Asilo nas Torres, Ruth Bueno. 152 páginas. Coleção Autores Brasileiros, nº 38, Editora Ática, São Paulo, 1979.
O período entre 1975 e 1982, aproximadamente, é tido como perdido para a ficção fantástica brasileira, quando o gênero entrou numa hibernação que só terminaria com o surgimento dos fã-clubes e fanzines dedicados ao tema, quando despontou uma nova geração de fãs e autores que desconhecia totalmente aquelas que a antecederam. Desde então, a restauração dessa memória tem sido trabalho de muitos especialistas e muito já foi recuperado. Mas aquele período, em especial, ainda parece uma falha na evolução do gênero no país.
O Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica dedicou-se, desde o princípio, a identificar as obras históricas dos gêneros fantásticos de autores brasileiros e, aos poucos, logrou preencher lacunas que permitem observar com mais precisão a real trajetória da fc&f nativa. E o que se percebe é que não houve, de fato, uma estagnação naqueles oito anos.
Obras de grande vigor e criatividade foram publicadas naquele período, porém uma coisa realmente se deu: os autores que as escreveram não estavam vinculados ao fandom anterior – chamado de Primeira Onda ou Geração GRD –, nem se vincularam depois à dita Segunda Onda, surgida nos fanzines. Eram, geralmente, autores experientes, de carreira feita, que ousaram adotar o gênero para estabelecer algum tipo de reflexão política e social que os anos de chumbo esforçavam-se em obliterar.
São desse período, por exemplo, O necrológico, de Vitor Giudice (1972), Sombra dos reis barbudos, de José J. Veiga (1972), Fazenda modelo, de Chico Buarque (1974), Catatau, de Paulo Leminski (1975), O fruto do vosso ventre, de Herberto Salles (1976), As mulheres dos cabelos de metal, de Cassandra Rios (1976), A invasão, de José Antônio Severo (1979), Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (1981), Mistérios, de Lygia Fagundes Telles (1981), entre outros. Ou seja, aqueles "anos perdidos", na verdade, revelaram algumas das mais importantes obras da ficção fantástica nacional. E entre elas figura também o objeto desta resenha, Asilo nas Torres, de Ruth Bueno, publicado em 1979.
Ruth Bueno é a assinatura literária de Ruth Maria Barbosa Goulart Bueno (1925-1985). Mineira de Juiz de Fora, ficcionista, poetisa, ensaísta, advogada e professora de Direito, sua estreia na literatura aconteceu em 1966 com a coletânea de contos e poemas Diário das máscaras. Escreveu ficção e ensaios, dedicando-se a causas feministas em obras que tratam principalmente do desamor e da busca pelo auto-conhecimento. Sua última publicação foi O livro de Auta, de 1984.
Asilo nas Torres é uma novela alegórica, absurdista e distópica, curiosamente instalada num planeta Saturno que não o é. Lá, habita um povo de comportamento individualista e desiludido, que vive em função das Torres, três edifícios públicos gigantescos que concentram o trabalho burocrático da sociedade. Na mais alta das torres, num andar acima das nuvens, mora o Rei que quase nunca se mostra, mas concentra grande poder político.
As Torres são extremamente hierarquizadas e, como em qualquer repartição pública, os amigos do Rei são sempre favorecidos. Elas são alimentadas por máquinas barulhentas, mas delicadas, que precisam de temperaturas baixas para funcionar a contento. Por isso, o ar no interior das Torres é mantido bem gelado, de forma que todos os que nelas trabalham precisam estar sempre bem agasalhados.
Os trabalhadores, chamados de asilados, têm uma relação de amor e ódio com as Torres, pois o ambiente externo, aprazível e pastoral, com arco-íris decorando o céu a cada crepúsculo, despertam o desejo de liberdade. Mas como o asilo nas Torres é a única forma de garantir o sustento, elas acabam sendo, para eles, mais reais que o belo mundo que as cerca.
As Torres foram construídas em meio a um descampado, cercadas por grades e muros. Mantêm-se em constante trabalho de ampliação, para acomodar o crescente contingente de asilados. De alturas diferentes entre si, são branquíssimas como tudo mais a volta, incluindo as onipresentes iúcas, plantas decorativas de flores muito brancas.
Os asilados, anônimos e nomeados apenas pela letra inicial de seus nomes, relacionam-se de forma doentia e desesperada, utilizando toda a sorte de artimanhas para manterem seus postos de trabalho e a influência que julgam ter. Amigos do rei exploram seus amigos, estes exploram os chefes de setor que exploram seus subordinados; homens exploram mulheres etc. O ambiente burocrático favorece a evolução de situações bizarras, como trabalhadores que passam a vida toda realizando tarefas inúteis, sem que ninguém, nem os próprios, se aperceba disso. Mesmo as eventuais falhas no serviço de energia não conseguem mudar a rotina tirânica dos asilados, rigidamente controlada pelo relógio.
Duas mulheres polarizam a narrativa, as únicas com nomes. Salomé, sempre envolta em véus e acompanhada de um séquito de harpias, é uma bruxa cruel que domina os ventos e as artes da alquimia. E Assunta, mulher simples que leva a vida de forma discreta e esperançosa. Nem mesmo elas têm controle sobre as próprias vidas. Cada uma, a seu modo, é escrava das Torres, como todos os asilados.
Mas algo mais não vai bem. Filetes de água cristalina irrompem, sem explicação, nas paredes de concreto das Torres, em locais onde não há nenhum encanamento. Como os técnicos não conseguem identificar problema, a vida nas Torres segue inalterada. Contudo, serão a pista para a definição dos destinos dos asilados, suas Torres e principalmente de Salomé e Assunta, num desfecho dramático e simbólico.
A narrativa da novela é multifacetada, construída através de relatos breves e aleatórios de situações cotidianas dentro e ao redor das Torres, entremeados por trechos de versículos bíblicos. Ruth Bueno investe fortemente nas relações interpessoais, com surpreendentes inserções de um erotismo quase pornográfico.
Ainda que a novela seja curta – apenas 150 páginas – e o texto leve, a leitura é difícil e dolorida, embora não chegue a ser depressiva. Os episódios encadeados amarram-se frouxamente e só um certo distanciamento, obtido com uma leitura de pelo menos três quartos do texto total, consegue revelar uma imagem mais clara.
A ensaísta Cristina Guzzo diz, no verbete dedicado à Ruth Bueno em Latin american science fiction writers: An A-to-Z guide (página 41), que "há um paralelo claro na novela entre a cidade ficcional criada em Saturno e a fundação histórica da moderna cidade de Brasília, a nova capital do Brasil construída nos anos 1960 em meio a floresta". E conclui: "A novela está perfeitamente adaptada ao contexto brasileiro, ajudando a fazer dela um dos melhores exemplo da ficção científica escrita no Brasil".
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