Tupinilândia, Samir Machado de Machado. 454 páginas. São Paulo: Todavia, 2018.
Nada é mais estimulante do que ler uma história em que o sentido de maravilhamento se faz presente. Isso é cada vez mais difícil para um leitor veterano, já tão distante daquela tenra idade em que tudo soa maravilhoso. O leitor da fantasia se esforça, busca por isso, mas raramente reencontra o mesmo senso do maravilhoso de suas primeiras leituras. No meu caso, eram os romances de Julio Verne, as aventuras do Tarzan de Edgar Rice Burrougs e os contos de Ray Bradbury. E ainda mais difícil é encontar esse tipo de sensação na literatura brasileira, tão sofrida quanto o povo daqui. São muitas tristezas, muitas tragédias, muita violência, que acampanham os habitantes de Pindorama desde o dia em que os navegantes portugueses desembarcaram em 1500.
Por isso é preciso falar de Tupinilândia (Todavia, 2018). Nada poderia ser mais antropofágico, no sentido estrito de Mario de Andrade, do que este romance do escritor portoalegrense Samir Machado de Machado, autor com muita experiência no fantástico, tendo sido organizador e editor da revista Ficção de Polpa, publicada entre 2009 e 2013 pela Não Editora, um dos melhores periódicos literários do gênero no país. Machado também publicou antes alguns títulos bem recebidos pela crítica, como O professor de botânica (2008, Não) Quatro soldados (2013, Rocco) e Homens elegantes (2016, Rocco).
Mas é em Tupinilândia que o fenômeno acontece. Trata-se de uma fabulação divertida e empolgante, cheia de ação e aventura, sem se afastar daquilo que nos une como nação.
A história conta a aventura de um grande empreiteiro brasileiro que, depois de ter encontrado Walt Disney em sua visita ao Brasil em 1941, quando ainda criança, e apaixononado por cinema, nunca mais se afastou de ambos. Leitor ávido dos quadrinhos de Carl Barks, foi construindo ao longo da vida o projeto de um parque temático que repetisse no Brasil os mesmos conceitos de cultura e identidade para os brasileiros que a Disneylândia tem para os americanos. Ao herdar a fortuna da família, passa a investir parte de seu patrimônio na aventura de construir próximo às margens do Rio Xingu, em pela floresta amazônica paraense, a sua Tupinilândia. Enquanto a triste história do Brasil acontece lá fora, o projeto é tocado em segredo com o patrocínio grandes empresas nacionais.
Em 1984, em plena campanha eleitoral para escolher o primeiro presidente não militar depois dos vinte e um anos de ditadura, o parque está quase pronto, e para lá vai um seleto grupo de pessoas, entre empresários, apoiadores e familiares, convidados para conhecer o lugar em primeira mão. É claro, desde o princípio, que aquilo está fadado ao fracasso, mas algo tão grandioso não pode simplesmente acabar sem deixar consequências. E elas virão.
O romance está dividido em duas partes, mais um prólogo e um epilogo. A primeira parte, chamada "Versão Brasileira", conta sobre os dias finais de conclusão do ousado projeto e os dias da visita-piloto ao parque. Tupinilândia – o parque – é, obviamente, apenas uma criação de Machado, mas bem que poderia não ser. Na verdade, seria maravilhoso se fosse real. Deveria ser.
Gosto especialmente do momento em que o autor, na figura de um jornalista contratado para escrever um livro sobre o parque, descreve as histórias em quadrinhos do personagem Arthur Arara, a versão tropical do Mickey Mouse. Como seria bom ler aquelas revistas! Sinceramente, espero que, algum dia, inspirado pela leitura de Tupinilândia – o romance –, algum quadrinhista decida dar corpo a elas, como aconteceu com as histórias de "O Escapista", citadas por Michael Chabon em seu aclamado romance As incríveis aventuras de Kavalier & Clay (2000). Mas o maravilhamento não para por aí. Na verdade, a coisa só melhora a cada capítulo.
Essa primeira parte está dividida em três apisódios, que levam nomes de grandes romances da ficção científica: "1984", "Admirável mundo novo" e "Não verás país nenhum".
A segunda parte tem o título de "Mundo perdido", que dá a dica do que aconteceu ao parque trinta anos depois, e também está dividida em três episódios, que homenageiam filmes de cinema do gênero: "Uma nova esperança", "A terra em que o dia parou" e "De volta para o futuro".
O livro é uma colcha de retalhos de citações e homenagens, muitas das quais só os entendidos em cultura pop vão "pescar". Mas não é preciso tanto. Há muitas outras que são deliciosamente explícitas e constituem a maravilhosa recriação cenográfica do Brasil dos anos 1980, além de muitos outros detalhes que remetem a uma brasilidade sessentista e setentista que mesmo quem não a viveu vai reconhecer. E mais não digo, para não estragar as supresas.
O que ainda posso dizer é que Tupinilândia é uma ficção política muito bem engendrada. Ótima narrativa, divertida, historicamente correta, cheia de referências que dão consistência à trama, com um clima meio delirante, meio onírico, mas profundamente brasileiro e politicamente oportuno.
O livro ainda traz, a moda dos romances de fantasia, um mapa de Tupinilândia com arte de Fernando Heynen e Kako, sendo que este último é também responsável pela ilustração espetacular da capa, numa representação da Tupinilândia em 2015 que sugere uma bandeira do Brasil com o Mickey Mouse ao centro.
Coloque Tupinilândia agora em sua lista de leitura. Garanto que não vai se arrepender.


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