Obra completa, Murilo Rubião. 232 páginas. Coleção Companhia de Bolso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Sempre que alguém decide relacionar os mais significativos fantasistas da literatura brasileira, o nome do mineiro Murilo Rubião (1916-1991) é um dos primeiros a serem lembrados. E é surpreendente que seja assim, considerando que é um autor pouco lido, cuja obra é reduzida, limitando-se a apenas trinta e três contos publicados entre 1947 e 1991.
O fato de Rubião ser tão lembrado talvez seja efeito direto da força de seus textos, emotivos, perturbadores e extremamente bem escritos. Era um perfeccionista que nunca dava um texto por terminado. A cada republicação – suas coletâneas sempre traziam republicações ao lado de inéditos – ele os revisava como um joalheiro caprichoso.
Seu primeiro livro foi O ex-mágico, publicado em 1947. Depois vieram A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias e O convidado (ambos de 1974). Antes de sua morte, ainda publicou A casa do girassol vermelho e O homem do boné cinzento, em 1991. Seus livros foram traduzidos para o inglês, alemão, espanhol, tcheco e publicados em diversos países.
O fantástico de Rubião é muito pessoal. O absurdo surge de forma natural, sendo aceito placidamente pelos personagens, como nas histórias de Franz Kafka (1833-1924). Não se trata exatamente de uma ficção de gênero e é de difícil classificação. Tal como os textos de outro importante fantasista brasileiro contemporâneo, o goiano José J. Veiga (1915-1999), Rubião não segue protocolos específicos. Há um amálgama de ficção científica, fantasia, horror e realismo mágico, num naturalismo muitas vezes desconcertante e, quase sempre, exasperante.
Rubião afirmava ter sido influenciado pela leitura de Machado de Assis e da Bíblia Sagrada. Tanto que, cada um de seus contos traz uma epígrafe bíblica que dialoga intimamente com o contexto, as vezes sendo eles mesmos a chave do entendimento da história ou da ampliação desse entendimento para outras interpretações.
Obra completa, publicado na coleção de bolso da Companhia das Letras, apresenta num único volume todos os trinta e três contos que Rubião publicou em vida (ele deixou alguns trabalhos inéditos), pintando o mais amplo panorama da obra desse escritor.
Destaco aqui alguns daqueles que mais me impressionaram, embora nenhum possa ser preterido. Cada conto de Rubião encerra um universo completo a ser explorado e supera qualquer escala de avaliação que eu possa um dia ter sonhado estabelecer.
"O pirotécnico Zacarias" abre a coletânea e é provavelmente o seu conto mais conhecido. Um homem morre atropelado na beira de uma estrada, mas ressuscita e segue sua existência, mantendo as mesmas atividades de quando ainda vivia.
Em "O ex- mágico da Taberna Minhota" um homem ressente-se da sua habilidade natural de realizar magia verdadeira e vive infeliz por não conseguir ter uma vida normal. Busca desesperadamente pelo anonimato, sempre fracassando, uma vez que não tem controle sobre seus poderes. Um dia, porém, a magia acaba.
"Bárbara" narra o martírio de um homem que faz de tudo para satisfazer os pedidos absurdos de sua esposa. E quanto mais ele a adula, mais ela engorda.
Em "A cidade", um caixeiro viajante chega de trem a uma cidade estranha e, quando pede uma informação banal, é preso, porque a polícia estava na captura de um homem perigoso cuja única identificação era que ele fazia perguntas. Desesperado, o homem vê que fica cada vez mais difícil explicar sua inocência, pois cada pergunta reforça sua culpa.
"Os dragões" conta a história de um homem que adota dois filhotes de dragão e os cria como se fosse seus filhos, passando por muitos problemas na educação dos mesmos.
"Teleco, o Coelhinho" é um dos textos mais bizarros da coletânea. Um homem recolhe em sua casa um estranho ser metamorfo, que muda de aparência conforme seu estado de espírito. A princípio a relação é divertida, mas deteriora-se ao longo do tempo até que a vida em comum se torna insuportável.
"O edifício" conta como é executado um ousado projeto arquitetônico: um edifício com centenas de andares. Depois de séculos de trabalho, quando o prédio já atinge 900 andares, o projeto entra em colapso financeiro, desestabilizando a vida de toda a sociedade.
"A fila" é o melhor texto do livro. Um homem do interior vai à cidade grande levando para um industrial importante uma mensagem que só pode ser entregue pessoalmente. Mas a fila de atendimento nunca acaba e sua vida vira um verdadeiro inferno.
Em "O bloqueio" um homem recentemente separado da esposa dominadora, esconde-se no apartamento de um prédio que parece estar sendo demolido.
"A diáspora" conta a história de um grupo de trabalhadores que chega a uma pequena cidade onde se pretende construir uma ponte, mas a população local se recusa a permitir que a obra seja executada.
"Epidólia" tem um componente lovecraftiano perturbador. Conta a história de um homem que persegue obsessivamente a mulher que o abandonou. A busca o leva a um lugar cuja geografia tem um comportamento bizarro, onde ele obtém estranhas revelações sobre a vida da moça.
"O convidado" é um texto que o autor afirma ter passado vinte anos escrevendo. Um homem vai a uma recepção misteriosa, feita em homenagem a um convidado desconhecido. Aborrecido com as pessoas dali, ele tenta ir embora, mas simplesmente não consegue afastar-se do lugar.
Um conceito similar envolve "Os comensais", texto que fecha a coletânea. Um homem faz suas refeições num restaurante em que todos os demais frequentadores estão imóveis. Dia após dia, ele percebe que os rostos mudam, embora ele nunca veja ninguém entrando ou saindo do lugar. Garçons trocam os pratos continuamente, mas apenas ele come o que é servido. Perturbado, ele tenta racionalizar o que acontece, mas quanto mais se envolve na questão, menos sentido encontra.
Como se pode perceber, a obra de Murilo Rubião é vultosa em significados, um amplo cabedal de ideias ainda a ser estudado. Um monumento praticamente desconhecido tanto do grande público quanto do fandom brasileiro, apesar do nome do autor estar na ponta da língua dos comentaristas.
Rubião é, certamente, um dos melhores modelos para uma ficção fantástica brasileira, que ainda se debate em busca de sua fisionomia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário