Anjos, mutantes e dragões, Ivanir Calado. 296 páginas. Coleção Pulsar. São Paulo: Devir Livraria, 2010.
Ivanir Calado, escritor carioca de Nova Friburgo, é dono de um trabalho significativo dentro dos gêneros fantásticos. Estreou em 1985, com os romances infantojuvenis O grilo do grilo e A salamandra de jade.
Em 1990 publicou A mãe do sonho, jornada de horror ao estilo de Stephen King, com mitologia indígena em doses generosas. Em 1992, publicou a novela juvenil O lago da memória e o romance histórico A imperatriz do fim do mundo que, embora seja pouco lembrado dentro do fandom, teve boa acolhida no mainstream e serviu de referência para a minissérie global O quinto dos infernos.
Depois de um período de dez anos sem um novo livro, Calado publicou em 2002 o romance de fantasia A caverna dos titãs e mais cinco anos depois, O mundo das sombras: O nascimento do vampiro. Os longos intervalos entre os livros foram ocupados com a publicação muitos contos publicados em diversas antologias.
Anjos, mutantes e dragões é resultado da reunião desses contos em um único volume. O livro, publicado pela Devir Livraria em sua Coleção Pulsar, foi dividido pelo organizador Roberto de Sousa Causo, em cinco capítulos distintos, cada um voltado para um momento específico do trabalho do autor.
O primeiro comporta um único conto, o perturbador "Paradoxo de Narciso", publicado originalmente em 1991 no extinto periódico Isaac Asimov Magazine. O texto narra um encontro muito íntimo de um viajante do tempo consigo mesmo.
A segunda parte apresenta três noveletas, que foram publicadas em 1994 na coleção Fatos e Relatos, da Ediouro. Os contos foram escritos por encomenda a partir de sugestões da organizadora da coleção, Helena Rodarte. "O refém" parte de uma premissa algo convencional na literatura moderna, a violência urbana e a marginalidade. Uma dupla de delinquentes invade um apartamento e faz um garoto como refém. Assustado, o menino tem sua mente perturbada por uma aventura imaginária na qual ele é o piloto de uma espaçonave sendo sequestrado por alienígenas beligerantes. As duas narrativas vão se sobrepondo até o leitor ter dúvidas sobre qual delas é a real.
"Tia Moira" é mais lírica, mas não deixa de guardar uma certa familiaridade com o naturalismo mainstream. Conta o drama de uma família de classe média que se vê agitada pelas previsões de Moira, uma tia solteirona viciada em telenovelas. O imponderável surge quando um dos filhos nota que as previsões da Tia Moira sobre uma telenovela estão se manifestando em sua própria vida. A ideia não é inédita na fc, mas é realizada com muita classe e identidade, sendo um dos pontos altos do volume.
Em "O anjo", Calado volta ao tema das viagens no tempo, contando a história do principal líder da sociedade de um Rio de Janeiro futuro e utópico, que acredita que seu sucesso é fruto das desgraças passadas de sua vida. O dilema se impõe quando chega a ele um artefato revolucionário que pode permitir que evite suas tragédias pessoais, arriscando porém a integridade do futuro positivista que ajudou a construir. Tal como em "O refém", o leitor será parte importante no desfecho da narrativa.
A terceira parte da antologia é composta por sete contos curtos dedicados a cada um dos pecados capitais. Os textos também foram resultado da encomenda de Helena Rodarte, e publicados em 1995 na coleção Eles são sete, da Ediouro. Quatro contos acontecem no mesmo universo. "Bobo (A ira)" é uma história pungente, sobre uma civilização alienígena dominada por um governo totalitário em que uma casta de humoristas propositalmente deformada apresenta um espetáculo autorizado de crítica ao governo. "O dia do dragão (Preguiça)" é quase uma releitura de O hobitt, de J. R. R. Tolkien. Numa aldeia escravizada por um dragão, um jovem é escolhido para ser a oferenda anual que vai alimentar o monstro. Decidido a não morrer sem luta, resolve atacar o dragão de surpresa e matá-lo. Em "Kilumbo (Orgulho)" e "A volta do dragão (Avareza)", um ancião de uma raça alienígena conta ao neto histórias de seu passado. São estas duas narrativas que amarram as quatro num único contexto cenográfico.
As outras três histórias são independentes. Em "Operação Lobo (A gula)" ex-espiões da guerra fria trocam confidências numa mesa de bar e um deles conta uma de suas aventuras mais secretas. "Não é por inveja (Inveja)" é uma narrativa em primeira pessoa, na qual um estudante e seu melhor amigo passam pela vida acadêmica numa relação de amor e ódio que, por falta de sinceridade, pode culminar em tragédia. "Avthar (Luxúria)" fecha o capítulo como o melhor conto dessa série. Um menino chega a puberdade e desenvolve o poder de restaurar a vida animal e vegetal a sua volta quando tem orgasmos. Porém, os sacerdotes do lugar não concordam com o valor de seus milagres e o banem para uma ilha deserta até que ele consiga purificar seu poder.
A quarta parte da antologia traz dois contos publicados em 2000 na coleção Aventura no tempo, da Editora Record, em referência aos 500 anos do descobrimento do Brasil. "Foi assim (Talvez)" é uma interessante reconstrução do Brasil pré-cabralino e romantiza o encontro dos hoje extintos Homens do Sambaqui com uma desconhecida raça de índios mais forte e melhor equipada. O segundo conto é "A carta do filho da puta", uma narrativa epistolar na qual um grumete analfabeto escreve uma carta imaginária a sua mãe, igualmente analfabeta, contando seus sofrimentos, dissabores e alegrias vividos durante a viagem da esquadra de Cabral ao Brasil, em 1500, da qual ele fazia parte.
A quinta e última parte apresenta dois textos, sendo o primeiro o único texto inédito da antologia, o conto "Eleanor Rigby", inspirado numa canção da banda britânica The Beatles, originalmente escrita para compor uma antologia temática de autores fãs nos anos 1980, que nunca foi publicada. O texto destaca-se também por ser o único no qual o autor fez experiências formais, com frases inacabadas e períodos truncados.
Fecha o volume a notável novela cyberpunk "O altar dos nossos corações", publicado originalmente na antologia lusófona O Atlântico tem duas margens (Caminho, 1993), que consagrou Ivanir entre os grande nomes da fc&f nacional. A história fala sobre a corrupção do governo brasileiro, as trapaças, armações, acordos escusos e o controle da verdade pela mídia, em meio a uma sociedade desonesta e violenta controlada pelo crime organizado. Escrita há duas décadas, a novela continua atual e impactante.
Ivanir Calado que, além de escritor, é músico, compositor, tradutor e diretor de teatro, confirma nesta antologia todas as qualidades autorais demonstradas em seus romances. Um trabalho que agrada tanto aos jovens quanto aos veteranos leitores de fc&f, pois navega em todos os gêneros com desenvoltura e qualidade. Um volume que certamente vai satisfazer até aos leitores mais exigentes.
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