domingo, 20 de janeiro de 2013

Saga de Xam

Durante algumas semanas, tive a sorte de usufruir da guarda de um exemplar original da raríssima novela gráfica Saga de Xam, publicada originalmente em 1967 por Eric Losfeld Éditeur, de Paris. Com roteiro de Jean Rollin e desenhos de Nicolas Devil, trata-se de um livro enorme, formato 250 por 320 mm, com 58 páginas em cores, em papel de alta gramatura – aproximadamente 300g – encadernadas com capas duras sem qualquer identificação externa além de uma resistente sobrecapa em cuchê; uma apresentação gráfica incomum, que poucas obras dos quadrinhos igualaram.
Herdeira direta de Barbarella, de Jean-Claude Forest, Saga de Xam foi revolucionária porque ousou perverter todas as regras dos quadrinhos, tanto no conteúdo quanto nas técnicas. Tratou do liberalismo feminino com ousadia, colocando em foco uma linda humanóide alienígena de exuberante corpo azul, inspirado na modelo Handa Humbert, que aparece desnuda por quase toda a narrativa. A personagem é independente, toma suas próprias as decisões e sustenta uma relação homossexual durante boa parte da história.
Os desenhos são psicodélicos, complexos e detalhistas, e os balões enormes, com textos longos em letras bizarras. Muitos balões são sequer legíveis, sendo preenchidos com símbolos indecifráveis. As letras variam muito de tamanho dentro do mesmo balão, sendo às vezes tão pequenas que se faz necessário algum esforço na leitura. Dizem as lendas que as edições originais eram vendidas acompanhadas de uma lupa. As cores também são um elemento a parte, mudando bastante de um capítulo para o outro. Três coloristas trabalharam na edição: Jean-Pierre Gressin, Annie Merlin e Jacqueline Sieger.
A história está dividida em oito capítulos, nos quais o acabamento gráfico e a técnica narrativa mudam radicalmente entre si. Apesar do experimentalismo exacerbado já se apresentar desde as primeiras páginas, o capítulos iniciais ainda contam uma história inteligível.
Saga vem do planeta-mar de Xam, enviada por sua soberana para estudar a Terra e desenvolver uma proteção psíquica contra os invasores que ameaçam o seu planeta. Ela chega em meio a um grupo de cavaleiros medievais que acabaram de devastar uma aldeia. Capturada, é levada a um castelo onde as mulheres sofrem todo tipo de violência. Entregue ao feiticeiro Abdul Alhazred, Saga escapa mas é recapturada e amarrada a um poste de pedra onde será queimada viva. Mas ela descobre um botão oculto que, ao ser pressionado, transforma o poste de pedra em um veículo futurista com o qual Saga foge para o mar.
Enquanto manobra pelas ondas, Saga encontra um barco de guerreiros vikings com uma carga de mulheres sequestradas. Uma delas, chamada Zo, está sendo torturada amarrada a quilha do barco. Saga a liberta e ambas atacam os vikings, matando-os e assumindo o controle da embarcação. Saga decide partir, mas Zo se revela apaixonada por ela e ambas embarcam no veículo de Saga, deixando o barco viking entregue às mulheres. Nos saltos seguintes, Saga e sua amante passam por várias épocas e ficam algum tempo no antigo Egito. A partir de então, são acompanhadas em suas viagens pelo faraó Kractarus. Mais tarde, Saga retornará para sua dimensão, onde irá confrontar seus inimigos. A partir de então, a história fica ainda mais experimental e hermética: abandona os entrequadros, utiliza diagramações incomuns nos textos e até alguns códigos, cuja chave está disponível nas páginas finais do volume, para quem quiser decifrá-los.
Saga de Xam foi o divisor de águas entre o quadrinhos clássico e a moderna escola narrativa, abrindo o caminho para obras como Paulette, de Wolinski e Pichard, Valentina, de Guido Crepax, 5 x Infinitus, de Steban Maroto, Delirius, Philip Druillet, e toda a escola ligada a revista Métal Hurlant. Saga de Xam teve uma única tiragem de 5 mil exemplares e nunca foi republicada; elevada a categoria de obra de arte, seus exemplares são raros e valiosos.
Visto pelo distanciamento do século 21, Saga de Xam pode até parecer um tanto recatado e seu experimentalismo algo convencional, mas naqueles tempos reacionários e de violenta contestação social, era uma obra afinadíssima e relevante, sendo ainda hoje um mito na história dos quadrinhos.

2 comentários:

  1. Olá, tudo bem?

    Sou pesquisadore em Teoria Literária e tenho extremo interesse em trabalhar com Saga de Xam. Sei da dificuldade em encontrar essa obra, mas saberia me dizer onde posso consultar a publicação?

    Agradeço pela atenção.

    Gabriela Lima

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    1. Infelizmente não posso ajudá-la, Gabriela, pois o livro não está mais comigo. Contudo, sei que há exemplares a venda na Amazon; são caros, mas estão disponíveis. De qualquer forma, fica aqui o pedido para que uma alma caridosa se disponha a lhe ajudar nessa pesquisa.

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