Um dos temas que tem sido mais utilizados pela mídia recente nas séries e filmes de fc&f é o dos mundos ou realidades paralelas. Basicamente, não há muita diferença: são realidades geralmente similares, mas com pequenas alterações que foram consequência de alguma sutil decisão passada. Mas pode haver também grandes alterações, que tornam uma realidade absolutamente irreconhecível diante da original. Essas ideias foram exploradas primeiro pelos escritores de ficção científica, como por exemplo no conhecido O homem no castelo alto, de Philip K. Dick, recentemente adaptado para uma série de tv pelo canal de streaming Amazon Prime, em que duas realidades paralelas distintas acabam por interagir de alguma forma. Vimos isso também na série de tv Fringe, e no romance pós-modeno A cidade e a cidade, de China Miéville.
Tais especulações renderam até um gênero a parte, o da história alternativa, que consite em dramas históricos nos quais alguma alteração no passado mudou os rumos da história, como por exemplo em A máquina diferencial, de Bruce Sterling e Willian Gibson, obra fundadora do movimento steampunk. Também podemos recordar do subgênero da ficção alternativa, que propõe obras alternativas de uma outra, como O outro diário de Phileas Fogg, de Philip José Farmer, e Frankenstein unbound, de Brian Aldiss. Ou ainda, na mistura de ficção alternativa e história alternativa, como em Anno Dracula, de Kim Newman.
Enfim, há inúmeras variações sobre o tema. Seria surpreendente que os autores brasileiros apaixonados por ficção científica nunca tivessem enveredado por esses caminhos. A maior parte deles preferiu, contudo, seguir os caminhos da história alternativa, da ficção alternativa e do steampunk. São raros os exemplos de uma história sobre realidades paralelas. E é justamente este o caso do romance O homem fragmentado, do escritor paulistano Tibor Moricz.
Conta a história de um escritor que, sofrendo de culpa pela morte acidental de seu único filho, num momento de depressão intensa decide dar cabo da própria vida com um tiro de revólver na cabeça. Ao acionar o gatilho, porém, nada acontece: a arma parece ter falhado. Mas ao abrir os olhos adepois da grande tolice que havia intentado, dá de cara com a expressão assustada de seu filho não mais morto.
É claro que a arma funcionou e, na sua realidade original, ele estourou os miolos. Mas sua consciência escapou da morte e passou a saltar entre as múltiplas realidades. A partir daí, a realidade desse homem infeliz vai se tornar um turbilhão de jornadas alucinantes por diversas realidades paralelas nas quais as coisas são cada vez mais bizarras. A certa altura, quando as coisas já pareciam totalmente fora de controle, ele encontra uma outra viajante entre as realidades, que vai ajudá-lo a entender e aceitar o novo modelo da sua vida, no qual a morte é apenas um episódio como outro qualquer.
Moricz é um dos nomes mais destacados da fase inicial da terceira onda da ficção científica brasileira, ainda na primeira década do século XXI. Seu romance de estreia foi Síndrome de Cérbero (2007), seguido de Fome (2009) e O peregrino (2011). Mais recentemente, o autor estabeleceu sua base editorial na internet, publicando exclusivamente em ebooks, inclusive reeditando os seus primeiros trabalhos no formato digital, mas O homem fragmentado segue existindo apenas no formato impresso. O autor sempre se mostrou ousado nas temáticas de seus textos e, apesar de ter iniciado já com boa técnica, ganhou maturidade ao longo do tempo. O homem fragmentado é certamente seu livro mais maduro e intimista, aquele com o qual ficou mais a vontade como autor. A história é intrigante e tem mistério suficiente para motivar o leitor a continuar lendo, mesmo nas situações mais absurdas nas quais lança o protagonista.
Infelizmente, Moricz parece ter reduzido o ritmo: seu romance mais recente, a ficção científica planetária Dunya, foi publicada em 2017, há já quatro anos. Talvez esse lapso tenha a ver com a crise editorial que desmotiva a publicação de livros no país, ou porque o Brasil pareça cada vez mais com os cenários absurdistas que o protagonista de O homem fragmentado tem que lidar. O que é uma pena, pois a ficção de Tibor Moricz é cada vez mais necessária no Brasil.