Durante visita a um forte histórico, ela tem sua consciência arremessada para o passado, incorporando um soldado naquele mesmo lugar, durante o ataque de uma frota naval.
“A velha canção do marinheiro do futuro”, do próprio organizador, relata a situação incomum de um marinheiro que ficou preso num fenômeno espaço-temporal depois do navio em que estava ter sido usado em uma experiência mal-sucedida: o famoso experimento do USS Philadelphia, integrante da mitologia ufológica. Durante um de seus surtos, ele observa a distopia do mundo de 2075.
O melhor conto da antologia é “A difícil arte de lidar com os patrulheiros do tempo”, de Miguel Carqueija (autor de Farei meu destino; Giz, 2009), devido ao viés cômico que o autor manuseia muito bem. Um cientista meio maluco recebe, em pleno processo criativo, a visita de um jovem que se diz patrulheiro de uma polícia do futuro, que anuncia que vai matá-lo para evitar que invente alguma coisa muito ruim. Sem perder a fleuma, o cientista argumenta de forma a confundir seu assassino e mandá-lo de volta para onde veio.
“Pelas badaladas do tempo”, de Luciana Fátima, é o texto mais curto da antologia. Em clima de poesia, conta as visões de uma mulher ao escutar os sons de um sino.
Álvaro Domingues (autor de Sombras e sonhos; Balão, 2010) também envereda pelo humor em tons farsescos em “Modelo do ano”, em que dois amigos “nerds” que, quando jovens, sonhavam em construir uma máquina do tempo, reencontra-se depois de um afastamento de alguns anos. Um texto leve, mas com um travo machista que certamente não vai agradar as mulheres.
Ecos de Carl Sagan e H. P. Lovecraft se apresentam em “A máquina da insanidade”, de Estevan Lutz (o autor de O voo de Icarus, Novo Século, 2010), no qual um cientista enlouquecido que testou sua própria máquina do tempo, tenta contar sua história para a psicóloga do sanatório onde está internado.
Em “O último trem para as Plêiades”, de Allan Pitz (que escreveu A morte do cozinheiro, Above, 2010), um rapaz conta ao amigo incrédulo o sonho que teve no qual alienígenas o conduziram a uma viagem pelo espaço e pelo tempo, para mostrar-lhe que o fim do mundo está próximo. Texto pessimista e desesperançado, que contrasta com o tom galhofeiro da narrativa.
O último conto da antologia é “Contra o apagar das luzes”, de Mariana Albuquerque (autora de Coração de demônio, Writers, 1999), no qual um grupo de astronautas que testemunhou o fim do mundo cria uma máquina do tempo para voltar cinco anos no passado e tentar impedir a tragédia. Trata-se da mesma premissa do seriado de televisão Odyssey 5; uma fanfic, portanto.
Fecha a edição o breve ensaio “Viagens no tempo na ficção científica brasileira”, de autoria do pesquisador acadêmico Edgar Indalécio Smaniotto, que cita Monteiro Lobato, Erico Verissimo e Jerônymo Monteiro, destaca a noveleta “A ética da traição” (1993), de Gerson Lodi-Ribeiro, e a antologia Intempol, além de outros textos de menor expressão, o que revela a pouca intimidade da fcb com o tema, embora o ensaísta afirme o contrário.
Da mesma forma, a antologia Time out: Os viajantes do tempo é tão leve e despretensiosa que mal arranha o tema. De suas 120 páginas, apenas 80 realmente têm texto, o restante é ocupado por imagens e vinhetas em uma apresentação gráfica sofisticada que merecia a companhia de mais conteúdo.

Resenha do Almanaque: Sagas 1, 2 e 3

Sagas volume 1: Espada e magia (144 páginas), Sagas volume 2: Estranho oeste (144 páginas); Sagas volume 3: Martelo das bruxas (128 páginas), Cesar Alcázar & Duda Falcão, orgs. Porto Alegre: Argonautas, 2010 e 2011.

A Editora Argonautas, de Porto Alegre, como muitas outras editoras novas, é fruto da iniciativa de fãs de literatura de ficção científica e fantasia, no caso os escritores Duda Falcão e Cesar Alcázar. Entusiastas da clássica coleção portuguesa de fc&f Argonauta, da Editora Livros do Brasil, decidiram não apenas dar o mesmo nome à editora, mas estrear com uma publicação que segue a mesma tradição, a coleção Sagas, formada por livros de bolso com antologias temáticas. Trata-se de uma pequena joia em meio à barafunda que se tornou o espaço editorial da fc&f no Brasil, coalhado por antologias temáticas montadas a toque de caixa.
A primeira edição, dedicada à fantasia, foi publicada ainda em 2010, mas as edições 2 e 3, faroeste e bruxaria, respectivamente, saíram em 2011. A edição é cuidadosa e as capas, ilustradas por Nathan Milliner e Fred Macêdo, remetem aos quadrinhos e às revistas pulps.
Sagas volume 1: Espada & magia, tem 144 páginas, prefácio do escritor Roberto de Sousa Causo, e traz textos de autoria de Georgette Silen, Rober Pinheiro e dos próprios editores, explorando enredos na linha das histórias de Conan, O Bárbaro, e de Elric de Melniboné*.
O volume é despretensioso em sua proposta e equilibrado na organização. Os contos são simples, mas correspondem bem à proposta da edição, que é homenagear a Weird Fiction. O melhor texto do conjunto é “A cidadela de Ellan”, de Georgette Silen; de fato é o melhor texto da autora que já tive a oportunidade de ler, com elementos feministas e um enredo que escapa das convenções do gênero. Conta a história de uma guerreira psicologicamente problemática, que precisa recuperar um artefato que está sob a guarda de um velho conhecido, líder de um grupo de salteadores no momento escondidos num castelo. Velhos sentimentos vão emergir em meio à missão que tem tudo para resultar em tragédia.
Sagas Volume 2: Estranho oeste tem prefácio de Thomas Albornoz e apresenta, em suas 144 páginas, cinco histórias macabras de Alícia Azevedo, Christian David, Duda Falcão, M. D. Amado e Wilson Vieira, todas ambientadas no Velho Oeste norte-americano. Trata-se de um tema muito rico, pois no mesmo período podem ser contadas histórias em variados cenários e personagens: com nativos, dramas familiares em fazendas nas planícies, militaria da Guerra Civil, a Guerra da Independência, ou nas guerras indígenas, histórias com os pioneiros, sobre freakshows, sobre a corrida do ouro na Califórnia e no Alasca, sobre as caravanas, sobre os cowboys que atravessavam o país conduzindo seus rebanhos, sobre a construção das linhas de trens, caçadas de baleias, e até dramas urbanos vitorianos nas grandes metrópoles do leste, e muito mais. Mas faltou intimidade dos autores com o gênero. Todos acabaram contando histórias de pistoleiros metidos em confusões em saloons.
O melhor conto do volume é “Aproveite o dia”, de Christian David, com um protagonista patife e espirituoso que traz um colorido diferenciado à monocromia dos demais contos. Ele é um jogador que se mete numa situação da qual não terá chance de sair vivo, a não ser com muita sagacidade e um bocado de sorte.
A edição tem seus méritos, pois o tema é dos mais espinhosos para os autores brasileiros. Tanto que há poucos livros brasileiros nesse gênero, como os romances Areia nos dentes, de Antônio Xerxeneski (2008), e O peregrino, de Tibor Moricz (2011). Uma alternativa bastante razoável seria trocar o cenário do faroeste pelo cangaço, ou por bandeirantes, ou por jagunços modernos. As histórias poderiam ser exatamente as mesmas, mas ganhariam um colorido mais autêntico e imprevisível.
Finalmente, Sagas volume 3: Martelo das bruxas é o melhor da série, com 128 páginas e contos de Ana Cristina Rodrigues, Ana Lúcia Merege, Christopher Kastensmidt, Douglas MCT e Duda Falcão, com prefácio de Simone O. Marques.
“Cada história tem...”, de Christopher Kastensmidt, escritor norte-americano que vive no Brasil e aprecia trabalhar com os temas nativos, narra o duelo entre uma feiticeira e um caçador de bruxas no Brasil colonial, ambos acreditando estarem certos em seus pontos de vista. É o melhor conto publicado na série e, apesar do clima dramático, foi inevitável lembrar da épica luta entre Merlin e Madame Min no clássico desenho animado A espada era a lei (1963), de Walt Disney.
Ana Cristina Rodrigues também se apresenta com um bom trabalho. A história “O quão forte pode um gigante gritar” é ambientada na Irlanda medieval, onde o último sobrevivente de uma raça mágica envolve-se numa situação de risco para salvar uma jovem que está sendo torturada. O maior mérito do conto de Ana Cristina é a história de fundo, que demonstra riqueza suficiente para sustentar um texto bem mais longo. “Encruzilhada”, de Douglas MCT, apesar de não ser tão empolgante quanto os contos anteriores, destaca-se pelo estilo narrativo diferenciado. Conta a história de duas irmãs, meninas ainda, que precisam cumprir um ritual mágico de sacrifício mas, para isso, terão de enfrentar adversários poderosos.
A publicação é simpática e bem feita, contudo, depois do início alvissareiro, lançou apenas mais dois volumes: Sagas volume 4: Odisseia espacial (2013) e Sagas volume 5: Revolução (2014) que, infelizmente, encerraram a coleção. Uma revista similar, a Multiverso Pulp, voltaria em 2020, organizada pelo próprio Duda Falcão, agora pela Editora Avec. Sinal que o cancelamento de Sagas foi, decididamente, um tanto prematuro.
 
*Criações respectivas de Robert E. Howard e Michael Moorcock.

terça-feira, 16 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Muitas peles, Luiz Bras

Muitas peles, Luiz Bras. 128 páginas. São Paulo: Terracota, 2011

A produção de não-ficção no ambiente editorial fantástico brasileiro não é grande, mas tem se mantido estável, com dois ou três publicações por ano. Contudo, geralmente são textos oriundos de trabalhos de graduação acadêmica, com toda a parafernália que caracteriza os ensaios de pesquisa científica universitária: muitas citações, notações de referência e notas de pé de página, o que torna a leitura fragmentada e cansativa, sem esquecer que são textos voltados a provar uma tese, ou seja, são construídos em torno de um objetivo específico e o perseguem até que seja atingido; afinal, se isso não acontecesse, o trabalho seria rejeitado pela banca e seu autor teria de refazê-lo até obter esse resultado. São, portanto, leituras pragmáticas, de interesse específico, que depois de defendidas, aprovadas e publicadas, ficam nas estantes esperando que futuros pesquisadores acadêmicos as tomem para buscar referências e citações para seus próprios trabalhos.
Mas, algumas vezes, surgem títulos que não foram produzidos para o ambiente acadêmico e tornam-se trabalhos de leitura mais fluida para o leitor leigo, como por exemplo O que é ficção científica (Brasiliense, 1986) e Um rasgão no real (Marca de Fantasia, 2005), ambos de autoria de Braulio Tavares.
E também é o caso de Muitas peles, primeiro livro de não-ficção de Luiz Bras, publicado pela Editora Terracota com recursos do ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo), distribuído gratuitamente pelo autor. Trata-se de uma coletânea que reúne os melhores artigos de Luiz Bras, publicados na coluna “Ruído branco” do jornal literário Rascunho, de Curitiba.
Luiz Bras notabilizou-se por uma atitude de militância no gênero da ficção científica, atuando como escritor e ensaísta, com propostas de impacto e provocações que transcendem o fandom e ecoam no mainstream literário como nunca antes foi conseguido pelos escritores do gênero. Isso porque Luiz Bras é a persona do multipremiado escritor mainstream Nelson de Oliveira, sendo dele o heterônimo para a ficção científica. Bras tem sido extremamente ativo, publicando vários livros a cada ano, sempre de qualidade acima da média, tendo sido extensamente entrevistado pelo Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica em sua edição referente a 2010, ano em que teve publicada a ótima coletânea de contos Paraíso líquido, pela mesma Terracota.
Não por acaso, Muitas peles traz na capa um desenho de Teo Adorno (outro heterônimo do autor), o mesmo artista que ilustrou a capa de Paraíso líquido, e isso até pode confundir o leitor, mas tratm-se de trabalhos completamente diferentes.
Muitas peles traz dezesseis textos que discutem questões interessantes ligadas ao ato da escrita e da crítica literária, bem como sobre os valores da literatura de gênero, especialmente a ficção científica, frente aos caminhos do mainstream.
Entre os textos está o importante “Convite ao mainstream”, no qual Bras convida todos os autores brasileiros a experimentarem a ficção científica como uma alternativa ao engessamento estilístico da literatura brasileira, um texto que já se tornou basilar no ambiente da fc&f nacional.
Mas o livro tem muito mais a oferecer. Além de “Convite ao mainstream”, Muitas peles traz outros artigos que ampliam a percepção do leitor tanto para a literatura de gênero quanto para o mainstream, como por exemplo “Duas elites”, no qual Bras confronta lucidamente os parâmetros analíticos que predominam nos ambientes da ficção de gênero e do mainstream. O artigo é composto por breves depoimentos de Ana Cristina Rodrigues, Braulio Tavares, Fabio Fernandes, Guilherme Kujawski, Marcello Simão Branco, Roberto de Sousa Causo e Tibor Moricz, todos nomes vinculados ao fandom brasileiro de fc&f, ampliando o leque de opiniões expostas. Faltou, contudo, a contraparte mainstream para configurar um bom debate.
Os demais artigos que compõe o volume são: “O infinito: um delírio?”; “Fim do papel, fim da poesia”; “Escolha um futuro”; “Cinco erros”; “Três leis”; “Sabedoria secreta”; “Olha, mãe, uma cor voando!”; “Encontro com o autor-personagem”; “O autor e seu editor”; “Elogio do acaso”; “Paraíso perdido: a infância”; “Morte e imortalidade” e “Crítica é cara ou coroa”. A coletânea também abre espaço para o artigo “Um bárbaro que se preze não vem para o chá das cinco”, de Roberto de Sousa Causo, escrito a convite de Bras.
Muitas peles é um livro ágil, de leitura leve e agradável, mas de impacto contundente. Sem dúvida, uma das mais importantes publicações do gênero nos últimos anos.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Espectra – Histórias de fantasmas

Espectra: Histórias de fantasmas, Tomo 1, Georgette Silen, org. 240 páginas, prefácio de Simone O. Marques. Praia Grande: Literata, 2011.

Não há dúvida que o gênero preferido dos fãs de ficção fantástica é o horror. Neste momento, há um grande rebuliço com a fantasia por conta dos sucessos internacionais como O senhor do anéis, Harry Potter e A guerra dos tronos, mas o horror sempre esteve na ordem do dia. Mesmo quando a fantasia era interesse apenas de uns poucos nerds jogadores de rpg e a ficção científica dominava o cenário editorial, o horror estava lá, firme e forte, com seus fãs fiéis e ardorosos que sempre responderam bem aos produtos em todas as mídias.
Talvez seja por isso que, apesar de não predominar no formato de romance, as antologias do gênero são tão abundantes e voluptuosas. Em 2010, das 59 antologias inéditas publicadas no ano, 30 eram de horror, conforme dados divulgados no Anuário brasileiro de literatura fantástica 2010, e em 2011 não foi diferente.
Alguns organizadores especializaram-se na montagem de antologias de horror, como Ademir Pascale, M. D. Amado e Georgette Silen. Esta organizou para a editora Literata o volume Espectra: Histórias de fantasmas, que promete ser o primeiro de uma série.
O livro reúne em 240 páginas nada menos que 31 contos de 28 autores, boa parte deles estreantes. Como o título já diz, trata-se de uma antologia temática dedicada às histórias de fantasmas e assombrações. E no livro há um pouco de tudo: demônios, poltergeists, aparições, casarões e, é claro, fantasmas aos montes. É até estranho que com tanto fantasma por aí, eu nunca tenha visto um só sequer.
Seria exaustivo comentar todos os contos, mas vale a pena destacar alguns deles.
“Inferno particular”, de Sheilla Liz Cocconello, uma veterana nas antologias de ficção fantástica, conta o cotidiano de uma jovem suicida que, condenada a uma eternidade infernal, resiste em abandonar o local de sua morte. Mas não importa o quanto protele seu destino, o inferno sempre estará esperando por ela e não está com pressa.
Taiane Gonçaves, que estreou na antologia Tratado secreto de magia (Andross, 2010), participa desta seleta com três textos. O melhor deles é “As treze almas”, sobre um jovem que, ao visitar uma tia no interior, se vê as voltas com o fantasma de um assassino psicopata.
O saudoso Adriano Siqueira, autor da coletânea Adorável noite (Estronho, 2011), foi especialmente convidado para o livro e também oferece um texto interessante e divertido. “70 Km por hora” relata, em clima de videogame, uma noite de trabalho de um detetive especializado em casos bizarros. Aqui, o de um automóvel assombrado que coloca toda a cidade em risco.
“Anga”, de Carlos Gaiten, outro autor experiente em antologias, investe numa história de laivos políticos, na qual um vidente recebe de um fantasma a localização de uma vala onde estariam enterradas várias vítimas da ditadura militar.
“A gameleira”, de Carmelo Ribeiro, é o melhor texto da coletânea. Trata-se de um “causo” contado a moda antiga, sobre dois homens valentes que se desafiam mutuamente a enfrentar a maldição de uma velha árvore.
Outro bom texto é “Altar de ossos”, de Marcelo Augusto Claro. Um pai e seu filho, cuja profissão é caçar fantasmas, vão enfrentar um dos piores numa velha casa de fazenda.
Gian Danton, premiado roteirista de quadrinhos e um dos autores mais experientes do grupo, participa com o conto “Lembranças de sangue”, sobre um jovem estudante que se hospeda na casa de uma senhora simpática, mas vai descobrir, da pior forma possível, que o lugar é assombrado por lembranças de sangue e morte.
Além destes, o livro ainda traz textos de Marcelo Augusto Claro, Sória Celestino, Bruno Anselmi Matangrano, Vicente Reckziegel, Eduardo Bonito, Suzy M. Hekamiah, Jéssica Schiavetto Linhares, Michele C. Marchese, Debby Lenon, Marjorie Tolentino, Rosi Caobiano, Cecília Torres Nogueira, Rubens Alves, Sandra Françoso, Débora Jeronymo, Andrea Betoldo, Mariana Albuquerque, MBlannco, Celso Correa de Freitas, da prefaciadora Simone O. Marques e da própria organizadora, Georgette Silen.
Apesar da grande quantidade de autores e ampla variedade de estilos, a antologia é equilibrada e fácil de ler. Não chega a ser assustadora; está mais para divertida, como geralmente são as histórias populares de terror, e representa bem o estado da arte no ambiente dos fãs do gênero.
Na falta dos fanzines, quase todos extintos, as antologias têm cumprido a função de permitir o exercício editorial de novos autores, dessa forma são uma espécie de incubadora de talentos. Esperemos que, futuramente, alguns deles desdobrem suas asas e arrisquem voos solo. Aí sim, ninguém vai segurar essa turma.

sábado, 13 de maio de 2023

Lançamento: 16

Está aberta, até o dia 9 de junho, a campanha de financiamento direto para a publicação da coletânea 16, do professor, jornalista e tradutor Fábio Fernandes, reunindo uma seleta de dezesseis contos do autor publicados ao longo de seus trinta anos de carreira literária. 
O trabalho editorial é da Caos e Letras, que oferece diversas recompensas interessantes aos apoiadores. A meta modesta, de apenas R$5 mil, certamente será bem sucedida, pois em poucos dias já atingiu 37% dela. 
Fernandes é um nome importante da segunda onda da ficção científica brasileira, tendo publicado diversos livros, como a coletânea Interface com o vampiro (Writers, 2000) e os romances O dia da peste (Tarja, 2009), Back in the USSR (Patuá, 2019) e Rio 60 graus (Draco, 2022), entre outros, além de participações em diversas antologias.  
A página da campanha, aqui, oferece diversos pacotes de recompensas e a entrega deve acontecer no segundo semestre de 2023. 
Tentador.

Suprassuma 2: Fobias

Está em pré-reserva a segunda edição da Suprassuma, revista literária digital e colaborativa do selo Suma, divisão da editora Companhia das Letras dedicada à ficção fantástica. A primeira edição, que teve editoria de Beatriz D’Oliveira e Paula Lemos, foi distribuída em outubro de 2021, cujo lançamento foi comentado aqui
Depois de prolongadíssimo processo de submissões, a editoria selecionou, entre centenas de textos enviados, sete histórias de ficção científca, fantasia e horror dentro do tema "fobia" que norteia a linha da edição. Esses textos são assinados por Diogo Ramos, Paloma Engelke, Lucas Santana, Juliane Vicente, André Cordeiro, Luísa Montenegro e Emerson Rodrigues. A edição é complementada por um conto da autora convidada Carol Chiovatto. 
A revista tem 172 páginas, é gratuíta e será entregue automaticamente no dispositivo de leitura no próximo dia 18 de maio. Apesar de estar disponível apenas para leitores Kindle, também é possível acessar o conteúdo a partir de um aplicativo da plataforma.
Para fazer a pré-reserva, acesse aqui. A edição anterior também está disponível.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Dieselpunk – Arquivos secretos de uma bela época

Dieselpunk: Arquivos secretos de uma bela época, Gerson Lodi-Ribeiro, org. 384 páginas. São Paulo: Draco, 2011.

O hábito de montar seletas de contos e novelas parece mesmo ser um dos grandes prazeres do fãs de fc&f no Brasil. E, curiosamente, temos um critério próprio que permite que essas coletâneas sejam possíveis num mercado que praticamente não publica ficção curta de outra maneira.
De modo geral, antologias são montadas com textos já experimentados em outros veículos, principalmente revistas periódicas. É comum nos Estados Unidos, por exemplo, seletas do tipo “O melhor da nova fc” ou “O melhor do novo horror”, reunindo os textos de autores que estrearam nos últimos meses. 
Isso até poderia ser possível hoje diante da estreia, nos últimos três anos, de alguns periódicos literários reais e virtuais apoiados na publicação de ficção de gênero, mas ainda são poucos e de periodicidade muito espaçada, o que resulta em uma quantidade pequena de material publicado para favorecer uma seleta. 
Dessa forma, a dinâmica adotada pelas editoras brasileiras, grandes e pequenas, tem sido abrir editais para que os escritores submetam seus textos, inéditos ou não, ao crivo de um ou mais organizadores que vão escolher quais serão os textos adequados ao projeto, e foi essa dinâmica que favoreceu o florescimento de uma indústria de antologias nacionais nos últimos anos que, tal como os cogumelos, surgem da noite para o dia. Essas seletas têm sido a base do exercício da ficção fantástica nacional, mas não permitem que antologias reunindo “os melhores do ano”, por exemplo, sejam realizadas, uma vez que os textos ficam retidos por contrato com as editoras. Exceções são as antologias montadas a partir de material mais antigo, especialmente em domínio público.
Dieselpunk: Arquivos confidenciais de uma bela época, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e ppublicada pela Editora Draco em 2011, adotou o método do edital para histórias inéditas. Seguindo o molde de uma antologia anterior, Vaporpunk: Relatos steampunk publicados por ordem de Suas Majestades, lançada em 2010 pela mesma editora, Dieselpunk também se propõe ser uma seleção de textos de história alternativa. Se em Vaporpunk a tecnologia dominante deveria ser o motor a vapor, em Dieselpunk supõe-se que seja o motor a óleo diesel que vai mover as histórias. Como a tecnologia do diesel ainda está por aí, podemos imaginar que qualquer coisa moderna pode estar enquadrada na premissa. Pelo menos, sempre vejo nos postos de combustível, ao lado das bombas de gasolina, álcool e gás, uma de óleo diesel. Mas a ideia talvez não fosse bem essa, já que a maior parte dos autores selecionados trabalharam temas restritos às primeiras décadas do século XX.*
O texto que abre a seleção é “Fúria do Escorpião Azul”, de Carlos Orsi, uma aventura de vingador mascarado ambientada nos anos 1930 de um Brasil no qual os princípios da União Socialista Soviética tornaram-se a política predominante. É claro que o Escorpião Azul vai enfrentar os comunistas.
“O grande G” é uma fábula tecnológica escrita por Tibor Moricz, que contrapõe duas metrópoles — uma movida a carvão e outra a diesel — que lutam pelo predomínio econômico. No lado do diesel, um feroz empresário faz uso de todos os instrumentos de que dispõe não só para manter sua cidade na liderança, mas também para satisfazer suas taras e manter o poder em suas próprias mãos. O texto é algo libertino na abordagem, mas de fundo extremamente moralista: “não façam isso em casa, crianças, ou vocês vão se dar mal.”
“O dia em que Virgulino cortou o rabo da cobra sem fim com o choço excomungado”, de Octávio Aragão, explora o confronto entre o bando de Lampião e a Coluna Prestes, que historicamente nunca aconteceu. Mas há mais na noveleta além do encontro destes dois mitos da história brasileira, entre os quais se incluem armas de tecnologias muito avançadas, pós-humanismo, viagens no tempo e um pouco de ufologia, Ou não. Trata-se de um bom trabalho, com muita ação e um final feliz.
“Impávido Colosso”, de Hugo Vera, é um épico ingênuo inspirado nos animes de robôs gigantes para contar como um Brasil monarquista, comandado pelo sucessor de D. Pedro II, enfrenta um infame ataque da Argentina à região sul do país. Enquanto o agressor usa um exército de autômatos mecânicos cedidos pelo Império Britânico, o Brasil defende-se com o experimental Impávido Colosso, um robô gigante projetado pelo engenheiro Rudolf Diesel e tripulado por uma bombshell paraguaia que é uma declarada homenagem à Larissa Riquelme, musa da Copa do Mundo de 2010 na África do Sul, uma entre muitas citações que acabam chamando mais a atenção do leitor do que a história em si.
O único conto não inédito da antologia é “Pais da aviação”, de autoria do próprio organizador, que já havia sido visto na antologia Vinte voltas ao redor do Sol, publicada pelo CLFC em 2005. Numa França em que Jules Verne é o presidente da República, Santos Dumont e os Irmãos Wright disputam a primazia de serem os primeiros homens a alçar voo num aparelho mais pesado que o ar.
O jornalista Antonio Luiz M. C. Costa participa com “Ao perdedor, as baratas”, um suspense político sobre um atentado a vida de um importante candidato a presidência num Brasil subdividido em repúblicas menores, inimigas entre si. A barata do título faz uma pontinha no final da história.
“Auto de extermínio”, do jovem fluminense Cirilo Lemos, é de longe o melhor texto da antologia e, arrisco dizer, um dos melhores contos da fc brasileira em todos os tempos. Bem escrito, com diálogos precisos, cenas empolgantes e personagens muito bem estruturados, a noveleta apresenta recursos mais que suficientes para ser expandida num romance. Até as citações são de uma engenhosidade inspirada e não perturbam a credibilidade da história, que gira em torno de Jerônimo Trovão, assassino de aluguel que se mete numa confusão maior do que pode administrar. A trama de várias frentes revela aos poucos a estrutura do rico universo alternativo que Lemos criou.
Outra noveleta ótima é “Cobra de Fogo”, do experiente roteirista Sid Castro, um dos raros exemplos de ficção desportiva na fc brasileira. É o texto que melhor responde às propostas da antologia, com uma corrida mundial de super locomotivas, sendo M’Boitata, a tal Cobra de Fogo, a representante do Brasil nessa disputa que tem um ligeiro fundo político. Ecos de Esses homens maravilhosos e suas máquinas voadoras, filme de 1965 dirigido por Ken Annakin, reverberam em cada página da noveleta, que tem um sabor Golden Age bem ao gosto do leitor brasileiro.
O texto que fecha o volume é “Só a morte te resgata”, do português Jorge Candeias, único autor estrangeiro da antologia. A primeira metade da história é militar, com uma batalha aérea entre caças e dirigíveis, que depois é completada por um thriller de espionagem, no qual um sobrevivente da batalha narrada anteriormente tenta retornar para casa. Trata-se de uma história dramática, e uma breve notinha final acrescenta-lhe uma profundidade pessoal emocionante.
Graças à experiência e representatividade dos autores selecionados, Dieselpunk resultou numa antologia de qualidade média superior às seletas nacionais publicadas recentemente. Um caminho adequado caso se pretenda construir outras seleções de boa qualidade dentro das limitações do mercado brasileiro.
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* Assim como a antologia anterior, esta reúne histórias de ficção científica recursiva, voltada para o passado.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

A noite dos insensatos, Simone Saueressig

A noite dos insensatos e outras histórias bizarras
, Simone Saueressig. Novo Hamburgo: edição de autor, 2023. 

Houve um tempo em que os textos escritos pelos autores de fandom brasileiro de fc&f eram efetivamente lidos e causavam debates furiosos nas redes sociais analógicas da época, que aconteciam nas páginas dos fanzines que também veiculavam os textos em si. 
As redes digitais pareciam, a princípio, acenar com um acirramento desse tipo de debate, mas foi uma expectativa frustrada rapidamente na medida em que os autores abandonaram as discussões para evitar os melindres em seus seguidores. O encarregado de uma grande editora, hoje já fora do mercado, chegou a anunciar uma lista negra para os autores que fizessem comentários polêmicos nas redes. 
Portanto, é de se comemorar a iniciativa da fantasista gaúcha Simone Saueressig, que publicou com seus próprios recursos a coletânea A noite dos insensatos e outras histórias bizarras, com seis contos imprevisíveis e absolutamente fora do espaço de conforto da autora. 
Conhecida por sua ficção de viéz folclórico voltada principalmente para o público juvenil, Simone investe aqui em textos de forma e natureza totalmente diversos de suas características, com um forte conteúdo humorístico, quase sempre negro, e ataques declarados a comportamentos da sociedade brasileira recente. 
A coletânea tem apenas 37 páginas, mas seu conteúdo é explosivo e de alta octanagem, que levou legiões de usuários das redes sociais a mover uma verdadeira campanha contra o volume, algo que não se via no fandom desde que as redes decidiram limar Monteiro Lobato da literatura brasileira. 
O conto título abre a antologia e é o mais longo da seleta. Trata-se de uma farsa engraçadíssima, um tipo de charge literária, sobre dois alienígenas que atuam em segredo na proteção do planeta Terra e decidem fazer uma visita não autorizada à uma região ao sul do Brasil em meio a campanha eleitoral de 2022. Sendo charge, o texto exige uma certa contextualização para fazer sentido, mas acredito que os brasileiros não terão problema com relação a isso. 
"Buraco de minhoca" narra o drama de uma dona de casa que tem em sua máquina de lavar roupas a extremidade de chegada de um buraco de minhoca de onde surgem todos os pés de meias perdidos no mundo.
"Pleonasmos" é uma narrativa metalinguística que surpreende porque a autora desrespeita sua própria filosofia de escrever corretamente e comete repetidos e deliberados pleonasmos, tudo a serviço do desfecho da história. 
"Infestação" é a história mais poética do conjunto, sobre uma jovem que passa a ser incomodada pela presença cada vez mais intensa de variados tipos de insetos em sua casa, prenúncio de importantes transformações na sua vida.
Em "A reforma" temos uma narrativa de horror, uma especialidade da autora. Durante uma reforma em sua residência, o pedreiro abre um buraco na parede que se transforma em uma gigantesca bocarra faminta. 
"Tsundoku" fecha o volume com a história de uma amante dos livros que compra muito mais do que consegue ler. A certa altura, os volumes começam a brotar expontaneamente até ocuparem toda a casa, que se torna então num labirinto de livros empilhados onde as pessoas desaparecem para sempre. 
Como se vê, a autora flerta com o modelo de fantasia de Murilo Rubião e Jorge Luis Borges, com textos curtos e poderosos que não permitem que o leitor fique impassível a eles. Com exceção do conto título, todos os demais têm protagonistas femininas em meio ao cotidiano urbano, o que certamente deve significar alguma coisa importante.
O volume foi publicado apenas em formato virtual para leitores Kindle e pode ser adquirido aqui. Contudo, quem não tiver o dispositivo poderá ler o livro no aplicativo online da própria plataforma. 
Recomendo fortemente a leitura, por ser um ponto de virada na obra da autora, pelas discussões que suscita e porque é uma leitura bastante rápida. Dessa forma, mais gente pode entrar na discussão. Afinal, "A noite dos insensatos" é ou não proselitista? Não vou responder, mas que é divertidíssimo, lá isso é.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Lançamento: Esperando o dono

Está em pré venda, pela editora Caos e Letras, a coletânea Esperando o dono, do editor, crítico e jornalista André Cáceres, que reúne roteiros de três peças inéditas do autor, todas no linha da ficção fantástica. 
Diz o texto de apresentação, assinado por Luiz Brás: "A trama de 'Esperando o dono' e 'Os tripulantes' se passa no futuro, enquanto a trama de 'A pedra bissexta' se passa no presente. As três histórias funcionariam muito bem no formato literário, afinal André Cáceres é um ficcionista talentoso. Mas confesso que a quebra de protocolo me agradou muitíssimo. Afinal, a literatura já está tão cheia de contos, novelas e romances futuristas & sobrenaturais! Não só a literatura. As telonas e as telinhas também. Enquanto o espaço cênico continua tão vazio de androides, mutantes, espaçonaves, maldições, feitiçarias, horror cósmico…"
Além da expressiva contribuição para a divulgação dos gêneros fantásticos em seus artigos no jornal O Estado de S. Paulo, a produção literária de Cáceres já conta com os romances Nebulosa (Patuá, 2021) e Cela 108 (Multifoco, 2015), aos quais se soma esta bem-vinda coletânea, um acréscimo interessante à produção da fcf brasileira tão carente da dramaturgia em sua bibliografia.
Reservas de exemplares e mais informações no saite da editora, aqui.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Conan, o bárbaro, Robert E. Howard

Conan, o bárbaro (Conan, the conqueror), Robert E. Howard. 392 páginas. Tradução de Alexandre Callari.  São Paulo: Évora/Generale, 2011.

Depois de quase um século, finalmente as editoras brasileiras parecem ter descoberto os atrativos da Weird Fiction, estilo narrativo desenvolvido em revistas pulp como a Weird Tales, editada em 1923 por J. C. Henneberger, em Chicago, EUA. Em 2011 chegou às livrarias brasileiras, pela Editora Évora, a coletânea Conan, o bárbaro, de Robert E. Howard, a reboque do lançamento da superprodução cinematográfica homônima, dirigida pelo alemão Marcus Nispel, remake do grande sucesso de 1982 estrelado por Arnold Schwarzenegger. O livro traz alguns textos inéditos no Brasil deste personagem que é uma bem-sucedida franquia internacional, que se espalha por diversas mídias como o cinema, os quadrinhos, a televisão e os videogames.
Howard nasceu em dezembro de 1906, em Peaster, Texas, e nos breves 30 anos em que viveu, construiu uma saborosa mitologia ancestral, amálgama de histórias de guerras medievais com fantasias das Mil e Uma Noites, que hoje é conhecido como o subgênero Sword and Sorcery (Espada e Magia). Nessa versão delirante do passado da humanidade trafega Conan, guerreiro das montanhas geladas de algum lugar que parece ser o norte da Europa e que, no mundo criado por Howard, chama-se Ciméria. Aliás, Howard redesenhou o mapa do mundo, definindo um continente estranho, no qual se pode identificar versões de diversas culturas recentes, como os turcos, os árabes, os egípcios e até os romanos. A arquitetura descrita também se apoia nas desses povos, com uma boa dose de medievalismo europeu. Depois de bem cosida, Howard fixou essa mixórdia cultural numa época doze mil anos atrás, quatro mil anos depois do desaparecimento da lendária Atlântida, que chamou de Era Hiboriana. O ambiente é tão rico que permitiu a criação de outros personagens, como o Rei Kull, que governou a Atlântida em seus últimos dias.
Quase todas as histórias de Conan foram escritas entre 1926 e 1930, e publicadas principalmente na Weird Tales. A primeira história impressa foi chamada “A fênix e a espada” (“The phoenix on the sword”),  publicada em 1932. A série original completa conta com apenas vinte e um textos, três dos quais publicados postumamente. Na década de 1950, o material foi republicado em forma de livro pela Gnome Press, e reeditado em 1966 com belíssimas capas ilustradas por Frank Frazetta, que lhe renderam o sucesso atual. Autores como L. Sprague de Camp e Lin Carter deram sequência às aventuras de Conan, algumas a partir de manuscritos incompletos posteriormente descobertos.
No Brasil, os textos de Howard foram pouco publicados. A primeira tradução que se tem notícia foi do conto “A fênix e a espada”, visto em 1973 no número 7 da revista Planeta (Editora Três), então editada por Ignácio de Loyola Brandão. Outro texto de Howard só iria aparecer em 1990: “O povo do Círculo Negro” (“The people of the Black Circle”), publicado na antologia Isaac Asimov Apresenta: Magos, os Mundo Mágicos da Fantasia (Editora Melhoramentos). Em 1995, a editora Mercuryo, pelo selo Unicórnio Azul, distribuiu nas bancas cinco volumes do periódico Conan: Espada e Magia, com uma seleção de histórias do bárbaro escritas por Howard e seus seguidores. No ano seguinte, a editora Newton Compton Brasil distribuiu, do mesmo modo, um volume com a novela Pregos vermelhos (Red nails), um dos maiores clássicos do personagem. Em 2006, a Editora Conrad publicou dois volumes somente com contos de Conan escritos por Howard, na sua sequência original.
Conan, o Bárbaro apresenta quatro textos: o já anteriormente visto “Os profetas do Círculo Negro”, mais os inéditos “Além do Rio Negro” (“Beyond the Black River”), “As negras noites de Zamboula” (“Shadows in Zamboula”) e “A hora do dragão” (“The hour of the dragon”).
O livro inicia justamente com “A hora do dragão”, que narra um episódio da vida madura de Conan, durante seu reinado na Aquilônia. Três nobres de segunda linha tramam com um feiticeiro para se colocarem no poder dos reinos da região da Aquilônia. Para isso, restauram a vida de Xaltotun, um poderoso mago do extinto reino do Pyton, fazendo uso de um objeto místico chamado Coração de Ahriman. Xaltotum usa seus poderes para tirar Conan do trono, mas seu objetivo é muito mais amplo do que esperam seus capangas: ele pretende restaurar o antigo poder de Pyton e dominar todo o mundo hiboriano. Enquanto os nobres mergulham a região num banho de sangue, o deposto Conan tem que lutar para sobreviver, descobrir uma forma de derrotar o poderoso Xaltotum e assim poder recuperar seu trono. Trata-se do texto mais longo que Howard escreveu com o bárbaro. Considerado como o único “romance” de Conan, “A hora do dragão” é, na verdade, uma novela de narrativa linear centrada no protagonista. A história é cheia de detalhes, com muitos personagens e as costumeiras cenas da batalhas grandiosas típicas das aventuras de Conan.
“Além do Rio Negro” é o texto seguinte, uma noveleta que mostra o herói num período anterior, quando ele ainda era um guerreiro errante. Embrenhado na selva, Conan se envolve em uma guerra de fronteira com os selvagens pictos, raça de homens primitivos e ferozes, liderados por um xamã sedento de vingança. Apesar de curto, é o texto mais denso do volume, com um forte clima claustrofóbico.
“As negras noites de Zamboula” é a narrativa mais curta da coletânea. Depois de escapar de uma armadilha engendrada pelo proprietário da hospedaria onde dormia, Conan conhece uma linda dama que o convence a resgatar seu amante das garras de um feiticeiro. Depois de algumas tribulações, Conan acaba aplicando sua costumeira justiça, inclusive contra o traiçoeiro estalajadeiro que tentara enganá-lo.
“Os profetas do Círculo Negro” fecha o volume, um texto com a mesma carga épica da novela inicial. Conan é o líder de um bando de salteadores das montanhas que tenta negociar com a milícia local a libertação de alguns de seus homens que foram capturados. Mas ele é atacado e, ao fugir, leva a rainha Jasmina de Vendhya refém. Esta, por sua vez, pede a ajuda de Conan para vingar seu irmão morto pelas artes mágicas dos Profetas Negros de Yimsha, necromantes que habitam uma fortaleza mística no alto das montanhas. Levado pelas circunstâncias, Conan não tem outra opção a não ser enfrentar esses seres, para salvar a própria vida e recuperar a liderança de seus homens.
Os textos têm tradução de Alexandre Callari, autor da casa pela qual teve publicado em 2011 o romance Apocalipse zumbi. Callari assina também a apresentação da coletânea, que tem prefácio do roteirista norte-americano Roy Thomas, comentando a adaptação do personagem para os quadrinhos, o que soa um pouco deslocado no contexto de um volume literário, especialmente para aqueles leitores que não acompanham os quadrinhos do personagem.
O livro ainda traz um caderno de oito páginas com imagens em cores do remake e a capa reproduz o cartaz do filme. O grande problema ao associar tão enfaticamente a publicação de um texto clássico como este a uma adaptação cinematográfica é a enorme possibilidade de que o filme seja mal recebido pela crítica e pelo público. E quando um filme não vai bem, seus subprodutos tendem a seguir-lhe a trajetória, o que seria uma pena no caso deste livro, que tem qualidades suficientes para sustentar-se. Afinal, se há um subproduto aqui, ele é o filme.
No momento em que títulos como O senhor dos anéis, Crônicas de Nárnia e A guerra dos tronos estão entre os mais vendidos das livrarias, é um ótima chance para Howard, que foi um daqueles que moldou a forma original da fantasia como gênero.