Asanegra é um adolescente em idade de ser vendido, por isso seu pai o leva até o mercado central da cidade fortificada de Brutmir, onde poderá encontrar o comprador certo para encaminhar o filho a uma profissão respeitável e lucrativa. E esse comprador acaba sendo o ferreiro Daskos que não tem filhos homens e pressente que precisa passar suas habilidades a um aprendiz.
Satisfeito com o dinheiro que irá saldar suas muitas dívidas, o homem deixa o filho com Daskos e volta para sua terra, na região rural do distrito. Asanegra também está animado, pois escapou de ser comprado por algum tarado, o que não é incomum nesse tipo de negócio. O que ele não imaginava é que Daskos na verdade não é um homem sem filhos. Ele tem uma filha, a rabujenta Orí, que sempre quis conhecer a Forja onde o pai trabalha mas nunca pode porque é tabu que mulheres entrem lá.
A Forja é uma instituição importante para Brutmir, uma vez que é onde se fabricam as armas e as barreiras de defesa da cidade contra o ataque do povo élfico, inimigos figadais dos homens desde que estes lhes tomaram a Torre de Amálgama, edificação que fica no centro de Brutmir e é sagrada para os elfos, que juraram retomá-la. Todo o trabalho na Forja só é possível com a ajuda dos Servidores, demônios domesticados que fazem a função de fornalhas de bancada, aquecendo o metal para ser modelado pelos ferreiros. Acontece que os Servidores enlouquecem de desejo se sentirem o cheiro das mulheres humanas e, no gozo do prazer, acabam por matá-las numa explosão autodestrutiva.
Desse modo, a vida de Asanegra na casa de Daskos torna-se um inferno com as provocações e maldades de Orí, enciumada pelo privilégio do garoto em entrar na Forja e por ele ter a atenção do pai que, até então, só a ela pertencia.
Em outra parte da cidade, vive o estranho Sivo, homem poderoso e cheio de mistérios, chamado por todos de o Homem Santo. Sivo não é uma boa pessoa, pois está até o pescoço de ódio e ressentimento, e seu único desejo é destruir Brutmir e tudo o que ela representa. Para isso, vem articulando um plano de longo prazo, com detalhes que precisaram ser definidos com o cuidado de um relojoeiro. E a hora de colocar a máquina em funcionamento se aproxima pois, em breve, haverá uma conjunção rara de planetas que vai abrir caminho para o ataque definitivo dos elfos, algo em que ninguém em Brutmir acredita, pois os elfos estão distantes há muito tempo. Sivo se aproveita dessa situação para enfraquecer as defesas da cidade muralhada, bem como o seu exército que está decadente pelo ócio e pela corrupção.
Este é, basicamente, o enredo de De ferro e de sal, romance de alta fantasia da escritora gaúcha Simone Sauressig, que o publicou em 2018 com recursos próprios através da plataforma de autoedição da Amazon.
Trata-se de um texto longo, com mais de cem mil palavras e muita ação, especialmente em sua metade final, uma vez que a primeira metade do livro é dedicada a apresentar os muitos personagens, todos bem construídos, e a cidade murada de Brutmir, personagem principal da trama.
Alta fantasia não é uma novidade na produção da autora, que já apresentou outras obras no gênero, como a saga Os sóis da América (2013), o romance O jogo no tabuleiro (2009) e a duologia A noite da grande magia branca (1993)/A fotaleza de cristal (1988). A diferença que salta aos olhos para quem já conhece a ficção de Saueressig é o tom violento e cruel desta dramatização. Não que seus trabalhos anteriores não tivessem situações tensas e incômodas, inclusive isso foi bastante utilizado pela autora no romance de ficção científica B9 (2010) e em suas histórias curtas de horror, nas quais cenas sangrentas não são incomuns. Até mesmo a morte de personagens importantes nas tramas também está presente em obras anteriores. Porém, em De ferro e de sal, esse tom está definitivamente emaranhado à história, configurando um estilo diferenciado diante das peças acima citadas, como se Saueressig estivesse deliberadamente conduzindo sua ficção para um público mais maduro do que aquele ao qual foram dirigidos os trabalhos anteriores. Isso, somado ao curioso formato humorístico de sua coletânea mais recente, A noite dos insensatos (2023), demonstra o desejo de Saueressig em encontrar novos públicos e escapar do paradigma de autora de ficção juvenil. De ferro e de sal é certamente o ponto alto dessa estratégia e confima, mais uma vez, o estatus de Simone Saueressig como um dos melhores autores de alta fantasia no Brasil.
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