sábado, 27 de maio de 2023

Lançamento: A última da festa

Futuros apocalípticos são, desde sempre, um tema popular no âmbito da ficção fantástica, e depois do enorme sucesso da série The walking dead, essas histórias estão ficando frequentes também na televisão. 
Tratam-se de aventuras de pessoas solitárias por ambientes perigosos de uma civilização devastada por algum tipo de catástrofe. Histórias de séries recentes como as de The last of us, originalmente um jogo de computador, e Station Eleven, baseado no romance de Emily St. John Mandel, demonstram que o estilo é propício para reflexões profundas sobre a condição humana e o caráter das pessoas. 
É nessa linha que também se instala A última da festa (Last one at the party), romance de estreia da escritora britânica Bethany Clift, publicado originalmente em 2021, que chega ao Brasil pela Editora Jangada, com tradução de Jacqueline Damásio Valpassos.
Diz o texto de divulgação: "Em dezembro de 2023, o mundo como o conhecemos acabou! A raça humana foi exterminada por um vírus chamado 6DM (até seis dias) que indica o máximo de tempo que a pessoa pode durar antes que seu corpo se autodestrua. Mas, de alguma forma, em Londres, uma mulher ainda vive! Ela passou a vida inteira abrindo mão do que queria, tentando desesperadamente se encaixar na sociedade. Uma mulher totalmente despreparada para enfrentar o futuro sozinha. Agora, num mundo apocalíptico e com apenas um golden retriever como companhia, ela precisa viajar por cidades em chamas, desviando de cadáveres em decomposição e ratos vorazes, em uma jornada para descobrir se de fato é a última sobrevivente na Terra. Quem ela se tornará agora que está completamente sozinha?"
O livro tem 392 páginas e já está a venda no site da editora, aqui.

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Poe 200 anos

Poe 200 anos: Contos inspirados em Edgar Allan Poe, Maurício Montenegro & Ademir Pascale, orgs. 140 páginas. São Paulo: All Print, 2010.

2009 marcou o duplo centenário do nascimento de Edgar Allan Poe, escritor americano que morreu na miséria, mas cuja obra influenciou toda a literatura moderna e é hoje muito respeitada.
Poe reuniu em si um vórtice criativo do qual emergiram as bases de toda a ficção fantástica, qual seja, a ficção científica, a fantasia e o terror, além do romance de mistério e investigação. Como Poe tem um grande contingente de fãs, isso facilitou o trabalho de Maurício Montenegro e Ademir Pascale em reunir vinte e dois textos de autores de todo o Brasil nesta antologia comemorativa que se pretendia fosse publicada em 2009, mas acabou saindo no ano seguinte.
O conhecido escritor carioca Miguel Carqueija, autor de Farei meu destino (Giz, 2008), assina o prefácio, em que apresenta a vida e a obra de Poe. Ele também participa com um conto, "O quarto caso de Dupim", um texto simples, elegante e divertido no qual o detetive criado por Poe ajuda a polícia francesa a encontrar um empresário americano desaparecido em Paris. Um ótimo contraponto ao clima predominantemente funesto da antologia.
O volume também traz trabalhos dos dois organizadores e de Alex Lopes, Alícia Azevedo, André Catarinacho Boschi, Deborah O'Lins de Barros, Dimitry Usiel, Duda Falcão, Frank Bacurau, Georgette Silen, Gil Piva, Jocir Prandi, Kathia Brienza, Luicana Fátima, M. D. Amado, Mariana Albuquerque, Márson Alquati, O. A. Secatto, Ronaldo Luiz Souza, Roseli Princhatto Arruda Nuzzi e Thiago Félix.
Além do texto de Carqueija, também se destacam os contos comentados a seguir, nos quais os autores encontraram uma forma pessoal de homenagear Poe.
"Relíquia", de Duda Falcão, homenageia o conto "O gato preto", e narra a história de um menino curioso que visita uma espécie de show de aberrações literárias. Metalinguagem realizada com talento e sensibilidade poética, num estilo que lembra mais o estilo de Ray Bradbury – outro grande mestre da ficção fantástica.
"Um homem afortunado", de Kathia Brienza, embarca numa homenagem a "O barril de Amontillado", contando sobre um professor oportunista que progride na profissão às custas de trapaças. Ao ganhar um concurso de monografias acadêmicas roubando o trabalho de seu rival, sente que chegou ao ápice de sua carreira. Mas nem tudo vai ser sempre como ele deseja. Um ótimo trabalho, saboroso e bem realizado.
Mariana Albuquerque é um nome conhecido do fandom, participou de vários fanzines e antologias, e publicou os livros Coração de demônio (Writers)  e O pássaro e o rochedo (Nativa). Ela assina "A máscara de Vênus", um texto curto que homenageia "A máscara da morte rubra", sendo a única ficção científica em todo o volume. Conta o que acontece ao que resta da civilização, refugiada na Antártida depois do fim do mundo. O conto que tem a melhor primeira frase da antologia: "No equador, os oceanos ferviam". Muito inspirador.
"Inferno no circo" é um conto simples e efetivo, dentro do que se pode esperar de uma homenagem a Poe, com a bem mais que emocionante estreia no circo do orangotango de "Os crimes da Rua Morgue". O autor, Jocir Prandi, é gaúcho de Vacaria e participou de várias antologias. Seu primeiro livro é Inspiração à beira do abismo (Evangraf).
"Louco, eu?", de Ademir Pascale, baseia-se no conto "O coração delator" e conta a história de um psicopata que acredita ver demônios e falar com animais. Apesar de previsível, é um trabalho bem redigido e tem um momento brilhante, quando o protagonista dialoga com fantasmas dos autores dos livros que lê.
Fecha a antologia o texto "Memórias póstumas de Edgar Allan Poe", de Roseli Princhatto Arruda Nuzzi, que não é exatamente um conto, mas uma biografia romanceada na qual um Poe desencarnado narra uma série de fatos de sua vida que podem ou não ser verdade, pois a credibilidade foi comprometida pela mistura com ficção.
Os demais trabalhos seguem uma narrativa algo recorrente, centrada na primeira pessoa e imitando, às vezes bem, o estilo de Poe, mas que resulta em histórias previsíveis e de pouco brilho próprio.
O livro é bem editado, com erros mínimos de revisão, e são homenageados vários outros contos do "Poeta Louco". É justamente esse diálogo com a obra maiúscula de Poe que "contamina" a antologia dando-lhe contornos nobres e clássicos.
Para quem conhece o trabalho de Edgar Allan Poe, a leitura de Poe 200 anos é divertida. Contudo, quem não conhece deve ler os textos originais do autor antes de embarcar nesta verdadeira tietagem literária pois, de outro modo, a maior parte da graça será perdida.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Lua negra, Laura Elias

Lua negra, Laura Elias. 190 páginas. Capa: Altair Sampaio. São Paulo: Mythos, 2010.

Lua negra é o segundo volume da série Red kings, sequência de Crepúsculo vermelho, publicado em 2009 pela mesma editora. Mas a leitura deste volume prescinde daquele e o leitor não terá dificuldade em acompanhar a história sem ter lido o primeiro volume, como foi o meu caso.
A protagonista da série é Megan Grey, jovem de dezessete anos de idade que mantém um relacionamento emocionalmente intenso com Bill Stone, líder da banda de sucesso The Red Kings of Dark Paradise e, não por acaso, também um descendente da linhagem dos rovdyr, raça inumana de caçadores de vampiros que sustentam uma guerra secreta com poderosas e tradicionais famílias de sugadores. Envolvida na disputa, Megan foi mortalmente ferida no primeiro romance da série e sobreviveu graças ao sangue de Bill que lhe foi administrado.
A história de Lua negra inicia durante um inverno especialmente severo, que tornou branca a paisagem da pequena cidade de Red Leaves, onde Megan vive com sua família, enquanto Bill está fora em excursão com sua banda. Mas o rigor desse inverno não é natural e sim decorrente do despertar de forças antigas e poderosas. Um exército feroz de monstros do Ártico está marchando para o sul, disposto a aniquilar tudo o que encontrar pelo caminho, e a onda de baixas temperaturas e tempestades violentíssimas é apenas seu cartão de visitas.
O risco de aniquilamento une vampiros e rovdyrs contra o inimigo comum, numa batalha sangrenta nos campos nevados de Red Leaves. Segredos de família, intrigas e fantasmas do passado vão tornar a relação de Megan e Bill uma montanha russa de acontecimentos trágicos, com muita ação e violência. Megan ainda enfrentará o despertar de estranhos poderes herdados do sangue rovdyr de Bill, que ela não entende e nem controla.
Laura Elias tem uma narrativa ágil, fluida e agradável, apesar do tema mórbido. A linha principal da história acompanha o ponto de vista da Megan mas salta, eventualmente, para plots paralelos. Há uma grande quantidade de personagens coadjuvantes orbitando a relação de Megan e Bill, que os mantém quase sempre afastados e levam a impetuosa Megan a meter-se em enrascadas mortais para ficar perto de seu amado.
Nem todos os mistérios apresentados na trama são explicados, uma vez que Lua negra não é uma conclusão e a história deve ter pelo menos mais um volume, provisoriamente intitulado Luz na noite, sem data de publicação definida*.
Laura Elias é fluminense de Barra Mansa, radicada em Santo André, no ABC paulista. Apesar de pouco conhecida, é uma autora experiente, com mais de 35 livros publicados sob diversos psedônimos, tais como Loreley Mackenzie, Sophie H. Jones, Suzy Stone, Laura Brightfield. A maior parte de sua obra é formada por romances populares realistas, mas a autora também navega no fantástico – como nos livros da série Red kings – e no infanto-juvenil, como no livro Tristin Mckey e o mistério do dragão dourado, assinado como Elizabeth Carrol, publicado em 2007 também pela Mythos. Sua produtividade autoral é invejável, e ela afirma com tranquilidade que consegue produzir um romance do porte de Lua negra em poucas semanas, pois esta é uma exigência comum no mercado em que ela atua.
A autora revelou, numa de suas muitas palestras e entrevistas, que o título e os nomes dos personagens de Crepúsculo vermelho foram definidos pelo editor, originalmente eram outros. Isso porque a Mythos não sabia se um romance de horror iria emplacar entre o seu público e Laura nunca havia trabalhado no gênero, embora sempre tivesse gostado dele. Quando Crepúsculo vermelho finalmente foi distribuído, em 2009, tornou-se o seu livro mais vendido, o que lhe deu maior liberdade em Lua negra.
Os livros da coleção Mythos Books seguem o padrão dos romances de banca tradicionais, como os das populares coleções Harlequim, Bianca e Sabrina, com capas envernizadas em papel mole e miolo em papel jornal impresso em rotativa. A produção é modesta, mas caprichada, com boa apresentação e revisão, e um preço ao consumidor bastante acessível.
Laura Elias foi pioneira nos romances fantásticos brasileiros dirigidos às mulheres e distribuídos em banca. Antes dela, tivemos apenas livros de pequeno porte dirigidos aos leitores masculinos, como os da Coleção Mini Bolso, da Editora Opera Graphica, da Coleção Império, publicada pela Editora MC, e da série Pocket Suspense, da Editora Fittipaldi. Contudo, o sucesso deste trabalho da Laura Elias não se confirmou como tendência de mercado, devido aos inúmeros problemas que assolaram a indústria editorial nos anos seguintes, bem como às mudanças radicais do modelo do negócio, se é que ainda podemos chamá-lo assim. Tanto é que a autora desapareceu desse ambiente e há anos não apresenta novos trabalhos. O que é uma grande pena, em todos os sentidos.

* O romance foi publicado em 2013 pela Editora Literata sob o título de A rainha vermelha.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Sem tempo a perder

A editora Goya acaba de anunciar o pré-lançamento de Sem tempo a perder, uma coletânea de artigos publicados no blogue da autora. 
Diz o texto de apresentação: "Por anos, a escritora Ursula K. Le Guin conquistou gerações de leitores com seus mundos imaginários. Durante a última parte de sua vida, a velhice, ela explorou um novo território: ensaios para o público geral, publicados em seu blog. Esses textos estão reunidos aqui e representam a junção perfeita da escrita envolvente e evocativa de suas narrativas ficcionais com temas universais como envelhecimento, família e... amor, seja por seus amigos, seja por seus animais de estimação. Com maestria ímpar e um domínio narrativo sem igual, Le Guin conduz o leitor por seus questionamentos e reflexões sobre como envelhecer muda a percepção que temos do mundo à nossa volta. Sem cair em um monólogo piegas nem em uma glorificação infundada, ela consegue mostrar com clareza os sofrimentos e as grandezas de um período da vida tão pouco explorado na literatura."
Ursula K. Le Guin está entre as mais premiadas escritoras da ficção fantástica mundial. Falecida em 2018, aos 88 anos, Le Guin deixou uma obra extensa e valorizada por suas posições feministas e libertárias. A mão esquerda da escuridãoOs depossuídos e Floresta é o nome do mundo são bestsellers do gênero e verdadeiras unanimidades entre os leitores. Ainda que Sem tempo a perder não seja necessariamente um texto ligado a fc&f, vindo de Le Guin certamente ecoa aspectos de sua carreira que devem interessar aos fãs.
O volume tem 272 páginas e tem a data de publicação anunciada em 7 de junho, mas já é possível reservar aqui um exemplar com desconto.

terça-feira, 23 de maio de 2023

Clube Andarilhos

A exemplo de outras editoras, a Andarilho inaugurou seu próprio clube de leitura, cujo diferencial é a dedicadção à ficção fantástica. Mediante uma assinatura, o interessado recebe mensalmente uma caixa com um livro do gênero acompanhado de diversos mimos, como marcadores de páginas personalizados, placas decorativas, cartões de visita, cartões postais, livretos com contos extras etc. O conceito é trazer obras clássicas e inéditas de autores consagrados e pouco conhecidos. 
Já foram entregues caixas com os livros O cículo verde, de Arthur Machen, Pela arte, de Tod Robbins e Pesadelo, de Gertrude Barrows Bennett. 
Os livros têm formato de bolso para favorecer a leitura em todos os lugares. 
Mais informações no saite da editora, aqui.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Uma princesa de Marte, Edgar Rice Burroughs

Uma princesa de Marte (A princess of Mars), Edgar Rice Burroughs. 270 páginas. Tradução de Ricardo Giassetti. São Paulo: Aleph, 2010.

O mercado editorial brasileiro tem um déficit gigantesco em relação a fc&f de todas as épocas. Os motivos disso são inúmeros e passam pela falta de investimento, falta de educação, falta de critérios, falta de competência, entre outros. Ainda hoje, muitos editores continuam a pautar os títulos que pretendem publicar a partir de apelos acessórios, como por exemplo se o dito cujo vai ganhar alguma adaptação no cinema ou se tornar uma série de tv, como se os leitores só se interessassem por livros com esses vínculos, o que não é verdade.
Isso fica muito evidente quando se fala em Edgard Rice Burroughs (1875-1950), escritor americano que construiu um grande império de entretenimento graças a uma resma de séries de aventuras que escreveu na primeira metade do século 20. No Brasil, a única coisa que vem a mente quando se fala no autor é a série Tarzan dos macacos, personagem de grande sucesso que teve boa atenção dos editores por algum tempo – hoje está imerecidamente esquecido, uma vez que já não ocupa mais na mídia o espaço de outros tempos.
Mas, Burrougs não teve em sua carreira unicamente Tarzan. Ele foi um autor produtivo, que escreveu outros seriados interessantes e bem sucedidos, como Carson de Vênus, Pellucidar e John Carter de Marte que, inacreditavelmente, continuam inéditos em língua portuguesa. Ou estavam.
Pelo menos um desses personagens chegou enfim ao Brasil, traduzido pela editora Aleph. Uma princesa de Marte é o primeiro de uma série de onze livros da franquia Barsoom, publicado primeiramente em 1912 na forma de um seriado na revista All-Story Magazine. Trata-se de uma aventura que é, de muitas formas, o protótipo da pulp fiction que tanto sucesso fez em seu tempo. Trata-se de uma ficção científica com elementos de fantasia, chamada pelos teóricos do gênero como Ficção Planetária, pois toda a história gira em torno da descrição de um planeta alienígena, no caso Marte que, desde as declarações do astrônomo Percival Lowel, em 1895, sobre a possível habitabilidade do planeta vermelho, tornou-se alvo de interesse popular.
O romance foi influente em sua época e muitos escritores de ficção científica já declararam ter sido inspirados por ele. E não é por menos. A história é fabulosa, repleta de sense of wonder e até hoje impressiona.
Uma princesa de Marte conta o que acontece com John Carter, veterano da guerra civil americana que, depois de resgatar o corpo de um companheiro atacado por índios selvagens, abriga-se em uma caverna que é tabu entre os indígenas. Ali ele é alcançado por um gás que o adormece profundamente. Quando desperta, não está mais na caverna, mas num lugar absolutamente estranho, nu e incapaz de andar, próximo a uma estrutura repleta de ovos que ele logo vai descobrir, de uma forma bastante desagradável, ser uma incubadora dos tharks, raça de  grandes seres verdes de quatro braços. Escravizado pelos tharks, Carter aprende sua língua e os impressiona com sua coragem e força desproporcional, uma vez que a gravidade do lugar é muito menor que a da Terra. Adquire o estatus de guerreiro depois de matar um deles e, apesar de ser um prisioneiro, ganha alguma autonomia dentro da tribo, onde faz amigos como o guerreiro Tars Tarkas e a fêmea thark Zola, assim como muitos inimigos formidáveis.
Quando os tharks atacam uma frota de grandes carros a vela, Carter descobre que em Barsoom, a forma como os tharks chamam seu planeta, é habitado também por uma raça humana. Eles capturam Dejah Toris, princesa de Helium, um reino fortificado que está envolvido numa guerra terrível contra o reino de Zodanga.
Os habitantes de Barsoon, que Carter vai descobrir ser o planeta Marte, vivem em guerra constante, atacando-se mutuamente. A biosfera de Barsoon sofre um processo acentuado de decadência, os oceanos e rios secaram e a atmosfera só é mantida graças a uma usina de processamento de oxigênio que existe há tanto tempo que sua tecnologia não é mais conhecida pelos barsoonianos.
Além de homens e tharks, Barsoon é habitado por uma série de animais interessantíssimos, alguns muito perigosos, outros assustadores, como o pequeno Woola, uma espécie de cão de múltiplas pernas que se afeiçoa a Carter, o mais fiel amigo que ele faz em Barsoon.
De combate em combate, Carter conquista o coração da bela Dejah Thoris, ajuda Helium a derrotar seus inimigos e até salva o planeta da destruição iminente, mas acaba voltando à caverna na Terra, muitos anos depois de sua partida – o tempo em Barsoon progride mais lentamente que aqui - onde passa o restante de seus dias.
A aventura é relatada na forma de um diário, escrito pelo próprio John Carter nos anos em que passou na Terra e deixado como herança a um sobrinho que o revela ao leitor conforme o recebeu, após o desaparecimento do tio. O romance não especifica se Carter retornou à Barsoon, mas uma vez que este é apenas o primeiro livro de uma série, é bastante provável que a resposta seja positiva.
Contudo, não há nenhuma garantia que os demais livros da série Barsoon – ou das outras séries de Burroughs – sejam publicados no Brasil*. Ficamos um pouco menos desinformados do que antes, porém com apenas este único exemplo da divertida ficção científica deste precursor importante do gênero.
E não dá para deixar de lembrar que Uma princesa de Marte só chegou ao Brasil porque, em 2009, os estúdios Disney anunciaram a produção um filme com a história – lançado em 2012 –, além do cineasta James Cameron ter afirmado que esse romance foi parte da inspiração para fazer o seu blockbuster Avatar. Ou seja, quanto mais as coisas mudam, mais continuam iguais.

* A editora brasileira descontinuou a série em 2012 depois de publicar mais dois títulos: Os deuses de Marte (The gods of Mars), e O comandante de Marte (The warlords of Mars).

sábado, 20 de maio de 2023

Resenha do Almanaque: Guerra justa, Carlos Orsi

Guerra justa
, Carlos Orsi. 150 páginas. São Paulo: Draco, 2010.

Um dia, no futuro imaginado por Carlos Orsi, um grande meteoro vai se abater sobre a Terra Santa, transformando-a em pó e deixando uma enorme cratera onde antes havia as bases mais sagradas das religiões ocidentais, abalando a fé ao ponto de eliminar do mundo todas a religiões conhecidas. No vácuo desse cataclisma, emerge um novo profeta – o Pontífice – que funda uma religião apoiada na tecnologia de ponta, cujo santuário fica em órbita da Terra, numa estação espacial.
Essa nova teologia, chamada de Quinta Revelação, ganha poder no mundo graças a capacidade do Pontífice para prever o futuro. Sua igreja torna-se, rapidamente, um governo mundial todo poderoso, um estado policial teocrata que literalmente controla a vida de todos através de implantes de alta tecnologia, decidindo os rumos da política internacional e determinando quem vive ou morre nas inevitáveis tragédias naturais.
Mas há pessoas que não concordam com o predomínio dessa força política e movem um plano secreto para desacreditá-la. Uma delas é Rebeca, infiltrada na estação espacial da Quinta Revelação. Ela rouba dados importantes do santuário e é morta durante a fuga, mas não antes de encaminhar esses dados ao seu destino, uma inteligência artificial chamada Ma Go que, com essa informação, adquire a mesma capacidade do Pontífice para antecipar acontecimentos futuros e estabelece um outro pólo de poder para confrontar a hegemonia da Quinta Revelação.
Rebeca tem uma irmã, Rafaela, pesquisadora de implantes de processamento a serviço da Quinta Revelação, que é abordada pelo grupo de dissidentes a qual sua irmã fazia parte. Ela é levada à Ma Go e lá confronta toda a verdade por trás da doutrina da Quinta Revelação e dos supostos poderes de seu lider espiritual. Ma Go pretende usar Rafaela para presentear o Pontífice com um poder ainda mais refinado, que pode colocar a igreja da Quinta Revelação num caminho menos impiedoso.
Carlos Orsi é um dos autores mais interessantes da Segunda Onda de Ficção Científica Brasileira. Seus contos estão entre os melhores que essa geração produziu, alguns deles publicados nas suas coletâneas Medo, mistério e morte (Didática Paulista, 1996), Tempos de fúria (Novo Século, 2006), Campo total (Draco, 2013) e Mistérios do mal (Draco, 2016), além de participações em diversas antologias.
Guerra justa foi seu primeiro romance, embora seja bastante curto. Pelo menos trinta de suas 150 páginas não têm texto, pois foram usadas como respiro entre os capítulos. Pelos padrões americanos, trata-se de uma novela, portanto. Mas esse tratamento gráfico deu ao romance uma leveza visual incomum e muito personalizada, usando inclusive o interessante recurso de páginas em negro, com texto vazado em branco.
Inteligências artificiais, pós-humanidade, manipulação da opinião pública e da informação a serviço de uma religião hegemônica revelam uma visão pessimista do autor com relação às religiões, que nada teriam a oferecer ao homem além de dor e sofrimento. Entrevistado no Anuário brasileiro de literatura fantástica - 2005, Orsi afirmou que acredita que, um dia, tudo o que existe será explicado pela ciência: Guerra justa é assim o seu libelo contra o misticismo religioso.
Apesar de ter apontado suas baterias às religiões, Orsi acabou acertando em outro alvo, qual seja, a absoluta incapacidade do ser humano para fazer o bem, pois nesse futuro distópico e violento, quem redime a humanidade é a inteligência artificial Ma Go. Orsi cria, assim, sua própria versão de Deus.
Contudo, algumas coisas não convencem no enredo, a começar da premissa algo exagerada de que todas as religiões desabariam caso as cidades sagradas dos cristãos, judeus e muçulmanos fossem destruídas por uma tragédia cósmica. Afinal, estas não são as únicas religiões do mundo e tanto o judaismo quanto o cristianismo já sobreviveram, em outras épocas, a destruição de seus templos mais sagrados.
O autor demostra habilidade ao emular o estilo de autores como Willian Gibson e Bruce Sterling – os mais populares fundadores do movimento cyberpunk – como, por exemplo, a forma episódica, com uma porção de personagens cujas histórias vinculam-se frouxamente, e uma espécie de globalização narrativa que lança a trama para os quatro cantos do mundo e até para fora dele, num mosaico expressionista em que a sensação vale mais que o enredo. A única personagem mais elaborada é Rafaela, que ancora levemente a trama mas não chega a causar identificação com o leitor. Seu destino, ainda que importante para o desfecho da história, é de somenos relevância damática.
Ainda que não esteja entre seus trabalhos mais expressivos, Guerra justa é um texto autoral interessante porque Orsi expõe nele algo de sua íntima convicção filosófica, indo além do simples exercício estético literário ou do entretenimento descomprometido que geralmente caracteriza a ficção científica brasileira. Um pouco de polêmica só pode fazer bem a um gênero que tem o talento histórico de discutir temas difíceis.