Terminei de ler, há alguns dias, a coletânea do escritor americano Joe Hill, Fantasmas do século XX (20th century ghosts), publicada no Brasil em 2008 pela editora Sextante e premiada com o Bram Stoker, o British Fantasy e o International Horror Guild. A introdução do volume é assinada por Christopher Golden.
Não é segredo que Joe Hill é filho de Stephen King, e essa ascendência levou-me a crer que o jovem Joe Hill (nascido em 1972) de alguma forma fosse uma miniatura do pai e que dele fizesse pastiches e simulacros, de modo que a princípio eu não me entusiarmei com o título, pelo menos até saber do reconhecimento internacional que tanto a coletânea quanto vários dos contos presentes neste volume receberam.
"O melhor do novo horror" ("Best new horror" - prêmios British Fantasy e Bram Stoker) abre o volme e é o melhor texto da coletânea. Metalinguagem com ecos de O massacre da serra elétrica, mas com um algo mais que certamente vai apavorar quem vive em meio a livros e fanzines de horror.
"Fantasma do século XX" ("20th century ghost", prêmio Bradbury Fellowship) conta sobre um velho cinema assombrado pelo fantasma de uma garota e a maneira como um jovem se apaixona por ela. Participação especial de Steven Spielberg, com o nome trocado, é claro.
"Pop art" ("Pop art") fala sobre os problemas existenciais de um menino inflável. Delicioso.
Em "Vocês irão ouvir o canto do gafanhoto" ("You will hear the locust sing"), um jovem vira um inseto gigante e inicia uma cruzada de violência na cidade, óbvia citação a Kafka, com um quê de Carrie.
A ficção alternativa "Os meninos de Abraham" ("Abraham's boys") conta o que aconteceu depois dos eventos vistos em Drácula. Abraham Van Hellsing casa-se com Mina e com ela tem um filho. A família Hellsing migra para os EUA, onde nasce mais um menino. Mina morre e Abraham tem que criar as crianças sozinho. Mas ele é um pai rigoroso, paranóico com a ideia de que os vampiros ainda os estão perseguindo e os filhos sofrem com sua obsessão.
"Melhor do que lá em casa" ("Better than home" - prêmio A.E. Coppard) não é de horror, mas é delicioso. Um moleque cheio de encucações, cujo pai é jogador de beisebol profissional em um time da segunda divisão, conta suas impressões sobre os demais membros da família, em relatos maravilhosos do tipo Forest Gump.
"O telefone preto" ("The black phone") mostra como um garoto sequestrado por um psicopata encara a morte iminente.
"Encurralado" ("In the rundown") conta como o terror pode invadir a vida de qualquer um, seja durante um jogo de beisebol ou no caminho de casa depois do trabalho. Terror real, mas demasiado poético para ser realmente assustador. A poesia manda o medo para segundo plano.
"A capa" ("The cape") relata o que provavelmente um sociopata faria se pudesse voar.
"O último suspiro" ("Last breath") é uma belezinha. Uma família bem convencional visita, por acaso, um museu que guarda em grandes frascos, os últimos suspiros de várias personalidades famosas. Entre os silêncios engarrafados, por exemplo, o derradeiro suspiro de Edgar Allan Poe. As pessoas escutam o não-som engarrafado com estetoscópios e compartilham as últimas emoções do falecido. Um museu que deveria existir.
Depois, o curtíssimo "Madeira morta" ("Dead-wood"), sobre árvores fantasmas. Bom demais.
Em "O desjejum da viúva" ("The widow's breakfast"), um vagabundo chega a uma casa no meio de uma floresta e lá encontra uma viuva e suas três filhas pequenas. Narrativa realista, com um clima estranho mas muito suave, repleta de tragédia humana.
Em seguida, um dos melhores contos da coletânea: "Bobby Conroy volta dos mortos" ("Bobby Conroy comes back from the dead"). Mais uma vez, quase nada de fantasia... A narrativa é tão naturalista que o título parece uma licença poética, mas o desfecho é genial, que não é surpresa e não deixa dúvidas. Com participações especiais do maquiador Tom Savini e do cineasta George Romero, afinal a história se passa durante as filmagens de Dawn of the dead.
"A máscara do meu pai" ("My father's mask") é o penúltimo conto do livro. Um casal leva o filho adolescente à sua casa de veraneio para um final de semana em família. A mãe é uma mulher invulgar e ambígua, e o pai parece ser totalmente subordinado a ela. No caminho, a mãe inventa histórias malucas e propõe brincadeiras estranhas ao filho. Eles estão com problemas financeiros e parecem estar sendo perseguidos "pelas pessoas do baralho", como diz sua mãe, no que parece ser apenas mais uma das brincadeiras dela. Na casa de campo, um monte de máscaras, e a mãe recomenda que o menino as use o tempo todo para enganar as "pessoas do baralho". Como está frio, ela suspeitamente manda o menino buscar lenha na floresta para acender a lareira e, como numa história de fadas, recomenda que ele nunca saia da trilha. Na floresta, quando o garoto encontra as versões adolescentes de seus pais, fica claro que sua vida nunca mais será a mesma.
O conto final, "Internação voluntária" ("Voluntary committal" - World Fantasy para melhor novela), é muito perturbador. Só não supera em qualidade aquele que abre a antologia, o que revela o perfeito trabalho de estrutura da coletânea, com os dois melhores contos abrindo e fechando o volume. Fala de um garoto com problemas mentais que ajuda o irmão mais velho a se livrar de um problema. Ele constrói, no porão, um labirinto de caixas de papelão que transporta quem andar por ele para algum lugar que não se sabe onde é, para nunca mais voltar. Gosto de pensar que a vítima vai para o País das Maravilhas, mas quando lembro do romance de Stephen King, Os estranhos, em que um garoto metido a mágico manda o irmão para um lugar horrível, sinto-me mal.
Mas Hill ainda guardava uma carta na manga, um derradeiro conto embutido no posfácio. Diz o autor que fez isso porque queria ser tão criativo quanto Neil Gaiman, que havia embutido um conto em um prefácio (em Coisas frágeis, se não me engano). E lembro que King já havia embutido um conto numa nota de pé de página (em Dança macabra, se também não me trai a memória). Trata-se do interessante e curtinho "A máquina de escrever de Cherazade" ("Scheherazade's typewriter"), outro texto metalinguístico muito inspirado, sobre a máquina de escrever de um escritor falecido que continua a gerar romances por conta própria.
Fantasmas do século XX é um ótimo livro. Joe Hill não é imitador do pai e seu talento é suficientemente grande para que ele construa uma identidade literária independente, coisa que ele já comprova aqui. Coletânea altamente recomendada, tanto para quem gosta de horror quanto para quem não gosta.
Esse é um grande livro e você fez uma ótima resenha. Nunca fui chegado a histórias de fantasmas, mas assim que li o primeiro conto, não larguei mais a obra. Estou agora com "A Estrada da Noite" aqui para ler, e espero que Hill seja tão bom nas narrativas longas quanto o é nas curtas. Boa recomendação.
ResponderExcluirAbraço.