No centro de São Paulo, em frente a Praça da Sé, tem e não tem um edifício chamado Midoro Filho. Por falta de definição melhor, uso a do próprio livro: "...ninguém vê este obelisco espelhado, assim como Napoleão não é par ou ímpar porque essa propriedade não é aplicável, o Midoro Filho não é visível ou não visível, isso não é aplicável". Mas este é um detalhe secundário na narrativa insólita que a escritora paulista Andréa Del Fuego imprime às páginas de As miniaturas, novela de ficção fantástica – quase científica –publicada em 2013 pela Editora Companhia das Letras.
Dentro das inúmeras salas do Edifício Midoro Filho, um batalhão de burocratas indefiníveis, conhecidos como oneiros, prestam um serviço valioso à população da cidade. São eles que, armados com miniaturas plásticas e uma técnica exclusiva, sugerem às pessoas o que sonhar. Todos os dias, cada oneiro atende cerca de 30 sonhantes, sonâmbulos que adentram a sala, sentam na cadeira e são conduzidos em sua jornada onírica.
Há muitas regras no importante ofício dos oneiros. Uma delas é que eles não devem se envolver com os sonhantes. Mas, se já é difícil cumprir esse mister, fica impossível para um deles quando, por um erro na burocracia do edifício, percebe que entre seus sonhantes estão mãe e filho, o que desperta nele emoções irreprimíveis e nada aconselháveis para um oneiro honesto.
A mãe, motorista de táxi quarentona abandonada pelo marido, esforça-se para encaminhar na vida o único filho adolescente, arrumando para ele emprego de frentista no posto de gasolina de seu amante. Entre a luta na praça para ganhar a vida e as incertezas do jovem que ainda acredita na volta do pai, o oneiro vai se perdendo. Sua queda logo é detectada pelos administradores do Midoro Filho, desequilibrando a dinâmica de todo o edifício.
Andréa Del Fuego apresenta um quebra-cabeças intrigante porque não entrega todas as peças, visto que não explica o mecanismo desse improvável atendimento tão fundamental ao ser humano. Nem mesmo os próprios oneiros sabem quem ou o quê são. Eles nunca saem do edifício Midoro Filho, não comem nada além de leite instantâneo e tudo que conhecem chega através do semanário Algodão, publicação interna do edifício que informa tudo e apenas o que eles precisam saber.
A estrutura da novela é fragmentada, intercalando capítulos que focalizam ora a mãe, ora o filho, ora o oneiro mas, no geral, segue uma narrativa cronológica linear. Os capítulos são sempre narrados em primeira pessoa e percebe-se que houve uma sincera tentativa de individualizar a voz de cada personagem, embora isso não fique muito claro na simples leitura – o que realmente funciona é a titulação dos capítulos de acordo com seus respectivos narradores.
As miniaturas sugere bons textos com o qual o leitor pode dialogar. Pelos aspectos formais e a problemática urbana – focada numa relação familiar sob intervenção corporativa –, lembramos de Poeira, demônios e maldições, último romance assinado por Nelson de Oliveira, publicado em 2010 pela editora Língua Geral e agraciado com o prêmio Casa de las Americas; enquanto a imagem onipresente e incompreensível do edifício Midoro Filho e seus oneiros reporta à burocracia opressiva de Asilo nas torres, romance de ficção científica de Ruth Bueno publicado em 1979 pela Editora Ática.
Apesar de suas respeitáveis qualidades e origem – Andréa Del Fuego ganhou em 2010 o prêmio Saramago de literatura – As miniaturas não é um livro pedante nem difícil. Lê-se com prazer e em poucas horas, uma vez que se trata de um novela ágil e bastante interessante, sem os exageros que a fantasia brasileira recente tem insistido oferecer.
As miniaturas é herdeira da autêntica linha evolutiva da ficção fantástica brasileira, repleta de atrativos tanto para o leitor que busca uma história com muitos elementos de estranhamento, quanto aquele que deseja um voo sobre os mistérios da natureza humana.
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