Não Somos Humanos: Romance Bioético, Domingos Pellegrini. 128 páginas. Ilustrações de Antonio Khel. São Paulo: Nova Alexandria, 2005.
Não somos humanos: romance bioético é um dos inúmeros exemplos da boa literatura fantástica realizada por autores que se dedicam principalmente ao mercado de livros infanto-juvenis. Não são poucos esses exemplos, como pode comprovar uma pesquisa rápida em qualquer biblioteca escolar ou na seção infantojuvenil das livrarias.
Os fãs de arte fantástica não buscam por estes livros por puro preconceito. Muitos deles pensam que a boa literatura de gênero, especialmente a ficção científica, não pode estar associada ao leitor infantojuvenil por ser uma literatura exclusiva aos culturalmente bem dotados. Mesmo alguns autores identificados com a ficção científica olham o mercado infantojuvenil com desprezo. Erram nos dois conceitos porque a ficção científica é, sim, um gênero propício e adequado para leitores jovens e não é, de modo algum, privilégio dos bem nascidos e bem educados.
Dessa forma, esses leitores deixam de conhecer trabalhos excelentes de autores premiados e bem aceitos pelo público, como é o caso de Júlio Emilio Brás, Simone Saueressig, Márcia Kupstas, Ivan Jaff e tantos outros, entre os quais também se encontra Domingos Pellegrini, contista, poeta e romancista premiado com o Jabuti de 1977 com O homem vermelho, seu livro de estreia. No gênero fantástico teve também publicados Tempo de guerra (Companhia das Letras, 1997) e O começo de tudo (Nova Alexandria, 2003).
Em Não somos humanos, o autor narra, num texto leve e direto, a história futurista de João Antônio e Ana Rita, casal de escravos numa fazenda industrial de frutas. Eles são hominis, clones humanos cujos códigos genéticos são manipulados em laboratório de forma a produzirem trabalhadores braçais perfeitos, fortes e estúpidos. Como acontece com os escravos em qualquer sociedade humana, os hominis são maltratados e humilhados por seus senhores.
Um dia, Ana Rita reage aos abusos de um guarda e João Antônio corre em seu socorro. Dominados, ambos são conduzidos para a reprogramação, um tratamento de choque que reduz a capacidade mental dos hominis e os torna mais dóceis. Porém eles conseguem escapar da reprogramação e fogem da fazenda.
Sem muito conhecimento do mundo para além das cercas, eles começam a descobrir coisas surpreendentes, inclusive o interesse sexual mútuo, mas têm de continuar a fuga quando percebem que estão sendo caçados.
Acidentalmente chegam a uma casa onde habita um velho, o Professor, que é auxiliado por um homini intelectual chamado Jonas. O Professor esconde João Antônio e Ana Rita dos perseguidores e depois os encaminha, guiados por Jonas, para uma comunidade de hominis fugidos que vivem nas montanhas.
Lá, João Antônio e Ana Rita encontram uma realidade que a princípio é para eles maravilhosa: hominis machos e fêmeas vivendo livres e juntos, em democracia, subsistindo por seus próprios esforços. Com o passar do tempo, aprendem muitas coisas novas e percebem que nem tudo ali é maravilhoso. Há hominis que trabalham mais que outros, alguns tem privilégios e outros não tem nada. Há inveja e ciúme, e mesmo João Antônio e Ana Rita vão ter de enfrentar esse tipo de sentimentos.
Como ainda existe o perigo dos humanos recapturarem os hominis, ou coisa pior, é formada uma comissão que vai encontrar-se com os líderes de um movimento de libertação dos hominis, e João Antônio é recrutado para participar. A comissão vai à cidade grande cumprir sua tarefa e é lá que João Antônio se depara com situações extremas de convívio entre humanos e hominis e sente, mais uma vez, o que é estar do lado mais fraco. Enquanto isso, na comunidade, Ana Rita tem de enfrentar a antipatia perigosa de Sara, companheira de um dos líderes da comunidade que vê em Ana Rita uma rival política. Mas há outras serpentes dissimulas no paraíso dos hominis das montanhas, e o holocausto vai, invariavelmente, alcançá-los.
Não somos humanos está longe de ser um trabalho de ponta no gênero da ficção científica. De fato, há muitos textos na mesma linha, mais agudos e mais efetivos tanto no aspecto formal quanto na discussão da ética da clonagem, do preconceito e da escravidão. O exemplo mais expressivo dentre eles é Admirável mundo novo de Aldous Huxley, com o qual o trabalho de Domingos Pellegrini dialoga com mais proximidade.
Não há os arroubos de cientificismo típicos da ficção científica, nem elaboradas teorias paracientíficas para justificar ou explicar as extrapolações adotadas, mesmo assim o texto se sustenta, sem qualquer furo ou inconsistência, pois Pellegrini escreve bem e ousa ir, muito à vontade, onde a maioria dos autores de ficção científica têm dificuldades de navegar. Por exemplo, ainda que tenha um texto simples e leve, Pellegrini não evita inserir ótimas cenas de sexo na narrativa. Da mesma forma, não se furta a tratar a crueldade de modo muito cru e chocante, uma vez que a pior das heranças humanas não deixou de aparecer também entre os hominis, igualando senhores e servos senão na vida, pelo menos na tragédia.
E o leitor conclui que, afinal, os líderes hominis estão errados numa coisa: eles também são humanos, sim.
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