A princípio, como foi visto no primeiro volume da mesma história, publicado no Brasil em três edições pela Editora Pandora Books em 2001, não estava muito claro até onde ia o delírio do autor. Nela protagonizavam uma quantidade restrita de personagens da fc&f europeia, quais sejam, o estoica Guilhelmina Murray (criada por Bram Stoker em Drácula), o aventureiro decadente Allan Quatermain (criado por Henry Rider Haggard em As minas do Rei Salomão), o pirata terrorista Capitão Nemo (criado por Júlio Verne em Vinte mil léguas submarinas), o esquizofrênico Dr. Henry Jeckyll (criado por Robert Louis Stevenson em O médico e o monstro) e o psicopata Halley Griffin (criado por H. G. Wells em O homem invisível) que, em maio de 1898, são reunidos pela Inteligência Britânica numa espécie de comando suicida para enfrentar o perigosíssimo e louco Moriarty (arqui-vilão criado por Arthur Conan Doyle para a série Sherlock Holmes) que pretende nada menos que dominar o mundo jogando a Inglaterra no caos com a ajuda de um exército de imigrantes chineses e a tecnologia desenvolvida por um certo Dr. Cavor (personagem que não aparece na história, exceto pela presença da cavorita, que é uma citação de Os primeiros homens na Lua de H. G. Wells).
Nesse volume já havia uma quantidade um tanto exagerada de citações que, a certa altura, aproximou-se perigosamente do pastiche. Nas mãos de um autor de talento menor, essa característica negativa certamente seria potencializada num resultado indigesto (como geralmente são as histórias que se apoiam em citações, homenagens e outras formas de colagem dramática), mas o roteiro elaborado de Moore manteve a consistência dos personagens já ricos e deu mais substância aos outros, como o caso da Srta. Murray que, em Drácula, tem uma presença apenas coadjuvante. O mais surpreendente é Nemo, com características bem diversas da adaptação para o cinema pela Disney, que é a versão mais popular do personagem.
Entretanto nesse primeiro volume o elemento principal era mesmo a história, a qual todos os personagens serviam. Essa qualidade narrativa, enaltecida pela arte criativa do ilustrador britânico Kevin O'Neill, rendeu sucesso imediato a obra que, em pouco tempo, chegou as telas de cinema numa adaptação bem abaixo das expectativas dos leitores.
A Liga Extraordinária II segue a história do ponto em que a primeira parou, uma vez que o último quadro daquela já antecipava o que viria, numa citação sutil a A guerra dos mundos de H.G.Wells.
A primeira sequência mostra a batalha final entre Lemuel Gulliver, John Carter e os exércitos marcianos para expulsar definitivamente de Marte a presença invasora e beligerante de uns alienígenas cefalópodes que haviam se instalado por lá. A batalha é bem sucedida para os marcianos, mas os alienígenas apontam seus módulos de fuga para a Terra e... bem, a Liga Extraordinária terá de entrar em ação novamente. Porém, desta vez as coisas serão mais difíceis.
Primeiro porque os invasores vindos de Marte têm uma tecnologia muito superior, contam com uma arma de calor poderosíssima e devastam rapidamente toda a região onde desembarcam. Segundo porque as relações entre os cavalheiros extraordinários está um tanto abalada pelos eventos dramáticos da primeira aventura. E, finalmente, porque há um traidor entre eles.
Na busca por um modo de derrotar os invasores, enquanto Nemo, Hyde e Griffin ficam em Londres para combater os alienígenas e impedir seus trípodes de guerra de atravessarem o Sena e chegarem ao Parlamento, Quatermain e Murray são enviados a uma floresta densa, próxima a Watterloo, para encontrar um certo médico geneticista que lá é mantido secretamente pelo governo britânico. Com ele devem pegar uma arma experimental chamada de H142. É claro que eles vão encontrá-lo. É claro que a arma secreta lhes será cedida. E é claro que ela vai derrotar os invasores alienígenas, mas... desta vez o que menos importa é a história. Ela é apenas um background no qual Moore e O'Neill esbanjam suas artes.
Moore deu extrema profundidade a cada um dos personagens, indo muito além da mera citação. Desta vez o que está no foco é a interrelação dos personagens da Liga, as paixões de cada um e as consequências, algumas vezes fatais, de suas atitudes. Cada personagem é individualizado como num romance e, apesar de haver muito mais citações do que no volume anterior (com espaço até para a tira de quadrinhos do Urso Rupert), elas caem para um plano secundário frente a dramaticidade exacerbada do roteiro, ampliada pelos desenhos de O'Neill que estão mais detalhados e grotescos do que no volume anterior.
Mas não é só. Quando a história acaba é que vem a melhor parte.
A editora Devir incorporou ao volume vários apêndices, como jogos e passatempos espirituosos, muitas páginas com ilustrações – incluindo as usadas nas capas das edições originais – e o surpreendente Almanaque do novo viajante, um guia de viagem de 50 páginas com ilustrações magníficas e inspiradoras de O'Neill. O Almanaque apresenta relatos de viagens pelo mundo da Liga Extraordinária, com depoimentos de Mina Murray, Lemuel Gulliver, Capitão Nemo e o ambíguo Orlando entre outros viajantes.
O texto tem mais de 50 mil palavras – um verdadeiro romance dentro do álbum –, no qual Moore usa e abusa de uma infinidade absurda de citações e homenagens, ultrapassando qualquer barreira que esse tipo de argumento poderia enfrentar, criando toda uma geografia alternativa para o nosso mundo, baseado em centenas de livros e mitologias. Todas as possíveis referências que um leitor perspicaz puder imaginar lá estão, distribuídas em capítulos, um para cada continente.
No Almanaque do novo viajante Moore também nos apresenta pelo menos mais três formações da Liga Extraordinária: uma no século XVII que ficou conhecida como Os Homens de Próspero, liderados por um certo Duque de Milão. A segunda, no século XVIII, comandada por Lemuel Gulliver, na qual esteve também o americano Nutty Bumppo (criação do escritor americano James Fenimore Cooper). O grupo liderado por Mina Murray foi o terceiro, desmantelado após os eventos deste segundo volume, e teria havido ainda um quarto grupo que lhe sucedeu, ainda com a participação de Mina Murray, um misterioso " filho" de Allan Quatermain a quem a Srta. Murray se refere como "A", e participações ocasionais de um tal Professor Challenger. Cita ainda a Expedição Bellman, um grupo formado em 1870 para explorar um buraco misterioso no qual uma garotinha (a Srta. A. L.) desapareceu por algumas horas. Neste caso não houve muito o que se registrar devido ao desastre final do projeto: todos os membros da Expedição Bellman enlouqueceram e/ou morreram depois de voltar do fatídico mundo subterrâneo. A Srta. A. L. também viria a enlouquecer e falecer em decorrência de uma doença estranha contraída numa segunda abdução, desta feita através de um espelho.
Por este breve relato dá para imaginar o universo delirante que Alan Moore desenhou para sua Liga, no qual não faltaram referências a Opar, Narnia, a Lagoa Negra, Arkhan, Laputa, Xanadu, Shagri-La e as Montanhas da Loucura. É claro que Moore não citou tudo, é impossível arrebanhar todas as mitologias e fantasias escritas pelo mundo, mas ele se esforçou bastante, citando até obras de Gabriel Garcia Marques e Jorge Luiz Borges entre muita coisa absolutamente inidentificável, e só posso imaginar até onde Moore iria se conhecesse metade da fantasia brasileira.
Após da leitura, chega-se a conclusão que só o Almanaque já faz valer o investimento na aquisição do volume, sendo ele uma das melhores fantasias já publicadas em língua portuguesa. Além do mais, o acabamento da publicação é caprichado, com capa cartonada, plastificada e com orelhas.
Obs: A Devir publicou posteriormente outros volumes da saga: Dossiê negro, Século 1910, Século 1969, Século 2009 e A tempestade, além de republicar a série original e Nemo, spin-off em três partes protagonizado pela filha do Capitão Nemo.
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