Assembleia estelar: Histórias de ficção científica política, Marcello Simão Branco org. 408 páginas. Capa Vagner Vargas. São Paulo: Devir Livraria, 2011. Coleção Pulsar.
Depois de dois anos de trabalho entre os primeiros convites aos autores e o lançamento do volume, a antologia Assembleia estelar chegou bem mais parruda do que se imaginava a princípio, com quatorze textos, entre contos e noveletas, incluindo trabalhos dos importantes autores norte-americanos Bruce Sterling, Orson Scott Card e Ursula K. Le Guin (1929-2018).
A ideia nasceu do envolvimento do organizador com a política, uma vez que Marcello Simão Branco, além de respeitado estudioso de ficção científica, é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e professor na Unifesp nessa disciplina. Nada mais natural, portanto, que se lançasse à tarefa de aproximar suas duas paixões. Branco editou por muitos anos o prestigioso fanzine de ficção científica e horror Megalon e organizou uma das mais importantes antologias temáticas brasileiras, Outras copas outros mundos, publicada em 1998 pela Editora Ano-Luz. Desde a suspensão do Megalon, fanzine que editou entre 1988 e 2004, Branco dedicou-se exclusivamente ao Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, do qual é um dos autores, e sua volta à aorganização literária criou muita expectativa.
Política é um tema que sempre recebeu interesse dos autores de fc. Obras clássicas e maiúsculas no gênero, como Tropas estelares (Starship troopers, 1959) e Estranho numa terra estranha (Stranger in a strange land, 1961) de Robert A. Heinlein, O mundo de Zero-a (The world of Null-a, 1948), de A. E. van Voght, Admirável mundo novo (Brave new world, 1932) de Aldous Huxley, 1984 (Nineteen eighty-four, 1949) de George Orwell, A muralha verde (We, 1920), de Evgeny Zamiátin, e Os despossuídos (The dispossessed: An ambiguous utopia, 1974), de Ursula Le Guin, entre outros, atestam o vigor que o tema detém dentro do gênero. Contudo, no Brasil, há poucos exemplos nessa linha, e os que existem pertencem à produção de autores do mainstream, que o abordaram de maneira transversal e alegórica, como Zanzalá (1936), de Afonso Schmidt, Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, Fazenda Modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda, e Sombras de reis barbudos (1972), de José J. Veiga. Faltava mesmo que alguém demonstrasse que o tempo da censura e das perseguições políticas passou e podemos voltar a falar abertamente sobre política no Brasil, especialmente dentro do ambiente especulativo, que permite um leque amplo de abordagens criativas.
Além dos estrangeiros já citados, aos quais também se une o escritor português Luiz Filipe Silva, Branco selecionou textos de autores brasileiros cujos nomes já são bastante associados ao gênero, como André Carneiro e Daniel Fresnot. Contudo, a maior novidade da antologia é um texto do autor mainstream Fernando Bonassi, um verdadeiro achado do antologista.
O volume abre com um longo ensaio “Afinidades eletivas entre ficção científica e política”, do organizador, contextualizando a proposta e detalhando exemplos históricos na literatura estrangeira e nacional.
O primeiro conto é “A queda de roma, antes da telenovela”, de Luís Filipe Silva, um dos grandes nomes da fc lusitana, numa história sobre o ocaso do último político “à moda antiga”, ou seja, que atua num sistema representativo, uma vez que a atividade política se transferiu para uma nova tecnologia, não exatamente melhor conforme o ponto de vista.
Em seguida temos o excelente “Anauê”, de Roberval Barcellos, provavelmente o autor brasileiro mais politizado de sua geração. É uma história alternativa de um Brasil governado por uma ditadura nacionalista, visto através de um burocrata do Partido Integralista que tem de optar entre manter o seu status quo ou sua integridade moral frente a um terrível programa de higiene social.
“Gabinete blindado”, do veterano autor da Primeira Onda, André Carneiro, é o melhor texto da antologia. Com um estilo elegante e surpreendente, que muitos ainda acreditam não ser possível usar nos gêneros especulativos, Carneiro revive os Anos de Chumbo da ditadura militar, na história dos integrantes de um aparelho de guerrilha em plena operação.
“Trunfo de campanha”, de Roberto de Sousa Causo, é um texto do ciclo de Jonas Peregrino, space opera que o autor vem desenvolvendo em episódios espalhados por diversas publicações. Aqui, Jonas tem que enfrentar as intrigas políticas de um figurão que quer se aproveitar de sua imagem de herói de guerra, numa história se assemelha às aventuras de espionagem ao estilo James Bond, porém com raios laser.
“Diário do cerco de Nova York”, do franco-brasileiro Daniel Fresnot, já é um clássico, visto na coletânea O cerco de Nova York e outras histórias (Alfa-Ômega, 1984). Conta a história de um escritor francês que tenta sobreviver em meio ao fogo cruzado da uma nova guerra civil nos Estados Unidos, que eclodiu depois que o prefeito da cidade de Nova York, apoiado por seus eleitores, decide descumprir ordens que recebe da União. A cidade é cercada por forças federais e atacada de forma avassaladora, o que a transforma numa reedição do gueto de Varsóvia.
Ataíde Tartari constrói uma alegoria às eleições majoritárias brasileiras de 2010 em “Saara Gardens”, na qual uma grande empresa tenta destruir o prestígio de uma candidata ambientalista que pode ser um grande problema, caso seja eleita.
Miguel Carqueija se apresenta com o curtinho “Era de aquário”, que não foge a seu estilo humorístico e irônico, sobre um tempo em que o esporte nacional brasileiro é assassinar políticos em atentados públicos.
Em “A evolução dos homens sem pernas”, Fernando Bonassi também investe na ironia e no humor para descrever os motivos que levaram os homens do futuro a desenvolverem mutações bizarras, mas talvez esses homens já estejam aqui, agora mesmo.
Assembleia estelar traz para os novos leitores a nova versão da noveleta “A pedra que canta”, de Henrique Flory, originalmente visto na coletânea de mesmo nome publicada pela Editora GRD em 1991. Trata-se da história de um jovem que recebeu um implante especial e pode literalmente fazer a “pedra cantar” numa ação que vai acabar com a guerra entre o Brasil e a Argentina.
Em “O dia antes da revolução”, Ursula K. Le Guin volta ao universo de seu romance Os despossuídos com uma prequela que mostra os últimos dias de Laia Odo, pensadora política que construiu o sonho anarquista de Anarres. Tal como o romance, este conto foi premiado com Hugo e Nebula, e é certamente o texto mais importante desta antologia. O conto foi originalmente visto em 1974 na revista Galaxy e recebeu tradução de Roberto de Sousa Causo.
A Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira está aqui representada por “O grande rio”, do autor mineiro Flávio Medeiros Jr, que elaborou uma ucronia intrincada para contar sua versão do assassinato do presidente John F. Kennedy.
O texto mais longo da antologia é a novela “O originista”, de Orson Scott Card, que também investe numa prequela, porém não de um romance próprio como fez Le Guin, mas ao clássico Fundação, de Isaac Asimov. O texto fez parte da antologia Foundations friends, organizada em 1989 por Martin H. Greenberg. Conta, de forma muito íntima, como o intelectual Hari Seldon, criador da Fundação e da Psico-História, desenvolveu o plano secreto de resistência ao governo totalitário do Império Galáctico a partir de um gigantesco mecanismo de pesquisa eletrônica que se parece muito com o Google moderno. A tradução é de Carlos Angelo.
“Questão de sobrevivência”, um dos textos mais publicados do escritor jundiaiense Carlos Orsi, também se insere no conflito entre um grupo de resistência e um governo totalitário.
A chave de ouro que fecha a antologia é “Vemos as coisas de modo diferente”, conto do papa cyberpunk Bruce Sterling, originalmente publicado em 1989 na coletânea Semiotext[e] sf. A história faz uma extrapolação do conflito ocidente-oriente contando sobre um jornalista de um próspero mundo árabe que vem aos Estados Unidos – que está mergulhado em uma profunda crise econômica – para entrevistar um superstar do rock. A tradução é de Roberto de Sousa Causo.
Como se vê, trata-se de um livro de peso, tanto pelos autores quanto pelos textos reunidos, sendo uma das mais importantes antologias de ficção científica publicadas no Brasil nos últimos anos.
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