No primeiro número, lançado em 2010, foram publicadas as noveletas "O encontro fortuito de Gerard van Oost e Oludara", que inaugurou a série A Bandeira do Elefante e da Arara de Christopher Kastensmidt, autor norteamericano radicado no Brasil, e "A travessia", de Roberto de Sousa Causo, uma história da série do índio Tajarê, iniciada no livro A sombra dos homens (Devir, 2004).
O número dois, lançado no finalzinho de 2011, trouxe "A batalha temerária contra o capelobo", sequência da história de Kastensmidt com a dupla de aventureiros Gerard e Oludara no Brasil colonial, e "Encontros de sangue", de Causo, também uma sequência à aventura de Tajarê vista no primeiro volume.Nesta terceira edição, aparece mais um episódio da série de Kastensmidt, "O desconveniente casamento de Oludara e Arani", fazendo par com a novela "O relato do herege", da experiente fantasista gaúcha Simone Saueressig.
Na história de Kastensmidt, o escravo liberto Oludara está ansioso para se casar com a tupinambá Arani, mas ela hesita, embora também o ame. De fato, todos os membros da aldeia ficam perturbados com a notícia do casamento, mas ninguém revela o por quê. Irredutível, Oludara insiste e o casamento é marcado. Em clima de apreensão, a cerimônia começa, para logo ser interrompida pela aparição assustadora e violenta de uma nova entidade da natureza, o Curupira, que reivindica a primazia no casamento com Arani. As feras que o acompanham quase acabam com as vidas de Gerard e Oludara, mas Arani os salva aceitando desposar o Curupira, porém pede dois dias para se preparar. O monstro aceita, e esse é o tempo que os dois amigos terão para evitar que a promessa de Irani se cumpra. Para isso, terão de invadir os domínios de um ser ainda mais terrível, a Iara, no que serão auxiliados pela tímida Flor-do Mato, uma outra entidade das florestas.
Tal como os episódios anteriores, trata-se de uma história movimentada e divertida, com ambientação bem articulada e realista quanto às florestas brasileiras e sua fauna. Os seres mágicos, contudo, estão bem menos ferozes, e o Saci, assustador em sua primeira aparição, está até meio similar aquele que nos acostumamos a ver nas histórias de Monteiro Lobato.Uma pequena correção talvez deveria ser aplicada a descrição que Gerard faz do caju, fruta natural do Brasil que todos nós conhecemos muito bem, mas que deve ter parecido realmente estranha para um europeu do século 16. Quando Gerard vê a fruta no pé, o autor a descreve como "uma fruta vermelha com um estranho caracol marrom crescendo no topo." A descrição até que está bem próxima da visão que um estranho teria de um caju numa bandeja mas, no pé, o "caracol" deveria ser visto em baixo, e não no topo da fruta. No mais, está tudo muito bem, e o texto é bastante satisfatório para o leitor brasileiro.
O texto leve e bem humorado de Kastensmidt contrasta fortemente com o conto de Simone Saueressig, que deixa bem claro, logo de cara, que não está para brincadeiras. Trata-se de uma história de horror sobrenatural, território muito familiar da autora, que estreia na Devir, mas tem uma sólida carreira literária. Simone já publicou dezenas de títulos por editoras como a L&PM e Scipione, sendo que tem em seu currículos alguns títulos de grande vendagem, como A noite da grande magia branca e A máquina fantabulástica. Em 2012, Simone publicou a antologia Contos do Sul, com cinco histórias de horror apoiadas no folclore brasileiro, linha na qual "O relato do herege" também está inserida.
A história conta, em forma de diário, o drama de Indigo Ruiz Lopes, um herege espanhol desterrado no sul do Brasil, em 1637. Em meio a um cenário desolador, ele testemunha a truculência do ambicioso capitão de uma missão, que abusa de sua autoridade na exploração de seu pequeno império, sustentado com mão de ferro. O odioso líder sabe das acusações que pesam sobre o herege e, quando descobre que ele realmente pode conjurar demônios, manobra as coisas de forma a tê-lo em suas mãos para chamar a maior de todas a entidades sobrenaturais da mitologia indígena e usá-la em seu próprio benefício.
O tom da novela de Simone é trágico e perturbador, como numa história de H. P. Lovecraft, em que a simples visão de um desses seres poderosos pode levar a loucura, na melhor das hipóteses. O cenário insalubre, gelado, úmido e miserável, contribui para que o leitor se sinta ainda menos confortável com toda a situação do pobre herege que, por si, já seria suficientemente desagradável. Mas as cenas de ação são tão poderosas e impactantes que fazem valer todo o desconforto da situação.
Duplo fantasia heroica afirma-se como um projeto editorial consistente e interessante, muito bem conduzido pelo editor Douglas Quinta Reis, e deve ser privilegiada na lista de leituras de todos aqueles que desejam conhecer uma das melhores propostas já apresentadas para uma ficção fantástica autenticamente brasileira.
Gostei da resenha. E do livro também, que li no começo desse ano... Abraço!
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