O pagamento (Paycheck: Classics stories by Philip K. Dick), Philip K. Dick. 384 páginas. Tradução de Alexandre Raposo, Sylvio Gonçalves, Jorge Luiz Calife & E. Barreiros. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Desde que o cineasta Ridley Scott dirigiu Blade Runner: O caçador de andróides, baseado em um romance de Philip K. Dick, o autor tornou-se referência de fc no cinema, com diversas de suas histórias transpostas para as telonas. O próprio romance O caçador de andróides (Do androids dream of eletric sheep?) só chegou ao Brasil em 1983, pela Francisco Alves, após o lançamento do filme nas salas exibidoras. E não foi por outro motivo que a editora Record tomou a iniciativa de publicar o volume que é tema desta resenha: o lançamento do longa-metragem O pagamento, dirigido por John Woo.
Talvez seja por isso que a referida editora não demonstrou capricho na realização do volume, que teve produção gráfica digna de uma edição popular das mais simplórias, com a tradução – assinada por Alexandre Raposo, Sylvio Gonçalves, Jorge Luiz Calife e E. Barreiros – comprometida por uma revisão trágica; não se preocupou em inserir um desejável texto de apresentação para situar os contos da coletânea na obra do autor e nem mesmo fez constar seus títulos originais. Somado ao altíssimo preço de capa, só mesmo sendo fã de PKD para aguentar tanto descaso. Foi tanta a falta de confiança da Record nos atrativos da ficção de Dick que a editora fez questão de citar destacadamente na capa do volume não apenas o nome do diretor da versão cinematográfica do conto que batiza a coletânea, mas três dos seus atores também, como se isso fizesse alguma diferença num texto que PKD escreveu em 1953. E não só: citou, também na capa, a coletânea anterior, Minority report: A nova lei, cuja publicação, à sua época, também foi uma jogada de oportunismo da editora.
Apesar da forma claramente depreciativa com que a editora tratou o livro, a coletânea tem méritos. O primeiro deles é que onze dos doze contos de O pagamento estavam ainda inéditos em português, exceto por um deles, "O pai-coisa" que, de acordo com o Acervo bibliográfico em língua portuguesa de fc, de Ruby F. Medeiros, havia sido anteriormente visto apenas na edição número 49 da obscura revista Suspense.
O segundo mérito é que, dentre os contos desta coletânea, há vários que podem ter perfeitamente sido os ensaios para os romances mais destacados de PKD. Pelos comentários a seguir, o leitor perspicaz certamente vai identificá-los. Entre os parêntesis está grafado o ano em que o conto foi publicado pela primeira vez.
"O pagamento" (1953)
Num futuro próximo, a sociedade civil mundial tornou-se um estado policial e apenas as corporações particulares ainda detêm uma certa independência. A Empreiteira Rethrick contrata, por tempo determinado, profissionais especializados para seus projetos internos e, completado o contrato, os trabalhadores são bem recompensados em dinheiro, mas suas memórias são apagadas para preservar o que eles viram e fizeram dentro da empresa do assédio da Polícia Secreta do governo. Jennings é um especialista em eletromecânica que acabou de cumprir seu contrato e ter a memória apagada mas, como pagamento recebe, ao invés da boa grana que esperava, apenas sete objetos ordinários e sem nenhum sentido, juntamente com uma carta de próprio punho em que ele mesmo pediu que esses objetos substituíssem o seu gordo cachê. Confuso e acreditando ter sido passado para trás pela empresa, Jennings mal tem tempo de se indignar porque, ao sair do escritório da empresa, é imediatamente detido pela PS para interrogatório e levado para a delegacia — e todos sabem que ninguém que uma vez entra na delegacia da PS é visto novamente. Poucos minutos depois, Jennings se vê usando cada um daqueles objetos para preservar sua integridade física. Sorte? Coincidência? O que haveria por trás dos dois anos em que Jennings passou na Rethrick?
"Babá" (1955)
A família Fields tem uma babá para cuidar de seus dois filhos pequenos. Ela é uma das maravilhas da tecnologia moderna, um robô compacto similar a um besouro, absolutamente confiável e eficiente, sempre pronto a atender qualquer necessidade das crianças. A babá dos Fields é um modelo discreto e depois de três anos de uso está no limite da obsolescência, mas é mantida no posto porque as crianças a adoram. Porém, as babás dedicam-se também a uma atividade obscura que vai levar a família Fields a entrar numa escalada consumista que, em tese, ela nunca desejou.
"O mundo de Jon" (1954)
A Terra está devastada pela guerra, uma guerra total que deixou o mundo em cinzas. Os sobreviventes, que se refugiaram na Lua, voltam as poucos e tentam reconstruir o planeta, mas o trabalho é difícil e progride lentamente. Por isso, os cientistas desenvolveram uma máquina do tempo, que irá ao passado resgatar os estudos do maior cientista da história humana e permitirá recuperar a perdida tecnologia dos robôs com cérebros artificiais que foram, a princípio, a ruína da Terra, mas que podem ser agora a sua redenção. O encarregado da missão é Caleb Ryan e ele tem um filho, Jon, um garoto que está enfrentando um momento difícil. Visões de um mundo pastoral o arrebatam cada vez com mais intensidade. Seu pai acredita que ele está tendo crises psicóticas e decide lobotomizá-lo antes de embarcar em sua viagem cronal. Caleb consegue resgatar os documentos que queria mas, no processo, altera dramaticamente o passado, colocando em risco a viagem de volta ao mundo em que o lobotomizado Jon o espera.
"Café da manhã no crepúsculo" (1954)
A família MacLean, pai, mãe e três filhos, desperta para mais um dia comum. Do lado de fora uma neblina muito forte impede a visão. Quando um dos filhos tenta sair para ir à escola, é impedido por um comando militar que invade a casa e subjuga toda a família. Os soldados estão atônitos e desconfiados: diante deles está uma família americana típica tomando prosaicamente o café da manhã numa residência igualmente típica que foi a única coisa a resistir ao bombardeio de saturação da noite anterior, numa guerra que já dura oito anos da qual a família MacLean nunca tinha ouvido falar.
"A cidadezinha" (1954)
Verne Haskel é um homem de meia idade que tem uma vida infeliz. Casado com uma esposa que não o ama, com um emprego do qual não gosta e um chefe que odeia, o único prazer de sua vida é um trenzinho elétrico que ele mantém montado no porão de sua casa, para o qual, ao longo dos anos, Verne construiu uma reprodução em escala da sua própria cidade, com todos os detalhes. Num acesso de frustração, ele arranca a miniatura do prédio da firma em que trabalha e a destrói, substituindo por outra miniatura sem correspondente real, e então percebe que poderia refazer toda a cidade de acordo com sua própria definição. Demite-se do emprego no dia seguinte e surpreende a esposa em adultério, mas não se abala: tranca-se no porão e dedica-se tão somente à reconstrução de sua cidadezinha, o que pode ter desdobramentos inesperados.
"O pai-coisa" (1954)
Charles Walton tem oito anos e está apavorado. Viu seu pai na garagem conversando com alguma coisa que parecia igualzinha a ele mesmo e agora sabe que o que está diante dele, na mesa do jantar, embora pareça seu pai, não é. Ele sai da mesa sem jantar e sem pedir licença, e seu pai-coisa promete-lhe castigo pela falta de modos. Charles foge pela janela do quarto e vai à garagem procurar pelo seu verdadeiro pai. O que ele encontra é apenas o início do terror.
"A Cerca de Cromo" (1954)
Don Walsh está com problemas. A sociedade em que vive está em conflito aberto por conta da pressão de um projeto de lei que pretende exigir compulsoriamente que todos os cidadãos não tenham mais odor corporal, mau-hálito e cabelos feios. E isso está causando conflitos sérios em varias partes do país, no qual Puristas (defensores da tal lei) e Naturalistas (defensores da natureza como ela é) lutam até à morte. Walsh tenta "ficar em cima do muro" o máximo de tempo possível, de forma a se afastar da violência, mas ela já se manifesta entre os membros de sua própria família. Mais cedo ou mais tarde ele terá de tomar uma atitude.
"Autofab" (1955)
Um grupo de humanos sobreviventes de uma guerra nuclear total quer paralisar a rede de fábricas automáticas de bens de consumo e suprimentos que a humanidade instalou durante a guerra para suprir os abrigos. Isso porque as fábricas estão esgotando os recursos do planeta e impedindo que os humanos voltem a cuidar de si próprios. Como não há argumentos que convençam as fábricas que, além de inexpugnáveis, são administradas e operadas por robôs auto-replicastes, eles elaboram um plano ousado para fazer com que as fábricas entrem em conflito umas com as outras.
"Os dias de Pat Prafrente" (1963)
Depois da guerra que destruiu o planeta, a humanidade sobrevivente reúne-se em pequenas comunidades isoladas, com pouco contato entre si. Sem contato físico, alienígenas marcianos arremessam ao solo, a partir de máquinas voadoras, os mantimentos que sustentam os últimos humanos sobre a Terra. Os suprimentos são fornecidos em quantidade além da necessária e a maioria é simplesmente abandonada onde caiu, servindo de alimento apenas aos estranhos animais mutantes que habitam as ruínas da civilização.
Os homens aproveitam uma ou outra coisa, sempre tendo em vista sua aplicação no tabuleiro de um jogo de representação que todos os adultos praticam, no qual Pat Prafrente, uma boneca no estilo Barbie, é a personagem principal. Todas as relações da comunidade giram em torno desse jogo e as coisas ficam confusas quando chegam notícias de um novo jogo que é praticado em uma comunidade mais distante, algo similar a Pat Prafrente, mas com outra boneca. Um casal aceita apostar seu bem mais valioso — a sua própria boneca Pat Preferente — para jogar contra os campeões desse novo jogo.
"Plantão" (1963)
A presidência dos Estados Unidos está ocupada, há uns bons anos, por um supercomputador infalível que detém o controle absoluto de todos os mecanismos sociais, econômicos, políticos e militares do país. Só por garantia, um cidadão indicado por um sindicato de classe ocupa o lugar de plantonista da presidência, para assumir o cargo no remotíssimo caso do computador falhar, o que nunca aconteceu. Para amenizar o impacto da perturbadora notícia de que uma frota de espaçonaves alienígenas foi identificada nas proximidades do Sistema Solar, o mais popular âncora jornalístico da televisão ("palhaço", de acordo com a tradução) decide pautar uma entrevista cômica com o novo indicado para essa desnecessária função burocrática. E é exatamente no momento em que a entrevista se inicia que, devido a intervenção dos alienígenas, o supercomputador presidencial falha. É hora do mais inútil dos americanos assumir o poder.
"Uma coisinha para nós, temponautas" (1974)
Os russos saíram novamente na frente dos americanos, enviando dois temponautas ao futuro e trazendo-os de volta. Para não ficar em desvantagem, o programa temporal americano envia três temponautas duas vezes mais longe, mas algo não sai bem e ocorre um acidente fatal na viagem de volta. Um dispositivo especial, chamado Atividade de Tempo de Emergência (cuja sigla o tradutor não se decidiu entre ATE ou ETA), permitiu que os temponautas voltassem ao continuum por tempo limitado, num momento posterior ao evento fatal, de forma a participarem de seus próprios féretros e contribuírem para uma propaganda mais favorável ao programa americano. Addison Doug, um dos temponautas, sofre de insistente sensação de déjà vu, como se estivessem todos presos num loop, repetindo indefinidamente os mesmos fatos. Ele acredita que a morte no acidente é única forma de interrompê-lo. Entretanto, um dos cientistas do programa sugere que é justamente o acidente fatal que está gerando o loop. Mas Addison decide garantir, talvez mais uma vez em seu loop eterno, que o acidente aconteça.
"As pré-pessoas" (1974)
Em algum momento num futuro próximo, as leis americanas pró-aborto extrapolaram: o aborto pode ser feito enquanto a alma não entrar no corpo da criança, e os burocratas decidiram que isso só acontece quando se domina álgebra, matéria que é ensinada quando as crianças têm aproximadamente dez anos de idade. Basta que os pais façam uma solicitação e uma viatura oficial — o caminhão do aborto — retira a criança indesejada de sua casa e a leva para um campo de concentração. Caso ninguém se interesse em adotá-la, será sacrificada (ou “abortada“). O oficial do caminhão de abortos detém, na estrada, um jovem que não tem os documentos obrigatórios que provariam que não é uma criança indesejada. Nesse momento, surge o pai do garoto, um homem de 35 anos que insiste que, por também não dominar a álgebra, não tem alma e deve ser igualmente abortado. Confuso, o oficial resolve levar ambos para a instalação municipal, e não imagina o problema que isso vai causar.
A coletânea é equilibrada e isso acontece não só porque PKD é um escritor acima da média, mas principalmente porque o organizador da antologia — que pode ter sido o próprio Dick, uma vez que não há nenhuma informação a respeito no livro — optou por apresentar os contos em ordem cronológica. Isso permite que o leitor acompanhe a evolução do estado da arte do autor, atingindo o clímax no conto final, de longe o melhor do conjunto. Também oferece trabalhos de vários matizes, tanto para agradar o leitor que prefere o modelo pulpish de fc — que lida com temas recorrentes que eram encomendados pelos editores das revistas que os publicavam — como aquele que aprecia obras autorais sofisticadas.
Uma das leituras que se pode fazer desta coletânea é que PKD teria um interesse especial nas viagens no tempo, com o que construiu uma espécie de história do futuro, porém isso não ocorre na mesma proporção no total da obra do autor. Nos romances, PKD investiu no tema apenas em Now wait for last year e de modo um tanto oblíquo em Counter clockworld (Regresso ao passado, Editorial Panorama). É possível que tal acúmulo de narrativas sobre viagens no tempo neste coletânea tenha sido proposital, talvez para reunir todas elas.
Mas há mais uma interpretação importante que se pode ter da leitura deste conjunto de contos e, desta vez, o restante da obra de PKD não a desmente. Ainda que a ideia de futuro de PKD seja pessimista em relação à humanidade como um todo, o autor demonstra insistência especial em desvalorizar a figura feminina, numa mal disfarçada misoginia. Em algumas histórias, as personagens femininas simplesmente inexistem e, na maioria, assumem papel apenas coadjuvante ou de pouco significado. Mas o autor as trata de maneira declaradamente animosa em "A cidadezinha" e "As pré-pessoas". Nesta, em especial, há um discurso mais de uma página acusando as mulheres de "fêmeas castradoras" e de serem as principais interessadas na legalização do aborto. Dick casou-se nada menos que cinco vezes ao longo de sua vida e isso deve ter algo a ver com esse pensamento que é recorrente em sua obra.
Apesar de tudo, O pagamento é um livro altamente recomendável ao leitor que aprecia uma leitura inteligente, embora possa gerar perturbação psicológica e desvios na percepção da realidade. Mas essa é marca registrada de todos os trabalhos de PKD.
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