sábado, 19 de janeiro de 2019

O elefante desaparece

O elefante desaparece (Zô no shômetzu), Haruki Murakami. 304 páginas. Traduzido do japonês por Lica Hashimoto. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Publicado originalmente em 2013 no Japão.

Uma vez perguntaram ao fantasista goiano José Veiga de onde ele tirava suas ideias fantásticas. Ele respondeu, um tanto contrariado, que o que escrevia não era fantasia, era a pura realidade. De igual modo, perguntaram ao então quadrinhista (hoje escritor) Lourenço Mutarelli como ele havia desenvolvido o estilo caricato de suas ilustrações. Muito espantado, ele respondeu que seu desenho era realista, pois desenhava as coisas exatamente como eram.
Estas duas histórias são perfeitas para ilustrar a sensação de ler os escritos de Haruki Murakami, com uma pequena mas importante diferença: tudo é perfeitamente real em sua ficção mas não parece certo, algo que não pode ser perfeitamente percebido, que nunca se apresenta mas causa uma contínua tensão de estranhamento, muitas vezes beirando o insuportável. Por isso, sua ficção não é de fácil leitura e ainda mais difícil de interpretar.
Murakami nasceu em Kyoto em 1949 e é um dos mais importantes autores japoneses vivos. Continua morando no seu país natal, próximo a Tóquio, e entre seus livros mais famosos estão Kafka à beira-mar, Crônica do pássaro de corda e a série 1Q84, considerada uma legítima história de ficção científica.
O elefante desaparece é uma coletânea de 17 contos que pode servir bem como entrada à obra de Murakami, tanto para o leitor que não gosta de fantasia, uma vez que os textos do autor são muito naturalistas, muitas vezes nas franjas da crônica urbana, como para o leitor experiente que cansou dos protocolos recorrentes da fantasia convencional. Muitas histórias tem um clima tão intimista que parecem confissões do autor. Apenas uma e outra flertam mais descaradamente com o fantástico, como veremos a seguir.
"O pássaro de corda e a mulher da terça-feira" é uma dessas quase crônicas. Um homem que perdeu o emprego há poucos dias é incumbido pela esposa de encontrar o gato fugido. Na modorra de uma tarde ensolarada, ele busca o animal pelo beco que une os quintais da vizinhança – é impossível não visualizar a típica arquitetura urbana japonesa nessa hora – e acaba tendo um encontro inesperado com uma vizinha.
"O segundo assalto à padaria" é uma pérola. Um casal, assolado por uma fome desproporcional durante a madrugada, decide roubar pães de uma padaria. Mas, pelo avançado da hora, os dois não encontram nenhuma aberta. Então resolvem assaltar uma lanchonete 24 horas.
"Mensagem do canguru" é narrado em forma de epístola, na qual o funcionário do serviço de atendimento ao cliente de uma loja de departamentos, impressionado pela qualidade do texto de uma carta de reclamação declara seu amor à cliente desconhecida. O nível de psicose do funcionário faz com que o conto soe como prelúdio a história de terror.
"Sobre uma garota 100% perfeita que encontrei em uma manhã ensolarada de abril", é outra quase crônica, na qual um homem se impressiona com uma garota que viu na rua, mas não consegue falar com ela.
"Sono" conta a história de uma dona de casa que, depois de um sonho perturbador, deixa de dormir e passa a ter uma vida paralela à noite, enquanto sua família dorme.
"A queda do Império Romano, Rebelião indígena de 1881, Hitler invade a Polônia, E o mundo dos vendavais", como o título já revela, é um texto fragmentário, formado pela junção de fatos que um homem encadeia num fluxo de pensamento a partir de situações cotidianas que funcionam como disparadores.
"Lederhosen" é um tanto mais convencional. Conta a história de uma senhora que empreende uma viagem à Europa e recebe do marido o pedido por uma autêntica lederhosen, vestimenta típica da Alemanha. A busca pela peça vai causar uma forte transformação na mulher.
"Queimar celeiros" é uma das melhores histórias do volume. Conta a história de um homem que confidencia ao amigo sua fixação por queimar celeiros abandonados, e o leva a também experimentar a sensação de incendiar as coisas.
"O pequeno monstro verde" é uma das histórias em que o fantástico se apresenta de forma mais evidente. Uma mulher, sozinha em casa, recebe em sua porta a visita de um monstrinho verde que emergiu das raízes de uma árvore, e ele pede sua mão em casamento. Mas ela não é uma boa mulher.
"Caso de família" é uma crônica sobre um casal de irmãos que moram juntos, mas são muito diferentes entre si. Ele é relaxado e libertino, ela uma donzela educada e casadora. O equilíbrio da relação é alterado quando ela parece com um pretendente.
"Homens da tv" é outra história em que a fantasia se destaca mais claramente. Um homem sonolento testemunha, durante a madrugada, a invasão de sua casa por um grupo de homenzinhos que instalam uma televisão em sua sala. Espantado demais para reagir, ele simplesmente deixa acontecer até que todos se retirem. Como se isso já não fosse suficientemente estranho, a tv não exibe nada além de ruído branco, e sua esposa, sempre tão detalhista, não percebe o aparelho interferindo na decoração. As coisas ficam ainda mais estranhas quando os homenzinhos aparecem também em seu local de trabalho e ninguém além dele parece se dar conta dos estranhos invasores.
"Lento barco para a China" é o relato de um homem maduro sobre como conheceu seus primeiros chineses, dentre os quais uma jovem pelo qual se apaixonou, mas de quem se perdeu numa situação infeliz.
A fantasia volta a se declarar em "O anão dançarino", um conto de fadas sombrio e de matiz político, em que o sonho com o tal anão torna-se um fardo difícil de carregar.
"O último gramado ao entardecer" é um relato singelo mas repleto de tensão, em que um homem rememora sua juventude quando, demissionário em um emprego de aparar gramados, vai atender seu último cliente.
"Silêncio" tem o jeitão de um conto de Stephen King e começa com a pergunta: "Você já deu um soco em alguém durante uma briga?" A partir dessa questão, um homem relata ao amigo uma dura experiência sobre bulling e violência na escola que decerto ecoa naqueles que passaram por situações dessa natureza.
O volume fecha com o conto que dá nome a coletânea, uma história de realismo mágico, sobre o desaparecimento inexplicável – ou quase – do velho elefante e seu tratador no zoológico da cidade.
O elefante desaparece não é um livro divertido e de forma alguma deve ser tomado como uma leitura de entretenimento. Trata-se de uma leitura intimista, muitas vezes dolorida, mas não deixa de ser prazerosa devido as cores e sabores do Japão moderno que, sem deixar de ser singular, em muitas coisas é como qualquer outro lugar. Murakami mostra que é um grande mestre em manipular as emoções, sem pieguismos e sem receitas de bolo. Apesar da distância e da ausência metalinguística, arrisco comparar a experiência em ler sua ficção curta com a leitura de Jorge Luiz Borges pela profundidade dramática e o vigor criativo e narrativo.
É possível ensinar alguém a escrever bem. Mas para escrever como Murakami, é preciso ser Murakami.

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