Macacos e outros fragmentos ao acaso, Jorge Moreira Nunes. 126 páginas. Differential Comunicação e Editora, Rio de Janeiro, 2007.
Coletânea de contos de Jorge Moreira Nunes, transformada em romance graças ao talento do autor, que compôs uma estrutura textual similar a uma argamassa, ligando cada um dos contos de forma muito competente. Isso porque adotou um eficiente discurso metalinguístico que não enfada o leitor e dá nuances importantes ao conjunto, que não seriam possíveis apenas pela simples justaposição dos trabalhos que, em si, não apresentam muita relação. Os contos que formam a coletânea estão comentados a seguir.
Em “Terraço”, dois amigos barra-pesada invadem um prédio para cobrar uma dívida de um produtor de vídeos pornôs. Interrompem uma gravação e pressionam a vítima para pagar muito mais do que devia. A negociação os leva a propor participar das filmagens, aproveitando a atriz nua que já lá estava, e é a partir daí que as coisas saem do controle. A narrativa é rápida, vigorosa e surpreendente. A ambientação é muito boa, dando verossimilhança aos fatos narrados. É a melhor peça da coletânea, sem um pingo de fantástico.
“Maelstrom” é um conto em estilo gótico que apresenta o drama de um escritor durante uma noite tempestuosa em sua biblioteca. Uma peça que parece cumprir uma função de contraponto estilístico, pois não se articula com as demais peças.
“Presente de mãe” conta sobre como um torcedor fanático de futebol usa um mantra milagroso, que poderia realizar qualquer um de seus sonhos, apenas para fazer o seu time ganhar a final de um campeonato que parecia perdido. A narrativa é muito boa, com descrições vívidas e convincentes de cenários e emoções, apareceu pela primeira vez no fanzine Megalon.
“Saviana” é um conto de ficção científica anteriormente visto na antologia Intempol (Ano-Luz, 2001), que narra o drama de uma jovem mãe, nativa de uma ilha no Pacífico, que se culpa por não ter resgatado o filho falecido na erupção vulcânica de Cracatoa. A chance para sua redenção aparece na figura de um fugitivo temporal que escolheu a ilha como refúgio. Eles têm um relacionamento amoroso, mas o fugitivo contrai um vírus fatal. Quando percebe que não vai escapar da doença, ensina a mulher a usar a sua máquina do tempo e ela tem finalmente uma chance de realizar seu sonho.
“Ouroboros” é outra história de ficção científica, desta vez ambientada na cidade do Rio de Janeiro, mil anos no futuro. O tempo foi bom para a cidade, que está mais limpa e tranquila, devido aos avanços tecnológicos e culturais da humanidade, como a capacidade telepática que tornou as línguas obsoletas. Tudo graças a um supercomputador orbital que fornece todo o conhecimento necessário e pode instruir qualquer pessoa instantaneamente, desde tocar um instrumento musical a construir um navio. Mas o personagem principal desta história é um deslocado, que deseja aprender as coisas pelo mundo antigo, especialmente por línguas, e pelos livros de uma conservada biblioteca. Em suas pesquisas, eles encontram um fragmento de um texto, que esconde em si o mistério que é a estrutura da realidade, presente e futura.
Porém, como foi dito a princípio, o livro não se esgota com os contos. Nunes costurou um excelente background para dar-lhes sustentação, com textos intercalados aos contos, que levam o título de “La Granada”. Neles, o autor usa a si mesmo como personagem que, perto da virada do milênio, no bar La Granada (à beira de uma das praias do Rio de Janeiro), dialoga com Vald, um “amigo” que o encontra periodicamente no bar, recebe dele os manuscritos dos contos para ler e, no encontro seguinte, debate sobre a qualidade de cada conto, suas influências e os conceitos envolvidos, com citações a uma série de temas da fc&f brasileira e mundial.
Nunes não pega leve consigo mesmo. As críticas de Vlad são extremamente severas, além do que imagino que o próprio autor considerasse realista pois, se assim fosse, nunca teria publicado os contos. Mas fica claro que o discurso agressivo do Vlad não é sincero. Ele parece ter ciúmes da capacidade criativa de Nunes e vinga-se ganhando sucessivas partidas de um jogo de xadrez disputado num tabuleiro imaginário. Mas a partida atual não vai bem. A cada encontro, Vlad parece perder um pouco de sua consistência, especialmente quando o escritor lhe apresenta o manuscrito de um texto desenvolvido na internet, uma corrente escrita por milhares de autores anônimos que encadearam palavras a partir de vínculos aleatórios de ideias, fonemas e conceitos. Os textos são curiosos e perturbadores, e podem ser lidos em quatro fragmentos espalhados entre os contos, chamados simplesmente de “Macacos”. O texto causa um efeito devastador em Vlad que, a partir de então, desvanece-se acentuadamente a cada encontro, enquanto se aproxima o fim do segundo milênio.
O clímax desse cabo-de-guerra metalinguístico vai ocorrer no derradeiro texto do volume, chamado “O vôo do corvo”, que narra o encontro entre Nunes e Vlad na noite do reveillon, quando os dois amigos se reúnem para os lances decisivos da partida, encerrando o jogo, o milênio e uma etapa na vida do escritor.
Neste aspecto, Macacos e outros fragmentos ao acaso parece ser uma espécie de autobibliografia catártica, que reúne aquilo que Nunes considerou ser o fruto maduro de sua carreira ao longo do século XX. E ainda, de quebra, deu ao leitor um panorama histórico significativo do estado do fandom brasileiro nos anos 1990, na medida em que comenta seu envolvimento com vários projetos ocorridos dentro de seus muros, incluindo antologias e fanzines. O livro, premiado em 1998 com a Bolsa para Novos Escritores da Fundação Biblioteca Nacional, é importante para quem tem interesse pela fc&f brasileira e excelente para quem não está nem um pouco interessado nisso, pois o livro sustenta-se em uma pletora de boas ideias.
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