terça-feira, 29 de março de 2011

Resenha: O peregrino


Um homem sem memória desperta no interior de uma caverna de um deserto desconhecido. Ao seu lado, uma pistola Colt do século XIX. Com um tiro certeiro dela, o homem esfarrapado e sedento mata o primeiro cavaleiro que vê a distância, para dele roubar as roupas, as botas e, principalmente, o cavalo.
Sonhos enigmáticos povoam a mente do pistoleiro, reconstruindo aos poucos as memórias perdidas, nos quais ele se vê ora como prisioneiro dos índios, ora como um rico investidor de uma ferrovia.
Depois de uma breve refrega num posto comercial a beira do deserto, John Doe, um jovem de 12 anos, passa a seguir o desconhecido, num misto de admiração, medo e ódio. A cada parada, tiros e mortes. E a cada partida, um crescente contingente de seguidores, esperançosos das mudanças que a jornada do peregrino anuncia.
Esta é a história de O peregrino: Em busca das crianças perdidas, novela inédita escrita pelo paulistano Tibor Moricz, autor de Síndrome de Cérbero (2007) e Fome (2008).
Imediatamente salta aos olhos a identificação com a saga de A Torre Negra, de Stephen King, que parece ter realmente inspirado o autor. Mas os objetivos de Moricz são mais modestos que os do escritor americano. Contudo, o formato de jornada também está presente, uma espécie de road novel, típico do gênero. O peregrino ainda reporta ao longa metragem O estranho sem nome (High plains drifter, 1973), o faroeste mais lynchiano da filmografia de Clint Eastwood.
Ainda que não seja intencional, O peregrino dialoga de várias formas com outro romance de faroeste da FC&F brasileira recente: Areia nos dentes, de Antônio Xerxenesky, publicado em 2008 pela Não Editora, e republicado em 2010 pela Editora Rocco. Porém, enquanto os zumbis de Xerxenesky voltam-se para os leitores de horror, os ciborgues de Moricz escolhem especificamente os fãs de ficção científica.
O mundo enlouquecido de O peregrino apresenta apenas três cidades: Downtown, o vilarejo decadente dos explorados, Middletown, a cidade da tecnologia e da escravidão operária, e Uptown, que parece ser a fonte de toda a opressão. A primeira parte da história é centrada em Downtown, e a narrativa predominante é de faroeste clássico. Depois, em Middletown, assume aspecto steampunk, em um cenário cosmopolita com muita atividade industrial e máquinas a vapor.
Coisas estranhas como as balas do Colt que nunca se acabam, homens e animais ciborgues e uma montanha consciente que caminha pelo deserto, tornam aceitável a dieta minimalista do pistoleiro, que só ingere bourbon e adora tomar banho.
Apesar de um ambiente de faroeste convencional, com saloons, índios, xerifes e tiroteios, Tibor não fez uma história previsível. O desfecho surpreende, com a narrativa deslocando-se para um plano onírico em que as leis naturais deixam de se aplicar e tudo pode acontecer. A estrutura técnica do trabalho é muito boa, mais acessível que o escatológico Fome, romance anterior de Moricz.
O peregrino é um bom entretenimento com um leve toque existencial, mas seu maior mérito é deixar várias interpretações abertas ao leitor. E isso é muito mais do que a maioria da ficção fantástica brasileira tem oferecido.
O peregrino: Em busca das crianças perdidas, Tibor Moricz. Editora Draco, 2011. 196 páginas. OBS.: Esta resenha é fruto de um pedido pessoal de Tibor Moricz que, para esse fim, cedeu-me uma cópia identificada do arquivo de pré-impressão da Editora Draco, a publicadora do livro.

2 comentários:

  1. Os paralelos com a série da Torre Negra existem, mas preciso esclarecer que Tibor Moricz NÃO LEU nenhum dos livros de Stephen King que a compõem.

    Debati - e insisti - com ele desde o início a respeito da conveniência de deixar isso bem claro, em entrevistas, etc., mas Tibor é de opinião que se disser "Não li 'A Torre Negra'" as pessoas, compreensivelmente, irão achar que ele está se justificando e, ao contrário do que falou, sim, a leu.

    Mas o fato é que ele não leu, o que torna tudo ainda mais interessante, não?

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  2. Oi Saint-Clair. Obrigado pelo comentário.
    Eu sei que Tibor não leu o romance de King, ele me disse isso quando escrevi a resenha. Mas eu decidi manter o comentário por vários motivos. Primeiro porque ele ter lido ou não é irrelevante. A Torre Negra é um clássico, um bestseller, e há inúmeras outras histórias inspiradas nele, às quais o autor pode ter tido acesso. Influência indireta, portanto. Em segundo lugar, porque a resenha trata das minhas impressões sobre o que li. E terceiro, porque não se pode tapar o sol com a peneira. As semelhanças são visíveis, qualquer um percebe. Não dizê-lo soaria corporativista.
    Além do que não há nada de errado com isso. Todos somos influenciados por tudo o tempo todo. Não existe obra 100% original e não entendo por que todo mundo fica se justificando quando essas similaridades acontecem. Relaxem, ninguém está acusando o autor de nada. A própria Torre Negra é uma versão de O senhor dos anéis e King deixou isso bem claro, logo de cara. Ninguém reclamou.
    Mas confesso que omiti algumas coisas na resenha, inclusive críticas - que foram só para os olhos do autor - apenas para não entregar o final da história. Essas, só no Anuário 2011.

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