Está circulando o número 44 da revista eletrônica Conexão Literatura, editada por Ademir Pascale.
A edição tem 50 páginas e traz contos de Roberto Schima e Mírian Santiago, entrevistas com Alexandre Mascarenhas (À sombra do barco) e Wellington Budim (Teu pecado). Resenhas, artigos e divulgações de filmes e livros completam a edição.
Conexão Literatura é gratuita e pode ser baixada aqui. Edições anteriores também estão disponíveis.
quinta-feira, 31 de janeiro de 2019
Conexão Literatura 44
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Múltiplo 27
Está circulando a primeira edição de 2019 do fanzine virtual de quadrinhos Múltiplo, editado por André Carim.
Este número 27 tem 84 páginas e comemora o Dia do Quadrinho Nacional (30 de janeiro, aniversário do pioneiro Angelo Agostini). Outro destaque da edição é a homenagem ao quadrinhista carioca Calos Patati, falecido em 2018, que assina o roteiro de uma das hqs da edição. Ainda colaboram com quadrinhos Hugo Máximo, Guido Van Pie, Marcos Gratão, Edvaldo Cardozo, Max Piaga e Pedro Henrique Cypreste. E também ilustrações de Estêvão Moraes e capa de Fernando Lobo.
A publicação pode ser lida online ou baixada gratuitamente aqui; as edições anteriores também estão disponíveis. O zine pode ser encomendado em formato impresso, aqui
Este número 27 tem 84 páginas e comemora o Dia do Quadrinho Nacional (30 de janeiro, aniversário do pioneiro Angelo Agostini). Outro destaque da edição é a homenagem ao quadrinhista carioca Calos Patati, falecido em 2018, que assina o roteiro de uma das hqs da edição. Ainda colaboram com quadrinhos Hugo Máximo, Guido Van Pie, Marcos Gratão, Edvaldo Cardozo, Max Piaga e Pedro Henrique Cypreste. E também ilustrações de Estêvão Moraes e capa de Fernando Lobo.
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sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
Era a guerra de trincheiras
Era a guerra de trincheiras (C'était la guerre des tranchées), Jacques Tardi. Tradução de Ana Ban, 128 páginas. Editora Nemo, 2011.
Com o fim da corrida espacial e a derrocada da visão positivista de um futuro limpo e luminoso, a atenção das pessoas volta-se para o passado. Os fatos da história têm ganhado audiência em todo o mundo e também no Brasil. Livros sobre a história têm se tornado bestsellers e há até um canal da tv a cabo exclusivamente dedicado a ela, muito adequadamente chamado de History Channel.
Histórias em quadrinhos documentais estão cada vez mais em pauta, tanto sobre o passado distante quanto recente. As guerras são um cenário recorrente e rico, e já sustentaram seriados importantes em todos os mercados do mundo, como a coleção Combate, publicada no Brasil nos anos 1960 pela Editora Taika. Clássicos como Maus de Art Spiegelman e Gen: Pés descalços, de Keiji Nakazawa, mostram que ainda há muito o que se dizer sobre os grandes conflitos humanos.
Entretanto, algumas guerras parecem interessar mais do que outras. A Guerra do Vietnã e a Segunda Guerra Mundial ocupam a maior parte das páginas publicadas, por isso é valiosa a tradução no Brasil do álbum Era a guerra de trincheiras, do multipremiado cartunista francês Jacques Tardi.
Tardi nasceu em 1930, em Valence, França. Começou a fazer quadrinhos aos 23 anos, na revista Pilote, em parcerias com Jean Giraud, Serge de Beketch e Pierre Christin. Um de seus maiores sucessos foi a série Les aventures extraordinaires d'Adèle Blanc-Sec (iniciada em 1976), com histórias de uma investigadora paranormal ambientadas no início do século 20. Praticamente inédito no Brasil, Tardi teve publicado por aqui Le cri du peuple (O grito do povo, Conrad, 2005), álbum em dois volumes com roteiros de Jean Vautrin. Contudo, suas mais importantes contribuições para a arte dos quadrinhos são seus muitos relatos antibélicos, tais como Adieu Brindavoine (1974), Le trou d'obus (1984), e C'était la guerre des tranchées, vencedor do Eisner Awards 2011 em duas categorias.
Publicado originalmente em 1993 pela Casterman, Era a guerra de trincheiras chegou ao Brasil em 2011 pela Editora Nemo, com tradução de Ana Ban. Conta episódios dramáticos reais acontecidos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, provavelmente o conflito mais sangrento e absurdo da história do mundo.
Tardi reproduz os relatos de seu avô, que participou dessa guerra e testemunhou o cotidiano terrível e brutalizante que os soldados enfrentaram no front, durante anos de imobilidade enterrados em buracos lamacentos e insalubres, apenas porque seus comandantes não sabiam como lutar com as novíssimas tecnologias disponíveis. Blindados, aviões, bombas cada vez mais poderosas, gás, metralhadoras, tudo era experimentado como num show de horrores mortal. A Tardi não importam os motivos e o desfecho do conflito, mas as histórias particulares de soldados mal preparados que, na maior parte do tempo, sequer sabiam o que estavam fazendo ali.
O traço caricato reforça o horror da guerra, com um estilo que não nos permite desviar o olhar, como talvez fizéssemos caso o desenho fosse mais realista. Também transmite uma sensação de instabilidade contínua, de sujeira e umidade, que impregna a percepção. Embora não tenha sido intenção do autor fazer um documentário, a reconstituição é cuidadosa, com arquitetura, armas, veículos e uniformes perfeitamente caracterizados.
O acabamento do álbum é primoroso, as 128 páginas impressas em preto e branco sobre papel cuchê, encadernadas em capa dura. Nas duas últimas últimas páginas, estampa uma lista com filmes e livros sobre a Primeira Guerra Mundial, que valem como um guia de pesquisa para quem quiser se aprofundar no assunto.
Como trabalho de arte, Era a guerra de trincheiras é incomparável. Como histórias em quadrinhos, contudo, deixa um pouco a desejar, já que sua narrativa é fragmentada e distante, sem protagonista fixo, na maior parte do tempo narrada por recordatórios. Os poucos balões que surgem têm textos longuíssimos, as vezes quase incompreensíveis, que estancam a dinâmica narrativa e tornam a leitura lenta e difícil, obrigando o leitor a olhar os desenhos com ainda mais atenção.
De qualquer forma, isso é irrelevante frente a qualidade da arte de Tardi que, por si só, justifica plenamente a publicação do álbum, além de sua leitura do conflito ser de todo procedente e significativa.
Com o fim da corrida espacial e a derrocada da visão positivista de um futuro limpo e luminoso, a atenção das pessoas volta-se para o passado. Os fatos da história têm ganhado audiência em todo o mundo e também no Brasil. Livros sobre a história têm se tornado bestsellers e há até um canal da tv a cabo exclusivamente dedicado a ela, muito adequadamente chamado de History Channel.
Histórias em quadrinhos documentais estão cada vez mais em pauta, tanto sobre o passado distante quanto recente. As guerras são um cenário recorrente e rico, e já sustentaram seriados importantes em todos os mercados do mundo, como a coleção Combate, publicada no Brasil nos anos 1960 pela Editora Taika. Clássicos como Maus de Art Spiegelman e Gen: Pés descalços, de Keiji Nakazawa, mostram que ainda há muito o que se dizer sobre os grandes conflitos humanos.
Entretanto, algumas guerras parecem interessar mais do que outras. A Guerra do Vietnã e a Segunda Guerra Mundial ocupam a maior parte das páginas publicadas, por isso é valiosa a tradução no Brasil do álbum Era a guerra de trincheiras, do multipremiado cartunista francês Jacques Tardi.
Tardi nasceu em 1930, em Valence, França. Começou a fazer quadrinhos aos 23 anos, na revista Pilote, em parcerias com Jean Giraud, Serge de Beketch e Pierre Christin. Um de seus maiores sucessos foi a série Les aventures extraordinaires d'Adèle Blanc-Sec (iniciada em 1976), com histórias de uma investigadora paranormal ambientadas no início do século 20. Praticamente inédito no Brasil, Tardi teve publicado por aqui Le cri du peuple (O grito do povo, Conrad, 2005), álbum em dois volumes com roteiros de Jean Vautrin. Contudo, suas mais importantes contribuições para a arte dos quadrinhos são seus muitos relatos antibélicos, tais como Adieu Brindavoine (1974), Le trou d'obus (1984), e C'était la guerre des tranchées, vencedor do Eisner Awards 2011 em duas categorias.
Publicado originalmente em 1993 pela Casterman, Era a guerra de trincheiras chegou ao Brasil em 2011 pela Editora Nemo, com tradução de Ana Ban. Conta episódios dramáticos reais acontecidos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, provavelmente o conflito mais sangrento e absurdo da história do mundo.
Tardi reproduz os relatos de seu avô, que participou dessa guerra e testemunhou o cotidiano terrível e brutalizante que os soldados enfrentaram no front, durante anos de imobilidade enterrados em buracos lamacentos e insalubres, apenas porque seus comandantes não sabiam como lutar com as novíssimas tecnologias disponíveis. Blindados, aviões, bombas cada vez mais poderosas, gás, metralhadoras, tudo era experimentado como num show de horrores mortal. A Tardi não importam os motivos e o desfecho do conflito, mas as histórias particulares de soldados mal preparados que, na maior parte do tempo, sequer sabiam o que estavam fazendo ali.
O traço caricato reforça o horror da guerra, com um estilo que não nos permite desviar o olhar, como talvez fizéssemos caso o desenho fosse mais realista. Também transmite uma sensação de instabilidade contínua, de sujeira e umidade, que impregna a percepção. Embora não tenha sido intenção do autor fazer um documentário, a reconstituição é cuidadosa, com arquitetura, armas, veículos e uniformes perfeitamente caracterizados.
O acabamento do álbum é primoroso, as 128 páginas impressas em preto e branco sobre papel cuchê, encadernadas em capa dura. Nas duas últimas últimas páginas, estampa uma lista com filmes e livros sobre a Primeira Guerra Mundial, que valem como um guia de pesquisa para quem quiser se aprofundar no assunto.
Como trabalho de arte, Era a guerra de trincheiras é incomparável. Como histórias em quadrinhos, contudo, deixa um pouco a desejar, já que sua narrativa é fragmentada e distante, sem protagonista fixo, na maior parte do tempo narrada por recordatórios. Os poucos balões que surgem têm textos longuíssimos, as vezes quase incompreensíveis, que estancam a dinâmica narrativa e tornam a leitura lenta e difícil, obrigando o leitor a olhar os desenhos com ainda mais atenção.
De qualquer forma, isso é irrelevante frente a qualidade da arte de Tardi que, por si só, justifica plenamente a publicação do álbum, além de sua leitura do conflito ser de todo procedente e significativa.
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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019
Heróis de Novigrath
Heróis de Novigrath, Roberta Spindler. 296 páginas. São Paulo: Companhia das Letras, selo Suma, 2018.
Jogos que se confundem com a realidade formam um grupo tão grande na ficção fantástica recente que bem poderiam constituir um novo subgênero. Há histórias de jogadores que entram fisicamente no jogo, jogos que invadem a realidade, jogos reais ao estilo reality show quase sempre mortais, jogos que interagem com a realidade de formas mais ou menos sutis, e até jogos que parecem ser só jogos, mas na verdade são interfaces de realidade, mas só saberemos isso no momento propício.
Na ficção estrangeira, algumas dessas histórias tornaram-se grandes sucessos, como O jogo do exterminador de Orson Scott Card, Jogos vorazes de Suzanne Collins, Simulacron-3 de Daniel F. Galouye, Jumanji de Chris Van Allsburg, Jogador nº1 de Ernest Cline, e também no cinema, com Tron: Uma odisseia eletrônica, Zathura: Uma aventura espacial, Rollerball: Os gladiadores do futuro, Corrida da morte: Ano 2000 e O último guerreiro das estrelas, entre outros. No Brasil o tema também já rendeu, como as séries 3% (Netflix) e Supermax (Globo), e o excelente romance O jogo no tabuleiro, de Simone Saueressig, comentado aqui.
Então, da mesma forma que em outros subgêneros muito explorados, como a alta fantasia, a ucronia e a space opera, por exemplo, a originalidade não é um aspecto tão importante também nessa área. Há muito que os fundamentos e protocolos desses modelos recorrentes na fcf já estão em domínio público, e ninguém vai reclamar se a ideia é mais ou menos parecida com essa ou aquela. Portanto, no meu modo de ver, não há nenhum problema quanto a isso em Heróis de Novigrath, segundo romance da escritora paraense Roberta Spindler, que estreou em 2014 com o romance de ficção científica A torre acima do véu (Editora Giz).
No livro, Heróis de Novigrath é um mundialmente popular jogo MMORPG – Massively Multiplayer Online Role-Playing Game –, encarado como esporte profissional com campeonatos disputadíssimos (tal como acontece na realidade com as franquias League of Legends e World of Warcraft).
Produzido pela megacorporação Noise Games, Heróis de Novigrath apresenta um cenário de guerra medieval na qual digladiam personagens mágicos de duas castas opostas: os Defensores de Lumnia e os Filhos de Asgorth. Como fica logo evidente, os primeiros representam o bem, e os outros, o mal. Devido a extrema devoção de seus usuários, o universo do jogo adquiriu existência numa realidade paralela, mas os Filhos de Asgorth não estão satisfeitos com essa condição e cobiçam a materialidade do mundo dos homens. Para atingir seu intento, absorvem a energia dos jogadores online e, com esse aporte de poder, predominam em seu universo sobre os Defensores de Lumnia. Estes, por sua vez, para frustrar os planos malignos de seus adversários, enviam à Terra um de seus campeões, o guerreiro Yeng Xiao, com a missão de selecionar uma equipe de cinco jogadores humanos com talentos especiais que possam impedir os Filhos de Asgorth de vencer o campeonato mundial do jogo pois, caso uma das equipes de Asgorth vença, a energia acumulada de bilhões de torcedores dessa casta do mal abrirá uma passagem através da qual as hordas invadirão a Terra, trazendo ao nosso mundo todos os horrores do jogo.
A história é contada a partir da visão de Pedro (codinome Epic), ex-jogador de Heróis de Novigrath, caído em desgraça depois de um escândalo num antigo campeonato sul-americano. Apesar de decadente, Pedro é escolhido por Xiao para ser o técnico da equipe de Lumnia, a Vira-Latas. Orientado pelo guerreiro virtual, Pedro convoca seus jogadores: o jovem fenômeno Cristiano (codinome Fúria, décimo no ranking brasileiro), a vestibulanda Samara (Titânia, igualmente bem ranqueada), a universitária Aline (NomNom) e os irmãos gêmeos Pietro e Adriano (Roxi e LordMetal, respectivamente).
O romance se divide em três partes principais. Na primeira, acompanhamos a montagem da equipe: os jovens se estranham e têm conflitos pessoais e coletivos que levam o técnico Pedro aos limites de sua curta paciência. A segunda parte mostra a campanha da Vira-Latas no Campeonato Brasileiro, quando os jogadores são testados em combate e têm de se entender ou morrer. A cada nível superado, os protagonistas amalgamam mais profundamente seus avatares no jogo, ao ponto de não só experimentarem uma interface totalmente imersiva durante as partidas, mas também manifestarem seus poderes fora do jogo, no mundo real, para se defenderem de entidades de Asgorth que os atacam. Na parte final, acompanhamos a Vira-Latas no campeonato mundial, na Coreia do Sul, quando terá de enfrentar sua nêmesis, a poderosa equipe dos Espartanos, dirigida por Yuri, o maior jogador de Novigrath que existe.
A autora é competente em retratar a evolução técnica e psicológica dos personagens que, de uma equipe desorganizada e insegura, torna-se uma máquina de combate bem azeitada. Há bons dramas humanos para temperar a narrativa e alguma ousadia, como a presença de um personagem homossexual entre os protagonistas, o que tem sido recorrente nos livros de fcf nacionais publicados pela Suma. Também foi uma boa sacada o uso de uma pletora de termos técnicos que deu autenticidade ao ambiente ficcional. Desconheço se o jargão é efetivamente usado pelos gamers na vida real; se não for, o trabalho de construí-lo é algo realmente admirável. A edição da Companhia das Letras/Suma é bem cuidada e praticamente não tem erros.
Não se deve esperar surpresas e viradas dramáticas, pois a história é simples, claramente maniqueista, linear e fechadinha, muito bem estabelecida como literatura de entretenimento infanto-juvenil, que se desenrola diante do leitor como um filme da sessão da tarde. Longe de ser um problema, este é justamente o maior mérito de Heróis de Novigrath, pois a contínua formação de leitores para o gênero é fundamental. Roberta Spindler vem assim se juntar a outros valentes autores de literatura fantástica infanto-juvenil, como Rosana Rios, Miguel Carqueija, Helena Gomes, a já citada Simone Saueressig, entre outros. Esta literatura precisa ter lugar de destaque nas estantes das livrarias porque, sem os jovens leitores hoje, não haverá leitores adultos amanhã.
Mas nada impede que leitores maduros também se divirtam com Heróis de Novigrath. Eu gostei e recomendo.
Jogos que se confundem com a realidade formam um grupo tão grande na ficção fantástica recente que bem poderiam constituir um novo subgênero. Há histórias de jogadores que entram fisicamente no jogo, jogos que invadem a realidade, jogos reais ao estilo reality show quase sempre mortais, jogos que interagem com a realidade de formas mais ou menos sutis, e até jogos que parecem ser só jogos, mas na verdade são interfaces de realidade, mas só saberemos isso no momento propício.
Na ficção estrangeira, algumas dessas histórias tornaram-se grandes sucessos, como O jogo do exterminador de Orson Scott Card, Jogos vorazes de Suzanne Collins, Simulacron-3 de Daniel F. Galouye, Jumanji de Chris Van Allsburg, Jogador nº1 de Ernest Cline, e também no cinema, com Tron: Uma odisseia eletrônica, Zathura: Uma aventura espacial, Rollerball: Os gladiadores do futuro, Corrida da morte: Ano 2000 e O último guerreiro das estrelas, entre outros. No Brasil o tema também já rendeu, como as séries 3% (Netflix) e Supermax (Globo), e o excelente romance O jogo no tabuleiro, de Simone Saueressig, comentado aqui.
Então, da mesma forma que em outros subgêneros muito explorados, como a alta fantasia, a ucronia e a space opera, por exemplo, a originalidade não é um aspecto tão importante também nessa área. Há muito que os fundamentos e protocolos desses modelos recorrentes na fcf já estão em domínio público, e ninguém vai reclamar se a ideia é mais ou menos parecida com essa ou aquela. Portanto, no meu modo de ver, não há nenhum problema quanto a isso em Heróis de Novigrath, segundo romance da escritora paraense Roberta Spindler, que estreou em 2014 com o romance de ficção científica A torre acima do véu (Editora Giz).
No livro, Heróis de Novigrath é um mundialmente popular jogo MMORPG – Massively Multiplayer Online Role-Playing Game –, encarado como esporte profissional com campeonatos disputadíssimos (tal como acontece na realidade com as franquias League of Legends e World of Warcraft).
Produzido pela megacorporação Noise Games, Heróis de Novigrath apresenta um cenário de guerra medieval na qual digladiam personagens mágicos de duas castas opostas: os Defensores de Lumnia e os Filhos de Asgorth. Como fica logo evidente, os primeiros representam o bem, e os outros, o mal. Devido a extrema devoção de seus usuários, o universo do jogo adquiriu existência numa realidade paralela, mas os Filhos de Asgorth não estão satisfeitos com essa condição e cobiçam a materialidade do mundo dos homens. Para atingir seu intento, absorvem a energia dos jogadores online e, com esse aporte de poder, predominam em seu universo sobre os Defensores de Lumnia. Estes, por sua vez, para frustrar os planos malignos de seus adversários, enviam à Terra um de seus campeões, o guerreiro Yeng Xiao, com a missão de selecionar uma equipe de cinco jogadores humanos com talentos especiais que possam impedir os Filhos de Asgorth de vencer o campeonato mundial do jogo pois, caso uma das equipes de Asgorth vença, a energia acumulada de bilhões de torcedores dessa casta do mal abrirá uma passagem através da qual as hordas invadirão a Terra, trazendo ao nosso mundo todos os horrores do jogo.
A história é contada a partir da visão de Pedro (codinome Epic), ex-jogador de Heróis de Novigrath, caído em desgraça depois de um escândalo num antigo campeonato sul-americano. Apesar de decadente, Pedro é escolhido por Xiao para ser o técnico da equipe de Lumnia, a Vira-Latas. Orientado pelo guerreiro virtual, Pedro convoca seus jogadores: o jovem fenômeno Cristiano (codinome Fúria, décimo no ranking brasileiro), a vestibulanda Samara (Titânia, igualmente bem ranqueada), a universitária Aline (NomNom) e os irmãos gêmeos Pietro e Adriano (Roxi e LordMetal, respectivamente).
O romance se divide em três partes principais. Na primeira, acompanhamos a montagem da equipe: os jovens se estranham e têm conflitos pessoais e coletivos que levam o técnico Pedro aos limites de sua curta paciência. A segunda parte mostra a campanha da Vira-Latas no Campeonato Brasileiro, quando os jogadores são testados em combate e têm de se entender ou morrer. A cada nível superado, os protagonistas amalgamam mais profundamente seus avatares no jogo, ao ponto de não só experimentarem uma interface totalmente imersiva durante as partidas, mas também manifestarem seus poderes fora do jogo, no mundo real, para se defenderem de entidades de Asgorth que os atacam. Na parte final, acompanhamos a Vira-Latas no campeonato mundial, na Coreia do Sul, quando terá de enfrentar sua nêmesis, a poderosa equipe dos Espartanos, dirigida por Yuri, o maior jogador de Novigrath que existe.
A autora é competente em retratar a evolução técnica e psicológica dos personagens que, de uma equipe desorganizada e insegura, torna-se uma máquina de combate bem azeitada. Há bons dramas humanos para temperar a narrativa e alguma ousadia, como a presença de um personagem homossexual entre os protagonistas, o que tem sido recorrente nos livros de fcf nacionais publicados pela Suma. Também foi uma boa sacada o uso de uma pletora de termos técnicos que deu autenticidade ao ambiente ficcional. Desconheço se o jargão é efetivamente usado pelos gamers na vida real; se não for, o trabalho de construí-lo é algo realmente admirável. A edição da Companhia das Letras/Suma é bem cuidada e praticamente não tem erros.
Não se deve esperar surpresas e viradas dramáticas, pois a história é simples, claramente maniqueista, linear e fechadinha, muito bem estabelecida como literatura de entretenimento infanto-juvenil, que se desenrola diante do leitor como um filme da sessão da tarde. Longe de ser um problema, este é justamente o maior mérito de Heróis de Novigrath, pois a contínua formação de leitores para o gênero é fundamental. Roberta Spindler vem assim se juntar a outros valentes autores de literatura fantástica infanto-juvenil, como Rosana Rios, Miguel Carqueija, Helena Gomes, a já citada Simone Saueressig, entre outros. Esta literatura precisa ter lugar de destaque nas estantes das livrarias porque, sem os jovens leitores hoje, não haverá leitores adultos amanhã.
Mas nada impede que leitores maduros também se divirtam com Heróis de Novigrath. Eu gostei e recomendo.
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Deus, o diabo e os super-heróis no país da corrupção
Meu velho amigo, o escritor e roteirista Sid Castro, chamou minha atenção para o interessantíssimo romance Deus, o diabo e os super-heróis no país da corrupção, de Fernando Fontana, escritor do interior de São Paulo, mais exatamente na região de Catanduva. Lançado em agosto de 2018, é o primeiro livro do autor, um drama policial e político num panorama de ficção científica ao estilo noir. Conta a história de um detetive de um Brasil alternativo no qual existem pessoas com superpoderes, mas não necessariamente super-heróis.
Diz a sinopse de divulgação: "Após um evento traumático, o detetive Lucca Carrara deixa o Departamento de Crimes Supranormais (DCS), e se transforma em um homem amargurado, com um passado questionável, vivendo em um país onde os assuntos do momento são o futebol, a corrupção e os super-heróis. Seus maiores amigos são o cigarro, a cerveja e o falecido escritor Charles Bukowski, com quem ocasionalmente conversa em seus delírios. Com a conta sempre no vermelho, e sem alternativa, ele aceita investigar um possível caso de adultério, envolvendo o Patriota, o maior e mais famoso super-herói do país, árduo defensor da moral e dos bons costumes, amado por muitos e protegido por um governo atolado em um mar de lama. Enquanto isso, no céu do país, as incrivelmente poderosas super-heroínas Justiça Escarlate e Miss Liberdade, mortais inimigas, lutam uma contra a outra em uma batalha que não parece ter fim, devastando quarteirões inteiros, e ignorando completamente os crimes que são cometidos ao seu redor. Um agente do Departamento de Crimes Supranormais procura por um vilão, que pode ser o principal responsável por uma terrível epidemia de estupidez que se alastra pela nação. Uma mulher invisível é ignorada. Um profeta lidera uma Cidade sem Nome. O mago mais poderoso do mundo transa com ele mesmo. É um mundo insano onde as leis da física foram abolidas. Em sua investigação, Carrara se envolverá em uma trama cada vez mais complexa e perigosa, colidindo com os interesses de homens poderosos, vilões que não vestem roupas coloridas e espalhafatosas, uma legião do mal com terno e gravata importados, capazes de qualquer coisa para manter a posição que conquistaram. Para enfrentá-los, contará com a ajuda de uma prostituta com super poderes, um indigente voador, um ex-super-herói com corpo blindado e do homem mais sortudo do mundo. Ainda assim, as chances estarão contra ele."
Os próximos projetos de Fontana são uma novela gráfica no mesmo universo do romance (com roteiro de Sid Castro e desenhos de Ivan Lima) e um novo romance que terá o instigante título Procura-se Elvis vivo ou morto, que conta como Elvis foi encontrado numa pequena cidade do interior paulista, cuja prefeita é a Morte.
Deus, o diabo e os super-heróis no país da corrupção tem 266 páginas e é uma publicação da editora Viseu.
Diz a sinopse de divulgação: "Após um evento traumático, o detetive Lucca Carrara deixa o Departamento de Crimes Supranormais (DCS), e se transforma em um homem amargurado, com um passado questionável, vivendo em um país onde os assuntos do momento são o futebol, a corrupção e os super-heróis. Seus maiores amigos são o cigarro, a cerveja e o falecido escritor Charles Bukowski, com quem ocasionalmente conversa em seus delírios. Com a conta sempre no vermelho, e sem alternativa, ele aceita investigar um possível caso de adultério, envolvendo o Patriota, o maior e mais famoso super-herói do país, árduo defensor da moral e dos bons costumes, amado por muitos e protegido por um governo atolado em um mar de lama. Enquanto isso, no céu do país, as incrivelmente poderosas super-heroínas Justiça Escarlate e Miss Liberdade, mortais inimigas, lutam uma contra a outra em uma batalha que não parece ter fim, devastando quarteirões inteiros, e ignorando completamente os crimes que são cometidos ao seu redor. Um agente do Departamento de Crimes Supranormais procura por um vilão, que pode ser o principal responsável por uma terrível epidemia de estupidez que se alastra pela nação. Uma mulher invisível é ignorada. Um profeta lidera uma Cidade sem Nome. O mago mais poderoso do mundo transa com ele mesmo. É um mundo insano onde as leis da física foram abolidas. Em sua investigação, Carrara se envolverá em uma trama cada vez mais complexa e perigosa, colidindo com os interesses de homens poderosos, vilões que não vestem roupas coloridas e espalhafatosas, uma legião do mal com terno e gravata importados, capazes de qualquer coisa para manter a posição que conquistaram. Para enfrentá-los, contará com a ajuda de uma prostituta com super poderes, um indigente voador, um ex-super-herói com corpo blindado e do homem mais sortudo do mundo. Ainda assim, as chances estarão contra ele."
Os próximos projetos de Fontana são uma novela gráfica no mesmo universo do romance (com roteiro de Sid Castro e desenhos de Ivan Lima) e um novo romance que terá o instigante título Procura-se Elvis vivo ou morto, que conta como Elvis foi encontrado numa pequena cidade do interior paulista, cuja prefeita é a Morte.
Deus, o diabo e os super-heróis no país da corrupção tem 266 páginas e é uma publicação da editora Viseu.
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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
Enterre seus mortos
Enterre seus mortos, Ana Paula Maia, 134 páginas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Edgar Wilson tem um emprego peculiar: ele participa de uma equipe de trabalhadores que recolhe animais mortos das estradas e vicinais de uma região genérica no interior do país. Seu trabalho é dirigir a caminhonete da empresa ao local para onde os atendentes determinam, recolher as carcaças e levá-las para a sede da empresa, onde serão processadas num grande moedor para serem transformadas em adubo. Seu colega de trabalho é Tomás, um padre excomungado que, além de coletor de corpos, dá atendimento espiritual aos moribundos e nos acidentes que eventualmente atendem. A vida deles está longe de ser um mar de rosas: além do serviço medonho, cada um tem sua própria dor para carregar.
Mesmo assim, Edgar Wilson é um funcionário dedicado, que recolhe toda coisa morta que se lhe aparece pelo caminho. E é por causa desse hábito pouco saudável que se envolve numa complicada trama de assassinato e corrupção, ao encontrar o corpo de uma mulher enforcada no meio do mato.
Ninguém parece querer o defunto. Não há família procurando pela falecida, a polícia está sem condições de investigar a morte e o IML local não tem uma viatura para transportar o cadáver. Por achar uma indignidade deixar o corpo ser devorado pelos animais selvagens, Edgar Wilson decide guardá-lo no velho frízer sem uso no galpão da empresa, pelo menos até que a polícia possa vir buscá-lo. Mas os dias passam e nada das autoridades fazerem sua obrigação.
Para piorar ainda mais a situação, outro cadáver, desta vez de um homem, vem se juntar ao primeiro. Quando o frízer repentinamente para de funcionar, Edgar Wilson é intimado pela gerência da empresa a dar um destino aos dois corpos. Ainda incomodado com a possibilidade de não dar aos cadáveres um destino digno, Edgar e Tomás colocam os corpos no porta-malas de uma caravan e decidem levá-los eles mesmos para o IML da cidade. E é aí que os problemas realmente vão se complicar.
Esta é a história que a escritora Ana Paula Maia conta em seu sétimo romance Enterre seus mortos, publicado em 2018 pela Companhia das Letras. Nascida em Nova Iguaçu em 1977, Ana Paula estreou com o romance O habitante das falhas subterrâneas, publicado em 2003 pela Editora 7 Letras. Também é autora de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), Carvão animal (2011) e Assim na terra como embaixo da terra (2017), entre outros romances que já ganharam edições na Alemanha, França, Itália, Estados Unidos, Espanha, Sérvia e Argentina. É, portanto, uma autora experiente, que domina bem as ferramentas narrativas. Seu estilo é brutalista e cruel, mas não chega a ser aterrorizante neste Enterre seus mortos, embora seja no terror que pareça mais adequadamente classificar este trabalho, embora a história tenha fortes aspectos de policial e até de faroeste.
Seguindo o conselho do mestre do horror Stephen King, na ausência do clima evidente de terror e de um monstro apavorante, Ana Paula evoca a escatologia e a morbidez com todo o requinte de seu arsenal, para causar nojo no leitor. Para obter resultados mais efetivos, associa as descrições de estripamentos e cheiros nauseantes aos alimentos que Edgar e Tomás consomem o tempo todo. Contudo, o efeito não é plenamente atingido e não incomoda a leitura, que progride com rapidez e leveza pois, de fato, Enterre seus mortos não é um romance, mas uma novela: é possível lê-la de cabo a rabo em pouco mais de duas horas.
Apesar do estilo naturalista, parece inadequado classificar a história como realista, devido a uma certa fabulação mais associada ao absurdismo e ao realismo fantástico. Isso porque, além da natureza improvável do trabalho de Edgar Wilson, e do fato das aves necrófagas serem insistentemente chamadas de abutres embora a história seja evidentemente passada no Brasil (o que temos aqui são urubus, que são de uma outra família), é um tanto bizarro que numa região onde nenhuma instituição funciona, na qual nem o IML nem a polícia cumprem suas obrigações fundamentais, um indivíduo de nuances marginais, fazendo uso irregular do equipamento de uma empresa privada que, contra todos os prognósticos, funciona com competência, faça sozinho e sem qualquer supervisão aquilo que é trabalho das autoridades. Numa perigosa leitura política, esse conceito legitima o discurso do neoliberalismo, que acusa o Estado de ser uma máquina funcional unicamente para promover corrupção, justifica a ação individual e condena toda a ação pública. Ainda bem que isso é apenas ficção e nunca aconteceria na vida real...
Quem tiver estômago fraco talvez não suporte bem a leitura de Enterre seus mortos, mas acredito que vale o esforço, pois o texto correto é fluido de Ana Paula Maia é muito bom e justifica plenamente a aventura. Para os especialistas, é um sopro de ar – ainda que não tão fresco, no caso – na recorrência de temas e estilos da nossa ficção fantástica.
Edgar Wilson tem um emprego peculiar: ele participa de uma equipe de trabalhadores que recolhe animais mortos das estradas e vicinais de uma região genérica no interior do país. Seu trabalho é dirigir a caminhonete da empresa ao local para onde os atendentes determinam, recolher as carcaças e levá-las para a sede da empresa, onde serão processadas num grande moedor para serem transformadas em adubo. Seu colega de trabalho é Tomás, um padre excomungado que, além de coletor de corpos, dá atendimento espiritual aos moribundos e nos acidentes que eventualmente atendem. A vida deles está longe de ser um mar de rosas: além do serviço medonho, cada um tem sua própria dor para carregar.
Mesmo assim, Edgar Wilson é um funcionário dedicado, que recolhe toda coisa morta que se lhe aparece pelo caminho. E é por causa desse hábito pouco saudável que se envolve numa complicada trama de assassinato e corrupção, ao encontrar o corpo de uma mulher enforcada no meio do mato.
Ninguém parece querer o defunto. Não há família procurando pela falecida, a polícia está sem condições de investigar a morte e o IML local não tem uma viatura para transportar o cadáver. Por achar uma indignidade deixar o corpo ser devorado pelos animais selvagens, Edgar Wilson decide guardá-lo no velho frízer sem uso no galpão da empresa, pelo menos até que a polícia possa vir buscá-lo. Mas os dias passam e nada das autoridades fazerem sua obrigação.
Para piorar ainda mais a situação, outro cadáver, desta vez de um homem, vem se juntar ao primeiro. Quando o frízer repentinamente para de funcionar, Edgar Wilson é intimado pela gerência da empresa a dar um destino aos dois corpos. Ainda incomodado com a possibilidade de não dar aos cadáveres um destino digno, Edgar e Tomás colocam os corpos no porta-malas de uma caravan e decidem levá-los eles mesmos para o IML da cidade. E é aí que os problemas realmente vão se complicar.
Esta é a história que a escritora Ana Paula Maia conta em seu sétimo romance Enterre seus mortos, publicado em 2018 pela Companhia das Letras. Nascida em Nova Iguaçu em 1977, Ana Paula estreou com o romance O habitante das falhas subterrâneas, publicado em 2003 pela Editora 7 Letras. Também é autora de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), Carvão animal (2011) e Assim na terra como embaixo da terra (2017), entre outros romances que já ganharam edições na Alemanha, França, Itália, Estados Unidos, Espanha, Sérvia e Argentina. É, portanto, uma autora experiente, que domina bem as ferramentas narrativas. Seu estilo é brutalista e cruel, mas não chega a ser aterrorizante neste Enterre seus mortos, embora seja no terror que pareça mais adequadamente classificar este trabalho, embora a história tenha fortes aspectos de policial e até de faroeste.
Seguindo o conselho do mestre do horror Stephen King, na ausência do clima evidente de terror e de um monstro apavorante, Ana Paula evoca a escatologia e a morbidez com todo o requinte de seu arsenal, para causar nojo no leitor. Para obter resultados mais efetivos, associa as descrições de estripamentos e cheiros nauseantes aos alimentos que Edgar e Tomás consomem o tempo todo. Contudo, o efeito não é plenamente atingido e não incomoda a leitura, que progride com rapidez e leveza pois, de fato, Enterre seus mortos não é um romance, mas uma novela: é possível lê-la de cabo a rabo em pouco mais de duas horas.
Apesar do estilo naturalista, parece inadequado classificar a história como realista, devido a uma certa fabulação mais associada ao absurdismo e ao realismo fantástico. Isso porque, além da natureza improvável do trabalho de Edgar Wilson, e do fato das aves necrófagas serem insistentemente chamadas de abutres embora a história seja evidentemente passada no Brasil (o que temos aqui são urubus, que são de uma outra família), é um tanto bizarro que numa região onde nenhuma instituição funciona, na qual nem o IML nem a polícia cumprem suas obrigações fundamentais, um indivíduo de nuances marginais, fazendo uso irregular do equipamento de uma empresa privada que, contra todos os prognósticos, funciona com competência, faça sozinho e sem qualquer supervisão aquilo que é trabalho das autoridades. Numa perigosa leitura política, esse conceito legitima o discurso do neoliberalismo, que acusa o Estado de ser uma máquina funcional unicamente para promover corrupção, justifica a ação individual e condena toda a ação pública. Ainda bem que isso é apenas ficção e nunca aconteceria na vida real...
Quem tiver estômago fraco talvez não suporte bem a leitura de Enterre seus mortos, mas acredito que vale o esforço, pois o texto correto é fluido de Ana Paula Maia é muito bom e justifica plenamente a aventura. Para os especialistas, é um sopro de ar – ainda que não tão fresco, no caso – na recorrência de temas e estilos da nossa ficção fantástica.
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sábado, 19 de janeiro de 2019
O elefante desaparece
O elefante desaparece (Zô no shômetzu), Haruki Murakami. 304 páginas. Traduzido do japonês por Lica Hashimoto. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Publicado originalmente em 2013 no Japão.
Uma vez perguntaram ao fantasista goiano José Veiga de onde ele tirava suas ideias fantásticas. Ele respondeu, um tanto contrariado, que o que escrevia não era fantasia, era a pura realidade. De igual modo, perguntaram ao então quadrinhista (hoje escritor) Lourenço Mutarelli como ele havia desenvolvido o estilo caricato de suas ilustrações. Muito espantado, ele respondeu que seu desenho era realista, pois desenhava as coisas exatamente como eram.
Estas duas histórias são perfeitas para ilustrar a sensação de ler os escritos de Haruki Murakami, com uma pequena mas importante diferença: tudo é perfeitamente real em sua ficção mas não parece certo, algo que não pode ser perfeitamente percebido, que nunca se apresenta mas causa uma contínua tensão de estranhamento, muitas vezes beirando o insuportável. Por isso, sua ficção não é de fácil leitura e ainda mais difícil de interpretar.
Murakami nasceu em Kyoto em 1949 e é um dos mais importantes autores japoneses vivos. Continua morando no seu país natal, próximo a Tóquio, e entre seus livros mais famosos estão Kafka à beira-mar, Crônica do pássaro de corda e a série 1Q84, considerada uma legítima história de ficção científica.
O elefante desaparece é uma coletânea de 17 contos que pode servir bem como entrada à obra de Murakami, tanto para o leitor que não gosta de fantasia, uma vez que os textos do autor são muito naturalistas, muitas vezes nas franjas da crônica urbana, como para o leitor experiente que cansou dos protocolos recorrentes da fantasia convencional. Muitas histórias tem um clima tão intimista que parecem confissões do autor. Apenas uma e outra flertam mais descaradamente com o fantástico, como veremos a seguir.
"O pássaro de corda e a mulher da terça-feira" é uma dessas quase crônicas. Um homem que perdeu o emprego há poucos dias é incumbido pela esposa de encontrar o gato fugido. Na modorra de uma tarde ensolarada, ele busca o animal pelo beco que une os quintais da vizinhança – é impossível não visualizar a típica arquitetura urbana japonesa nessa hora – e acaba tendo um encontro inesperado com uma vizinha.
"O segundo assalto à padaria" é uma pérola. Um casal, assolado por uma fome desproporcional durante a madrugada, decide roubar pães de uma padaria. Mas, pelo avançado da hora, os dois não encontram nenhuma aberta. Então resolvem assaltar uma lanchonete 24 horas.
"Mensagem do canguru" é narrado em forma de epístola, na qual o funcionário do serviço de atendimento ao cliente de uma loja de departamentos, impressionado pela qualidade do texto de uma carta de reclamação declara seu amor à cliente desconhecida. O nível de psicose do funcionário faz com que o conto soe como prelúdio a história de terror.
"Sobre uma garota 100% perfeita que encontrei em uma manhã ensolarada de abril", é outra quase crônica, na qual um homem se impressiona com uma garota que viu na rua, mas não consegue falar com ela.
"Sono" conta a história de uma dona de casa que, depois de um sonho perturbador, deixa de dormir e passa a ter uma vida paralela à noite, enquanto sua família dorme.
"A queda do Império Romano, Rebelião indígena de 1881, Hitler invade a Polônia, E o mundo dos vendavais", como o título já revela, é um texto fragmentário, formado pela junção de fatos que um homem encadeia num fluxo de pensamento a partir de situações cotidianas que funcionam como disparadores.
"Lederhosen" é um tanto mais convencional. Conta a história de uma senhora que empreende uma viagem à Europa e recebe do marido o pedido por uma autêntica lederhosen, vestimenta típica da Alemanha. A busca pela peça vai causar uma forte transformação na mulher.
"Queimar celeiros" é uma das melhores histórias do volume. Conta a história de um homem que confidencia ao amigo sua fixação por queimar celeiros abandonados, e o leva a também experimentar a sensação de incendiar as coisas.
"O pequeno monstro verde" é uma das histórias em que o fantástico se apresenta de forma mais evidente. Uma mulher, sozinha em casa, recebe em sua porta a visita de um monstrinho verde que emergiu das raízes de uma árvore, e ele pede sua mão em casamento. Mas ela não é uma boa mulher.
"Caso de família" é uma crônica sobre um casal de irmãos que moram juntos, mas são muito diferentes entre si. Ele é relaxado e libertino, ela uma donzela educada e casadora. O equilíbrio da relação é alterado quando ela parece com um pretendente.
"Homens da tv" é outra história em que a fantasia se destaca mais claramente. Um homem sonolento testemunha, durante a madrugada, a invasão de sua casa por um grupo de homenzinhos que instalam uma televisão em sua sala. Espantado demais para reagir, ele simplesmente deixa acontecer até que todos se retirem. Como se isso já não fosse suficientemente estranho, a tv não exibe nada além de ruído branco, e sua esposa, sempre tão detalhista, não percebe o aparelho interferindo na decoração. As coisas ficam ainda mais estranhas quando os homenzinhos aparecem também em seu local de trabalho e ninguém além dele parece se dar conta dos estranhos invasores.
"Lento barco para a China" é o relato de um homem maduro sobre como conheceu seus primeiros chineses, dentre os quais uma jovem pelo qual se apaixonou, mas de quem se perdeu numa situação infeliz.
A fantasia volta a se declarar em "O anão dançarino", um conto de fadas sombrio e de matiz político, em que o sonho com o tal anão torna-se um fardo difícil de carregar.
"O último gramado ao entardecer" é um relato singelo mas repleto de tensão, em que um homem rememora sua juventude quando, demissionário em um emprego de aparar gramados, vai atender seu último cliente.
"Silêncio" tem o jeitão de um conto de Stephen King e começa com a pergunta: "Você já deu um soco em alguém durante uma briga?" A partir dessa questão, um homem relata ao amigo uma dura experiência sobre bulling e violência na escola que decerto ecoa naqueles que passaram por situações dessa natureza.
O volume fecha com o conto que dá nome a coletânea, uma história de realismo mágico, sobre o desaparecimento inexplicável – ou quase – do velho elefante e seu tratador no zoológico da cidade.
O elefante desaparece não é um livro divertido e de forma alguma deve ser tomado como uma leitura de entretenimento. Trata-se de uma leitura intimista, muitas vezes dolorida, mas não deixa de ser prazerosa devido as cores e sabores do Japão moderno que, sem deixar de ser singular, em muitas coisas é como qualquer outro lugar. Murakami mostra que é um grande mestre em manipular as emoções, sem pieguismos e sem receitas de bolo. Apesar da distância e da ausência metalinguística, arrisco comparar a experiência em ler sua ficção curta com a leitura de Jorge Luiz Borges pela profundidade dramática e o vigor criativo e narrativo.
É possível ensinar alguém a escrever bem. Mas para escrever como Murakami, é preciso ser Murakami.
Uma vez perguntaram ao fantasista goiano José Veiga de onde ele tirava suas ideias fantásticas. Ele respondeu, um tanto contrariado, que o que escrevia não era fantasia, era a pura realidade. De igual modo, perguntaram ao então quadrinhista (hoje escritor) Lourenço Mutarelli como ele havia desenvolvido o estilo caricato de suas ilustrações. Muito espantado, ele respondeu que seu desenho era realista, pois desenhava as coisas exatamente como eram.
Estas duas histórias são perfeitas para ilustrar a sensação de ler os escritos de Haruki Murakami, com uma pequena mas importante diferença: tudo é perfeitamente real em sua ficção mas não parece certo, algo que não pode ser perfeitamente percebido, que nunca se apresenta mas causa uma contínua tensão de estranhamento, muitas vezes beirando o insuportável. Por isso, sua ficção não é de fácil leitura e ainda mais difícil de interpretar.
Murakami nasceu em Kyoto em 1949 e é um dos mais importantes autores japoneses vivos. Continua morando no seu país natal, próximo a Tóquio, e entre seus livros mais famosos estão Kafka à beira-mar, Crônica do pássaro de corda e a série 1Q84, considerada uma legítima história de ficção científica.
O elefante desaparece é uma coletânea de 17 contos que pode servir bem como entrada à obra de Murakami, tanto para o leitor que não gosta de fantasia, uma vez que os textos do autor são muito naturalistas, muitas vezes nas franjas da crônica urbana, como para o leitor experiente que cansou dos protocolos recorrentes da fantasia convencional. Muitas histórias tem um clima tão intimista que parecem confissões do autor. Apenas uma e outra flertam mais descaradamente com o fantástico, como veremos a seguir.
"O pássaro de corda e a mulher da terça-feira" é uma dessas quase crônicas. Um homem que perdeu o emprego há poucos dias é incumbido pela esposa de encontrar o gato fugido. Na modorra de uma tarde ensolarada, ele busca o animal pelo beco que une os quintais da vizinhança – é impossível não visualizar a típica arquitetura urbana japonesa nessa hora – e acaba tendo um encontro inesperado com uma vizinha.
"O segundo assalto à padaria" é uma pérola. Um casal, assolado por uma fome desproporcional durante a madrugada, decide roubar pães de uma padaria. Mas, pelo avançado da hora, os dois não encontram nenhuma aberta. Então resolvem assaltar uma lanchonete 24 horas.
"Mensagem do canguru" é narrado em forma de epístola, na qual o funcionário do serviço de atendimento ao cliente de uma loja de departamentos, impressionado pela qualidade do texto de uma carta de reclamação declara seu amor à cliente desconhecida. O nível de psicose do funcionário faz com que o conto soe como prelúdio a história de terror.
"Sobre uma garota 100% perfeita que encontrei em uma manhã ensolarada de abril", é outra quase crônica, na qual um homem se impressiona com uma garota que viu na rua, mas não consegue falar com ela.
"Sono" conta a história de uma dona de casa que, depois de um sonho perturbador, deixa de dormir e passa a ter uma vida paralela à noite, enquanto sua família dorme.
"A queda do Império Romano, Rebelião indígena de 1881, Hitler invade a Polônia, E o mundo dos vendavais", como o título já revela, é um texto fragmentário, formado pela junção de fatos que um homem encadeia num fluxo de pensamento a partir de situações cotidianas que funcionam como disparadores.
"Lederhosen" é um tanto mais convencional. Conta a história de uma senhora que empreende uma viagem à Europa e recebe do marido o pedido por uma autêntica lederhosen, vestimenta típica da Alemanha. A busca pela peça vai causar uma forte transformação na mulher.
"Queimar celeiros" é uma das melhores histórias do volume. Conta a história de um homem que confidencia ao amigo sua fixação por queimar celeiros abandonados, e o leva a também experimentar a sensação de incendiar as coisas.
"O pequeno monstro verde" é uma das histórias em que o fantástico se apresenta de forma mais evidente. Uma mulher, sozinha em casa, recebe em sua porta a visita de um monstrinho verde que emergiu das raízes de uma árvore, e ele pede sua mão em casamento. Mas ela não é uma boa mulher.
"Caso de família" é uma crônica sobre um casal de irmãos que moram juntos, mas são muito diferentes entre si. Ele é relaxado e libertino, ela uma donzela educada e casadora. O equilíbrio da relação é alterado quando ela parece com um pretendente.
"Homens da tv" é outra história em que a fantasia se destaca mais claramente. Um homem sonolento testemunha, durante a madrugada, a invasão de sua casa por um grupo de homenzinhos que instalam uma televisão em sua sala. Espantado demais para reagir, ele simplesmente deixa acontecer até que todos se retirem. Como se isso já não fosse suficientemente estranho, a tv não exibe nada além de ruído branco, e sua esposa, sempre tão detalhista, não percebe o aparelho interferindo na decoração. As coisas ficam ainda mais estranhas quando os homenzinhos aparecem também em seu local de trabalho e ninguém além dele parece se dar conta dos estranhos invasores.
"Lento barco para a China" é o relato de um homem maduro sobre como conheceu seus primeiros chineses, dentre os quais uma jovem pelo qual se apaixonou, mas de quem se perdeu numa situação infeliz.
A fantasia volta a se declarar em "O anão dançarino", um conto de fadas sombrio e de matiz político, em que o sonho com o tal anão torna-se um fardo difícil de carregar.
"O último gramado ao entardecer" é um relato singelo mas repleto de tensão, em que um homem rememora sua juventude quando, demissionário em um emprego de aparar gramados, vai atender seu último cliente.
"Silêncio" tem o jeitão de um conto de Stephen King e começa com a pergunta: "Você já deu um soco em alguém durante uma briga?" A partir dessa questão, um homem relata ao amigo uma dura experiência sobre bulling e violência na escola que decerto ecoa naqueles que passaram por situações dessa natureza.
O volume fecha com o conto que dá nome a coletânea, uma história de realismo mágico, sobre o desaparecimento inexplicável – ou quase – do velho elefante e seu tratador no zoológico da cidade.
O elefante desaparece não é um livro divertido e de forma alguma deve ser tomado como uma leitura de entretenimento. Trata-se de uma leitura intimista, muitas vezes dolorida, mas não deixa de ser prazerosa devido as cores e sabores do Japão moderno que, sem deixar de ser singular, em muitas coisas é como qualquer outro lugar. Murakami mostra que é um grande mestre em manipular as emoções, sem pieguismos e sem receitas de bolo. Apesar da distância e da ausência metalinguística, arrisco comparar a experiência em ler sua ficção curta com a leitura de Jorge Luiz Borges pela profundidade dramática e o vigor criativo e narrativo.
É possível ensinar alguém a escrever bem. Mas para escrever como Murakami, é preciso ser Murakami.
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sexta-feira, 18 de janeiro de 2019
Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros
Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros, Aníbal Bragança e Márcia Abreu, orgs. 664 páginas. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
Em 1944, o escritor argentino Jorge Luiz Borges publicou na antologia Ficções o conto "A biblioteca de Babel". Nessa fantástica biblioteca imaginária, os pesquisadores encontram, perfeitamente alinhados em estantes idênticas e intermináveis, um exemplar de cada livro possível de ser escrito com as combinações dos dígitos dos quais dispomos para registrar nossas ideias. Ou seja, entre muitas obras ilegíveis também estariam ali todos os livros do mundo, de todos os tempos e culturas. Entre muitas leituras possíveis, Borges sublimou ali um intenso maravilhamento frente ao mercado livreiro e à imponderabilidade de suas gigantescas tiragens e variedade.
No romance Poeira: Demônios e maldições, de Nelson de Oliveira, publicado em 2010 pela editora Língua Geral e vencedor do prêmio Casa de Las Americas, um bibliotecário surta quando livros começam a brotar por todos os lados, numa volúpia que inviabiliza a sua devida classificação.
Ambas são ficções recheadas de espanto perante a importância do livro para a civilização. O fabuloso é a argamassa da ficção fantástica, está sempre lá. Por isso, quando se quer ser surpreendido, nada melhor que abrir um livro de ficção.
Mas isso também pode acontecer com um texto de não-ficção acadêmico?
Pode. Um exemplo disso é a antologia de ensaios Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros, organizada por Aníbal Bragança e Márcia Abreu, publicada em 2010 pela Editora UNESP e Fundação Biblioteca Nacional, comemorando os 200 anos da instalação da Impressão Régia no Brasil. Em 2011, este trabalho editorial foi agraciado pela Câmara Brasileira do Livro com o Prêmio Jabuti, na categoria Comunicação.
Geralmente, as publicações acadêmicas têm um viés tão específico e rigorosamente formatado aos padrões escolásticos que pouco ou nenhum prazer dão ao leitor leigo. São compêndios de conceitos científicos, com uma linguagem difícil e jargões impenetráveis. Contudo, enquanto conta a história da indústria editorial brasileira, a leitura desta antologia revela, como em Borges e Oliveira, um ambiente deliciosamente espetacular, nas franjas do fantástico e do mitológico.
Os organizadores têm ampla autoridade do assunto. Aníbal Bragança é português, mas tem toda a sua atividade acadêmica no Brasil. É Doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo, docente da Universidade Federal Fluminense, Coordenador-Geral de Pesquisa e Editoração da Fundação Biblioteca Nacional. É autor de Livraria ideal: Do cordel à bibliofilia (Com-Arte/Edusp, 2009), entre outros livros.
Márcia Abreu é professora do Departamento de Teoria Literária do IEL–UNICAMP, com doutorado em Teoria e História Literária na mesma Universidade, e pós-doutorado em História Cultural na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É autora dos livros Histórias de cordéis e folhetos (Mercado de Letras/ALB, 1999), Os caminhos dos livros (Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2003) e Cultura letrada: Literatura e leitura (UNESP, 2006), entre outros.
Impresso no Brasil tem a introdução do imortal da Academia Brasileira de Letras, José Mindlin (1914-2010), e em suas 664 páginas reúne 35 ensaios de autores diferentes, divididos em duas partes. A primeira, chamada "Uma nova história editorial brasileira: editores, tipógrafos e livreiros" trata da história das editoras no país. É a parte mais volumosa do livro, composta por 22 ensaios. O primeiro é de autoria do próprio Aníbal Bragança, que vai buscar os precursores da tipografia no Brasil, António Isidoro da Fonseca e Frei José Mariano da Conceição Veloso, ainda no século 18, e os motivos pelo qual seu trabalho foi interrompido por um decreto do Rei de Portugal que, por longo tempo, interditou o funcionamento de qualquer tipografia na colônia, até a instalação da Família Real aqui em 1808 e a criação da Impressão Régia.
Em seguida, Márcia Abreu trata dos primeiros livros impressos no Brasil, sendo que a estudiosa identifica O diabo coxo: Verdades sonhadas e novelas da outra vida (1707), do escritor francês Alain-René Lesage, como o primeiro deles, traduzido em 1810.
Nos capítulos seguintes, a história do livro brasileiro desdobra-se nos ensaios de um grupo selecionadíssimo de pesquisadores acadêmicos. Eliana de Freitas Dutra aborda a Editora Garnier, Alessandra El Far comenta a moda das edições baratas do fim do século 19, Marcia de Paula Gregorio Razzini insere na história as publicações didáticas que caracterizaram o início da indústria livreira paulista.
O ensaio mais empolgante do volume é o de Cilza Bignotto, "Monteiro Lobato: Editor revolucionário?", que conta como esse conhecido intelectual das letras montou a primeira rede distribuidora de livros no país.
Outra personalidade importante da nossa indústria livreira tratada neste trabalho é Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, cuja característica revolucionária, ao contrário de Lobato, não é questionada pelos ensaístas Guilherme Cunha Lima e Ana Sofia Mariz.
Já o ensaio de Gabriella Pellegrino Soares é inteiramente dedicado aos irmãos Weiszflog, fundadores da Editora Melhoramentos. Editoras que também mereceram atenção em ensaios específicos foram Companhia Editora Nacional (por Maria Rita de Almeida Toledo), Editora Abril (por Mateus Henrique de Faria Pereira) e Companhia das Letras (por Teodoro Koracakis). Outras tantas foram abordadas de forma mais genérica, em ensaios dedicados às editoras pequenas e médias (por Marília de Araújo Barcellos), editoras universitárias (por José Castilho Marques Neto e Flávia Garcia Rosa) e editoras regionais em Pernambuco (Denis Antônio de Mendonça Bernardes), Paraíba (Socorro de Fátima Pacífico Barbosa), Bahia (Luis Guilherme Pontes Tavares e Flávia Garcia Rosa) e Rio Grande do Sul (Elisabeth W. Rochadel Torresini).
Há ainda ensaios sobre a visualidade e tipologia dos livros nos séculos 19 e 20 (Isabel Cristina Alvez da Silva Frade), sobre a censura aos livros durante a ditadura militar (Sandra Reimão) e sobre a evolução do mercado editorial entre 1995 e 2006 (Fábio Sá Earp e George Kornis).
Dois ensaios destacam-se fechando esta primeira parte, por abordarem assuntos um tanto mais coloridos: Antonio Hohlfeldt trata das publicações dedicadas às crianças, citando O Tico-Tico, Sesinho, Suplemento Juvenil e Edição Maravilhosa, além de autores como Lobato, Viriato Corrêa, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Ziraldo e Maurício de Sousa, entre outros. O ensaio de Silvia H. S. Borelli é especialmente dedicado a analisar o fenômeno Harry Potter, série de livros infanto-juvenis de autoria da escritora britânica J. K. Rowling, a partir do seu desempenho no mercado europeu, com amplo espaço argumentativo conduzido por Humberto Eco, ferrenho defensor da série.
A segunda parte, intitulada "Cultura letrada no Brasil: autores, leitores e leituras" faz um levantamento histórico e geográfico das bibliotecas, salas de leitura, comunidades de leitores, organizações de autores, e trata também da obra de alguns deles.
Minas Gerais recebe a atenção nos ensaios de Luiz Carlos Villalta e Christianni Cardoso Morais, sobre as bibliotecas privadas, e de Francisca Izabel de Oliveira Galvão sobre as histórias de Lili. Marisa Midori Deaecto faz um levantamento das instituições de leitura em São Paulo, Sandra Jatahy Pesavento investiga a vida literária em Porto Alegre, enquanto Felipe Matos faz o mesmo em Florianópolis, e Maria Luiza Ugarte Pinheiro, em Manaus. A Coleção Eurico Facó recebe a atenção de Giselle Martins Venancio, e Marcello Moreira estuda a nacionalização das letras da América portuguesa.
Os trechos mais emocionantes, contudo, estão nos ensaios de Lúcia Maria Bastos P. Neves e Tania Maria Bessone da Cruz Ferreira, sobre o direito autoral no Brasil do século 19, que é muito revelador sobre a tradição nacional de não respeitar esse princípio jurídico.
João Paulo Coelho de Souza Rodrigues recupera a história da Academia Brasileira de Letras, e Ana Maria de Oliveira Galvão trata do sempre bem vindo tema da literatura de cordel.
Fecham o volume os ensaios de Maria Tereza Santos Cunha, sobre a literatura erótica de Corin Tellado e Carlos Zéfiro, enquanto Richard Romancini avalia a obra de Paulo Coelho e seus predecessores.
Ficou faltando, entretanto, um capítulo que avaliasse o impacto das novíssimas tecnologias, especialmente as publicações virtuais, na arte literária, na indústria editorial e no hábito da leitura, visto que esta é certamente a mais significativa revolução editorial no país desde a instalação da Impressão Régia em 1808.
Mesmo sendo um estudo robusto e minucioso, Impresso no Brasil: Dois Séculos de Livros Brasileiros é uma leitura agradável e surpreendentemente leve, com temas variados que atraem a atenção de uma vasta gama de leitores, não apenas acadêmicos, mas de todos aqueles que trabalham com os livros, seja em bibliotecas, livrarias, editoras, comunidades de leitura e até mesmo do público leigo apaixonado pelos livros e por sua história. Provavelmente porque os próprios autores também sejam apaixonados por esses objetos prosaicos considerados por muitos como tecnologicamente ultrapassados, mas que, um por um, compõe uma Babel nacional que nem mesmo uma fabulação de Borges ou de Oliveira poderia retratar completamente.
Em 1944, o escritor argentino Jorge Luiz Borges publicou na antologia Ficções o conto "A biblioteca de Babel". Nessa fantástica biblioteca imaginária, os pesquisadores encontram, perfeitamente alinhados em estantes idênticas e intermináveis, um exemplar de cada livro possível de ser escrito com as combinações dos dígitos dos quais dispomos para registrar nossas ideias. Ou seja, entre muitas obras ilegíveis também estariam ali todos os livros do mundo, de todos os tempos e culturas. Entre muitas leituras possíveis, Borges sublimou ali um intenso maravilhamento frente ao mercado livreiro e à imponderabilidade de suas gigantescas tiragens e variedade.
No romance Poeira: Demônios e maldições, de Nelson de Oliveira, publicado em 2010 pela editora Língua Geral e vencedor do prêmio Casa de Las Americas, um bibliotecário surta quando livros começam a brotar por todos os lados, numa volúpia que inviabiliza a sua devida classificação.
Ambas são ficções recheadas de espanto perante a importância do livro para a civilização. O fabuloso é a argamassa da ficção fantástica, está sempre lá. Por isso, quando se quer ser surpreendido, nada melhor que abrir um livro de ficção.
Mas isso também pode acontecer com um texto de não-ficção acadêmico?
Pode. Um exemplo disso é a antologia de ensaios Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros, organizada por Aníbal Bragança e Márcia Abreu, publicada em 2010 pela Editora UNESP e Fundação Biblioteca Nacional, comemorando os 200 anos da instalação da Impressão Régia no Brasil. Em 2011, este trabalho editorial foi agraciado pela Câmara Brasileira do Livro com o Prêmio Jabuti, na categoria Comunicação.
Geralmente, as publicações acadêmicas têm um viés tão específico e rigorosamente formatado aos padrões escolásticos que pouco ou nenhum prazer dão ao leitor leigo. São compêndios de conceitos científicos, com uma linguagem difícil e jargões impenetráveis. Contudo, enquanto conta a história da indústria editorial brasileira, a leitura desta antologia revela, como em Borges e Oliveira, um ambiente deliciosamente espetacular, nas franjas do fantástico e do mitológico.
Os organizadores têm ampla autoridade do assunto. Aníbal Bragança é português, mas tem toda a sua atividade acadêmica no Brasil. É Doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo, docente da Universidade Federal Fluminense, Coordenador-Geral de Pesquisa e Editoração da Fundação Biblioteca Nacional. É autor de Livraria ideal: Do cordel à bibliofilia (Com-Arte/Edusp, 2009), entre outros livros.
Márcia Abreu é professora do Departamento de Teoria Literária do IEL–UNICAMP, com doutorado em Teoria e História Literária na mesma Universidade, e pós-doutorado em História Cultural na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É autora dos livros Histórias de cordéis e folhetos (Mercado de Letras/ALB, 1999), Os caminhos dos livros (Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2003) e Cultura letrada: Literatura e leitura (UNESP, 2006), entre outros.
Impresso no Brasil tem a introdução do imortal da Academia Brasileira de Letras, José Mindlin (1914-2010), e em suas 664 páginas reúne 35 ensaios de autores diferentes, divididos em duas partes. A primeira, chamada "Uma nova história editorial brasileira: editores, tipógrafos e livreiros" trata da história das editoras no país. É a parte mais volumosa do livro, composta por 22 ensaios. O primeiro é de autoria do próprio Aníbal Bragança, que vai buscar os precursores da tipografia no Brasil, António Isidoro da Fonseca e Frei José Mariano da Conceição Veloso, ainda no século 18, e os motivos pelo qual seu trabalho foi interrompido por um decreto do Rei de Portugal que, por longo tempo, interditou o funcionamento de qualquer tipografia na colônia, até a instalação da Família Real aqui em 1808 e a criação da Impressão Régia.
Em seguida, Márcia Abreu trata dos primeiros livros impressos no Brasil, sendo que a estudiosa identifica O diabo coxo: Verdades sonhadas e novelas da outra vida (1707), do escritor francês Alain-René Lesage, como o primeiro deles, traduzido em 1810.
Nos capítulos seguintes, a história do livro brasileiro desdobra-se nos ensaios de um grupo selecionadíssimo de pesquisadores acadêmicos. Eliana de Freitas Dutra aborda a Editora Garnier, Alessandra El Far comenta a moda das edições baratas do fim do século 19, Marcia de Paula Gregorio Razzini insere na história as publicações didáticas que caracterizaram o início da indústria livreira paulista.
O ensaio mais empolgante do volume é o de Cilza Bignotto, "Monteiro Lobato: Editor revolucionário?", que conta como esse conhecido intelectual das letras montou a primeira rede distribuidora de livros no país.
Outra personalidade importante da nossa indústria livreira tratada neste trabalho é Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, cuja característica revolucionária, ao contrário de Lobato, não é questionada pelos ensaístas Guilherme Cunha Lima e Ana Sofia Mariz.
Já o ensaio de Gabriella Pellegrino Soares é inteiramente dedicado aos irmãos Weiszflog, fundadores da Editora Melhoramentos. Editoras que também mereceram atenção em ensaios específicos foram Companhia Editora Nacional (por Maria Rita de Almeida Toledo), Editora Abril (por Mateus Henrique de Faria Pereira) e Companhia das Letras (por Teodoro Koracakis). Outras tantas foram abordadas de forma mais genérica, em ensaios dedicados às editoras pequenas e médias (por Marília de Araújo Barcellos), editoras universitárias (por José Castilho Marques Neto e Flávia Garcia Rosa) e editoras regionais em Pernambuco (Denis Antônio de Mendonça Bernardes), Paraíba (Socorro de Fátima Pacífico Barbosa), Bahia (Luis Guilherme Pontes Tavares e Flávia Garcia Rosa) e Rio Grande do Sul (Elisabeth W. Rochadel Torresini).
Há ainda ensaios sobre a visualidade e tipologia dos livros nos séculos 19 e 20 (Isabel Cristina Alvez da Silva Frade), sobre a censura aos livros durante a ditadura militar (Sandra Reimão) e sobre a evolução do mercado editorial entre 1995 e 2006 (Fábio Sá Earp e George Kornis).
Dois ensaios destacam-se fechando esta primeira parte, por abordarem assuntos um tanto mais coloridos: Antonio Hohlfeldt trata das publicações dedicadas às crianças, citando O Tico-Tico, Sesinho, Suplemento Juvenil e Edição Maravilhosa, além de autores como Lobato, Viriato Corrêa, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Ziraldo e Maurício de Sousa, entre outros. O ensaio de Silvia H. S. Borelli é especialmente dedicado a analisar o fenômeno Harry Potter, série de livros infanto-juvenis de autoria da escritora britânica J. K. Rowling, a partir do seu desempenho no mercado europeu, com amplo espaço argumentativo conduzido por Humberto Eco, ferrenho defensor da série.
A segunda parte, intitulada "Cultura letrada no Brasil: autores, leitores e leituras" faz um levantamento histórico e geográfico das bibliotecas, salas de leitura, comunidades de leitores, organizações de autores, e trata também da obra de alguns deles.
Minas Gerais recebe a atenção nos ensaios de Luiz Carlos Villalta e Christianni Cardoso Morais, sobre as bibliotecas privadas, e de Francisca Izabel de Oliveira Galvão sobre as histórias de Lili. Marisa Midori Deaecto faz um levantamento das instituições de leitura em São Paulo, Sandra Jatahy Pesavento investiga a vida literária em Porto Alegre, enquanto Felipe Matos faz o mesmo em Florianópolis, e Maria Luiza Ugarte Pinheiro, em Manaus. A Coleção Eurico Facó recebe a atenção de Giselle Martins Venancio, e Marcello Moreira estuda a nacionalização das letras da América portuguesa.
Os trechos mais emocionantes, contudo, estão nos ensaios de Lúcia Maria Bastos P. Neves e Tania Maria Bessone da Cruz Ferreira, sobre o direito autoral no Brasil do século 19, que é muito revelador sobre a tradição nacional de não respeitar esse princípio jurídico.
João Paulo Coelho de Souza Rodrigues recupera a história da Academia Brasileira de Letras, e Ana Maria de Oliveira Galvão trata do sempre bem vindo tema da literatura de cordel.
Fecham o volume os ensaios de Maria Tereza Santos Cunha, sobre a literatura erótica de Corin Tellado e Carlos Zéfiro, enquanto Richard Romancini avalia a obra de Paulo Coelho e seus predecessores.
Ficou faltando, entretanto, um capítulo que avaliasse o impacto das novíssimas tecnologias, especialmente as publicações virtuais, na arte literária, na indústria editorial e no hábito da leitura, visto que esta é certamente a mais significativa revolução editorial no país desde a instalação da Impressão Régia em 1808.
Mesmo sendo um estudo robusto e minucioso, Impresso no Brasil: Dois Séculos de Livros Brasileiros é uma leitura agradável e surpreendentemente leve, com temas variados que atraem a atenção de uma vasta gama de leitores, não apenas acadêmicos, mas de todos aqueles que trabalham com os livros, seja em bibliotecas, livrarias, editoras, comunidades de leitura e até mesmo do público leigo apaixonado pelos livros e por sua história. Provavelmente porque os próprios autores também sejam apaixonados por esses objetos prosaicos considerados por muitos como tecnologicamente ultrapassados, mas que, um por um, compõe uma Babel nacional que nem mesmo uma fabulação de Borges ou de Oliveira poderia retratar completamente.
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Velta só para maiores
Emir Ribeiro saca rápido e lança Velta 2019 logo na primeira quinzena do ano. Trata-se de uma edição muito importante na mitologia da conhecida super heroína dos quadrinhos nacionais alternativos, pois dá conclusão a um longo arco de histórias iniciado ainda nos anos 1980.
A edição tem 36 páginas e publica a hq "Objetivo atingido". Diz a sinopse: "No planeta gelado, está terminando a estadia de Velta, Doroti, Denise e a Kátia de outro universo; enquanto na Terra, a robótica Nova descobre um meio de se tornar mais humana mas não menos forte".
A história traz uma Velta extremamente tórrida, tanto que é desaconselhada para menores de idade. Mesmo os fãs históricos da personagem, já acostumados às ousadias do autor, vão se surpreender com a volúpia da edição.
Velta 2019 é uma publicação da Atomic Quadrinhos e pode ser encomendada aqui.
A edição tem 36 páginas e publica a hq "Objetivo atingido". Diz a sinopse: "No planeta gelado, está terminando a estadia de Velta, Doroti, Denise e a Kátia de outro universo; enquanto na Terra, a robótica Nova descobre um meio de se tornar mais humana mas não menos forte".
A história traz uma Velta extremamente tórrida, tanto que é desaconselhada para menores de idade. Mesmo os fãs históricos da personagem, já acostumados às ousadias do autor, vão se surpreender com a volúpia da edição.
Velta 2019 é uma publicação da Atomic Quadrinhos e pode ser encomendada aqui.
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quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
Fractais tropicais
Lançada ainda em 2018, mais exatamente no dia 19 de dezembro, pela editora SESI-SP, a antologia Fractais tropicais propõe ser um panorama representativo da aventura de produzir literatura de ficção científica no Brasil a partir do elencamento de seus principais textos na opinião do organizador, o também escritor Nelson de Oliveira. Conhecido como importante antologista das recentes gerações de escritores no Brasil nos livros Geração 90 e Geração Zero Zero, assim como por seus próprios trabalhos, como os premiados O filho do crucificado e Poeira: Demônios e maldições, entre outros, Oliveira também se tornou ele mesmo um autor de ficção científica, gênero que observa ser a alternativa mais favorável à crise de criatividade da literatura brasileira.
Do alto de suas 496 páginas, Fractais tropicais posta-se como pedra fundamental para um cânone da fc nacional, pois faz um levantamentos técnico, estilístico e histórico do gênero a partir das "Ondas" de autores vinculados ao movimento dos fãs (fandom), conceito consagrado entre os estudiosos do gênero. Dessa forma, o volume se divide em três partes correspondendo a cada uma das ondas, apresentadas em ordem cronológica inversa, ou seja, iniciando pela terceira e voltando no tempo, como numa viagem ao passado, o que faz todo o sentido num livro de fc.
Dessa forma, o volume se inicia com a "Terceira Onda", formada pelos autores que exercitam o gênero a partir do estabelecimento das redes sociais da internet na virada para o século 21, com textos de Cristina Lasaitis, Ana Cristina Rodrigues, Lady Sybilla, Cirilo Lemos, Alliah; Santiago Santos, Márcia Olivieri, Andréa del Fuego, Luiz Brás (heterônimo do próprio organizador), Ademir Assunção, Tibor Moricz e Ronaldo Bressane.
Na "Segunda Onda", também chamada de Geração dos Fanzines, aparecem os autores que produziram seus trabalhos ao longo dos anos 1980 e 2000 nas páginas das publicações independentes – período em que o gênero não tinha nenhum espaço no mercado formal –, dentre os quais Oliveira selecionou textos de Braulio Tavares, Ivanir Calado, Carlos Orsi, Lucio Manfredi, Fabio Fernandes, Ataíde Tartari, Finísia Fideli, Gerson Lodi-Ribeiro, Jorge Luiz Calife, Roberto de Sousa Causo, Ivan Carlos Regina, Octávio Aragão e Fausto Fawcett.
Finalmente, a "Primeira Onda", com uma seleta de autores clássicos publicados nos anos 1960 e 1970: André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Jeronimo Monteiro e Rubens Teixeira Scavone. Poderia continuar ainda mais ao passado, recuando à era pré-fandom que tem exemplos importantes desde o século 19, mas isso por certo enfraqueceria os objetivos mais imediatos do volume.
Percebe-se que, ainda que o organizador tenha se empenhado em dar alguma representatividade aos gêneros, sempre, e ainda hoje, predomina a presença masculina entre os autores. Embora nos demais gêneros da literatura fantástica, como a fantasia e o terror, haja uma presença feminina mais expressiva, e a Terceira Onda realmente mostre um aumento na variedade autoral, a fc continua sendo o Clube do Bolinha da literatura, fantástica, e esse será um panorama difícil de mudar, pois os protocolos do gênero, estabelecidos nos anos 1940 e 1950 nas revistas pulp americanas, privilegiavam o público adolescente masculino.
Outras análises podem ser obtidas, mas é conveniente deixá-las para outra oportunidade. O importante agora é destacar que, com Fractais tropicais, a ficção científica dá um passo importante em direção ao estabelecimento de um campo respeitável na literatura nacional.
Do alto de suas 496 páginas, Fractais tropicais posta-se como pedra fundamental para um cânone da fc nacional, pois faz um levantamentos técnico, estilístico e histórico do gênero a partir das "Ondas" de autores vinculados ao movimento dos fãs (fandom), conceito consagrado entre os estudiosos do gênero. Dessa forma, o volume se divide em três partes correspondendo a cada uma das ondas, apresentadas em ordem cronológica inversa, ou seja, iniciando pela terceira e voltando no tempo, como numa viagem ao passado, o que faz todo o sentido num livro de fc.
Dessa forma, o volume se inicia com a "Terceira Onda", formada pelos autores que exercitam o gênero a partir do estabelecimento das redes sociais da internet na virada para o século 21, com textos de Cristina Lasaitis, Ana Cristina Rodrigues, Lady Sybilla, Cirilo Lemos, Alliah; Santiago Santos, Márcia Olivieri, Andréa del Fuego, Luiz Brás (heterônimo do próprio organizador), Ademir Assunção, Tibor Moricz e Ronaldo Bressane.
Na "Segunda Onda", também chamada de Geração dos Fanzines, aparecem os autores que produziram seus trabalhos ao longo dos anos 1980 e 2000 nas páginas das publicações independentes – período em que o gênero não tinha nenhum espaço no mercado formal –, dentre os quais Oliveira selecionou textos de Braulio Tavares, Ivanir Calado, Carlos Orsi, Lucio Manfredi, Fabio Fernandes, Ataíde Tartari, Finísia Fideli, Gerson Lodi-Ribeiro, Jorge Luiz Calife, Roberto de Sousa Causo, Ivan Carlos Regina, Octávio Aragão e Fausto Fawcett.
Finalmente, a "Primeira Onda", com uma seleta de autores clássicos publicados nos anos 1960 e 1970: André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Jeronimo Monteiro e Rubens Teixeira Scavone. Poderia continuar ainda mais ao passado, recuando à era pré-fandom que tem exemplos importantes desde o século 19, mas isso por certo enfraqueceria os objetivos mais imediatos do volume.
Percebe-se que, ainda que o organizador tenha se empenhado em dar alguma representatividade aos gêneros, sempre, e ainda hoje, predomina a presença masculina entre os autores. Embora nos demais gêneros da literatura fantástica, como a fantasia e o terror, haja uma presença feminina mais expressiva, e a Terceira Onda realmente mostre um aumento na variedade autoral, a fc continua sendo o Clube do Bolinha da literatura, fantástica, e esse será um panorama difícil de mudar, pois os protocolos do gênero, estabelecidos nos anos 1940 e 1950 nas revistas pulp americanas, privilegiavam o público adolescente masculino.
Outras análises podem ser obtidas, mas é conveniente deixá-las para outra oportunidade. O importante agora é destacar que, com Fractais tropicais, a ficção científica dá um passo importante em direção ao estabelecimento de um campo respeitável na literatura nacional.
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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019
O corvo e suas traduções
O corvo e suas traduções, Ivo Barroso, org. 153 páginas. São Paulo: Editora Leya, 2012.
A poesia é um grande mistério e, a princípio, parece fácil versejar. Afinal, os poetas o fazem com tanta naturalidade que parece ser um dom genético ou uma inspiração vinda diretamente dos deuses. As vezes, essa inspiração realmente emerge de um estado de consciência alterada por alguma patologia psicológica, pelo uso de drogas ou por um delírio criativo que nem o próprio autor sabe explicar. Contudo, também pode ser fruto de planejamento, apoiado em uma exaustiva atividade intelectual.
A crítica tende a desvalorizar o trabalho artístico obtido a partir de métodos científicos, por isso muita gente não gostou quando um dos mais importantes escritores da língua inglesa, o poeta "louco" Edgar Allan Poe (1809-1849) explicou, no ensaio "A filosofia da composição" (1846), o passo a passo que cumpriu para chegar ao resultado absolutamente incomparável de seu poema mais ilustre, "O corvo" ("The raven"), escrito em 1845.
Parece mesmo um tanto anticlimático olhar o poema a partir de seus bastidores, uma vez que o efeito, quando visto sob os holofotes da ribalta, se apresenta como fruto de um espírito enlouquecido. O clima tenebroso, reforçado por rimas guturais e aliterações angustiantes não parece ser resultado de um cálculo matemático. Ou não deveria ser, para o bem de todas as nossas certezas.
São essas algumas das preocupações que o poeta e tradutor mineiro Ivo Barroso explora como organizador da antologia O corvo e suas traduções. Originalmente publicado em 1998, pela Editora Lacerda, o volume retornou em 2012 pela Editora Leya já em sua terceira edição.
Além do poema original em inglês, o livro reúne nada menos que 11 traduções, três para o francês, de Charles Baudelaire (1853), Stéphane Mallarmé (1888) e Didier Lamaison (1998), seguidas das mais importantes versões para a língua portuguesa: Machado de Assis (1883), Emílio de Menezes (1917), Fernando Pessoa (1924), Gondin da Fonseca (1928), Milton Amado (1943), Benedicto Lopes (1956), Alexei Bueno (1980) e Jorge Wanderley (1997). É curioso notar como um mesmo texto original pode ter traduções tão diferentes entre si. Inclui ainda um artigo biográfico sobre Poe e o já citado ensaio, uma aula de criação literária, mas que deixa as questões técnicas da poesia ao gosto do leitor. Barroso detalha algumas delas, bem como as diversas tentativas de seus tradutores em transpor para o português todas as filigranas da versão original. Alguns tiveram mais sucesso que outros, mas todas as traduções têm seu valor como verdadeiros documentos de sua época. E, a cereja no bolo, uma apresentação assinada por Carlos Heitor Cony, de todo simpática a obra do autor americano.
O volume tem 153 páginas e ótima legibilidade, com diagramação perfeita em fonte Berkeley impressa em papel pólen de aspecto muito confortável, de tal forma que as explicações de Poe sobre a construção "matemática" do poema parecem fazer todo o sentido, mesmo que sua vida conturbada reforce a ideia de um talento alienado e irracional.
Tido como ébrio de alma torturada que morreu na indigência, parece lícito vê-lo como um louco em contínuo estado de desespero. Sua ficção perturbadora supõe confirmar os aspectos sombrios de sua vida, mas visto na perspectiva facilitada pela leitura de O corvo e suas traduções, revela uma inteligência sagaz, racional e criativa.
A poesia é um grande mistério e, a princípio, parece fácil versejar. Afinal, os poetas o fazem com tanta naturalidade que parece ser um dom genético ou uma inspiração vinda diretamente dos deuses. As vezes, essa inspiração realmente emerge de um estado de consciência alterada por alguma patologia psicológica, pelo uso de drogas ou por um delírio criativo que nem o próprio autor sabe explicar. Contudo, também pode ser fruto de planejamento, apoiado em uma exaustiva atividade intelectual.
A crítica tende a desvalorizar o trabalho artístico obtido a partir de métodos científicos, por isso muita gente não gostou quando um dos mais importantes escritores da língua inglesa, o poeta "louco" Edgar Allan Poe (1809-1849) explicou, no ensaio "A filosofia da composição" (1846), o passo a passo que cumpriu para chegar ao resultado absolutamente incomparável de seu poema mais ilustre, "O corvo" ("The raven"), escrito em 1845.
Parece mesmo um tanto anticlimático olhar o poema a partir de seus bastidores, uma vez que o efeito, quando visto sob os holofotes da ribalta, se apresenta como fruto de um espírito enlouquecido. O clima tenebroso, reforçado por rimas guturais e aliterações angustiantes não parece ser resultado de um cálculo matemático. Ou não deveria ser, para o bem de todas as nossas certezas.
São essas algumas das preocupações que o poeta e tradutor mineiro Ivo Barroso explora como organizador da antologia O corvo e suas traduções. Originalmente publicado em 1998, pela Editora Lacerda, o volume retornou em 2012 pela Editora Leya já em sua terceira edição.
Além do poema original em inglês, o livro reúne nada menos que 11 traduções, três para o francês, de Charles Baudelaire (1853), Stéphane Mallarmé (1888) e Didier Lamaison (1998), seguidas das mais importantes versões para a língua portuguesa: Machado de Assis (1883), Emílio de Menezes (1917), Fernando Pessoa (1924), Gondin da Fonseca (1928), Milton Amado (1943), Benedicto Lopes (1956), Alexei Bueno (1980) e Jorge Wanderley (1997). É curioso notar como um mesmo texto original pode ter traduções tão diferentes entre si. Inclui ainda um artigo biográfico sobre Poe e o já citado ensaio, uma aula de criação literária, mas que deixa as questões técnicas da poesia ao gosto do leitor. Barroso detalha algumas delas, bem como as diversas tentativas de seus tradutores em transpor para o português todas as filigranas da versão original. Alguns tiveram mais sucesso que outros, mas todas as traduções têm seu valor como verdadeiros documentos de sua época. E, a cereja no bolo, uma apresentação assinada por Carlos Heitor Cony, de todo simpática a obra do autor americano.
O volume tem 153 páginas e ótima legibilidade, com diagramação perfeita em fonte Berkeley impressa em papel pólen de aspecto muito confortável, de tal forma que as explicações de Poe sobre a construção "matemática" do poema parecem fazer todo o sentido, mesmo que sua vida conturbada reforce a ideia de um talento alienado e irracional.
Tido como ébrio de alma torturada que morreu na indigência, parece lícito vê-lo como um louco em contínuo estado de desespero. Sua ficção perturbadora supõe confirmar os aspectos sombrios de sua vida, mas visto na perspectiva facilitada pela leitura de O corvo e suas traduções, revela uma inteligência sagaz, racional e criativa.
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sábado, 5 de janeiro de 2019
Animal'z, Enki Bilal
Animal'z, Enki Bilal. Tradução de Fernando Scheibe. São Paulo: Nemo, 2012.
A ideia do fim do mundo exerce um fascínio irresistível em todos nós. Muito já foi escrito sobre isso, mas o assunto não se esgota: o tema transformou-se num dos mais rentáveis filões da ficção científica, mas a linha que separa a especulação válida da completa tolice é determinada pela preocupação do texto em antecipar as consequências das atitudes que estão sendo tomadas hoje. Nesse aspecto, Animal'z está entre as melhores peças do gênero.
Trata-se de uma sofisticada novela gráfica do quadrinhista sérvio Enki Bilal, publicada originalmente em 2009 pela editora belga Casterman e lançada em 2012 no Brasil pela Nemo, um selo da Editora Autêntica.
A leviana interferência humana sobre a natureza causou um severo desequilíbrio ambiental que ficou conhecido como Golpe de Sangue, e lançou o planeta numa nova era glacial, aniquilando a civilização. Os poucos sobreviventes tentam atingir os Eldorados, regiões quase míticas nas quais se acredita ainda ser possível a vida, mas o caminho para lá é difícil e perigoso. A água potável é rara, os meios de comunicação caíram e não há transporte aéreo e terrestre; as únicas formas de viajar são a pé, no lombo de um animal ou, para os mais afortunados, nos barcos.
Campos minados e radioatividade são perigos remanescentes dos tempos antigos, e as ruínas das cidades escondem canibais famintos a caça de carne fresca. Apesar das duras provas que a natureza impõe aos peregrinos, o verdadeiro perigo para o homem é mesmo o outro: encontros entre sobreviventes invariavelmente resultam em alguma morte, seja por acidente, por intolerância, ou mesmo por instinto de autopreservação.
A história começa a bordo de um luxuoso iate que navega em direção ao Estreito 17, um dos poucos acessos seguros a uma rota que se acredita levar até um dos Eldorados. A bordo, uma jovem sem muita perspectiva de chegar a qualquer lugar que seja: seu marido morreu num acidente improvável, empalado por um filhote de marlim arremessado por uma tempestade, e a moça agora viaja sob os cuidados de um servo eletrônico, um tipo de lagosta robótica, mistura de capitão e mordomo.
Quando um golfinho sobe a bordo e de suas entranhas emerge um homem desconhecido, é que realmente começa o pesadelo. Vamos descobrir que o Golpe de Sangue vai muito além de uma "simples" era do gelo. Os homens desse tempo não são mais como nós. Através de um milagre da tecnologia, eles podem alternar suas forma e natureza entre humano e animal.
Em outro ponto do oceano, um segundo iate também segue em direção ao Estreito 17, levando a bordo ninguém menos que o próprio inventor da tecnologia de hibridização, ele mesmo um híbrido que, assim como o inescrupuloso Doutor Morreau de H. G. Wells, ousou invadir o terreno do sagrado e, com isso, só colaborou para que as coisas ficassem ainda piores.
E, numa terceira linha narrativa, dois cavaleiros quase idênticos, separados entre si por exatos três quilômetros, caminham pela vastidão gelada em busca do local místico em que realizarão seu quarto e talvez definitivo duelo de morte. As narrativas vão se cruzar e determinar o futuro de cada um destes infelizes desesperados do fim do mundo.
A história tem o estilo descosturado que caracteriza as obras de Bilal, com personagens enigmáticos e atormentados que se debatem por algo que sequer sabem ser real. Isso, somado a ausência de uma contextualização sólida, dá a história tons claustrofóbicos estranhamente reforçados pela vastidão gelada do cenário, num diálogo muito próximo ao longa-metragem Quinteto (Quintet), ficção científica dirigida por Robert Altman em 1979.
Os desenhos são um espetáculo à parte, executados com habilidade de um mestre da anatomia, usando apenas lápis pastel sobre papel tonalizado, em cores frias que não variam muito além do cinza azulado, o preto e o branco. A arte é valorizada pelo acabamento gráfico da edição brasileira, que tem 104 páginas em papel cuchê fosco de boa gramatura e encadernação costurada em capa dura.
A Nemo investiu na publicação da obra de Bilal, um dos mais importantes ilustradores surgidos nos anos 1970 nas páginas da revista Metal Hurlant. Em 2012, a editora também trouxe aos leitores brasileiros a festejada Trilogia Nikopol, obra-prima que já tem inclusive uma adaptação para o cinema, Immortel (ad vitam), dirigida em 2004 pelo próprio Bilal.
Apesar das qualidades inegáveis, Animal'z não é uma história em quadrinhos fácil. A narrativa barroca e incômoda, ideias em estado bruto, texto fragmentado e a violência fria, quase gratuita, pode chocar os leitores que não estão acostumados ao estilo do autor, às especulações da ficção científica moderna ou aos modelos pós-modernos da narrativa literária. Ainda assim, é uma experiência muito recomendável.
A ideia do fim do mundo exerce um fascínio irresistível em todos nós. Muito já foi escrito sobre isso, mas o assunto não se esgota: o tema transformou-se num dos mais rentáveis filões da ficção científica, mas a linha que separa a especulação válida da completa tolice é determinada pela preocupação do texto em antecipar as consequências das atitudes que estão sendo tomadas hoje. Nesse aspecto, Animal'z está entre as melhores peças do gênero.
Trata-se de uma sofisticada novela gráfica do quadrinhista sérvio Enki Bilal, publicada originalmente em 2009 pela editora belga Casterman e lançada em 2012 no Brasil pela Nemo, um selo da Editora Autêntica.
A leviana interferência humana sobre a natureza causou um severo desequilíbrio ambiental que ficou conhecido como Golpe de Sangue, e lançou o planeta numa nova era glacial, aniquilando a civilização. Os poucos sobreviventes tentam atingir os Eldorados, regiões quase míticas nas quais se acredita ainda ser possível a vida, mas o caminho para lá é difícil e perigoso. A água potável é rara, os meios de comunicação caíram e não há transporte aéreo e terrestre; as únicas formas de viajar são a pé, no lombo de um animal ou, para os mais afortunados, nos barcos.
Campos minados e radioatividade são perigos remanescentes dos tempos antigos, e as ruínas das cidades escondem canibais famintos a caça de carne fresca. Apesar das duras provas que a natureza impõe aos peregrinos, o verdadeiro perigo para o homem é mesmo o outro: encontros entre sobreviventes invariavelmente resultam em alguma morte, seja por acidente, por intolerância, ou mesmo por instinto de autopreservação.
A história começa a bordo de um luxuoso iate que navega em direção ao Estreito 17, um dos poucos acessos seguros a uma rota que se acredita levar até um dos Eldorados. A bordo, uma jovem sem muita perspectiva de chegar a qualquer lugar que seja: seu marido morreu num acidente improvável, empalado por um filhote de marlim arremessado por uma tempestade, e a moça agora viaja sob os cuidados de um servo eletrônico, um tipo de lagosta robótica, mistura de capitão e mordomo.
Quando um golfinho sobe a bordo e de suas entranhas emerge um homem desconhecido, é que realmente começa o pesadelo. Vamos descobrir que o Golpe de Sangue vai muito além de uma "simples" era do gelo. Os homens desse tempo não são mais como nós. Através de um milagre da tecnologia, eles podem alternar suas forma e natureza entre humano e animal.
Em outro ponto do oceano, um segundo iate também segue em direção ao Estreito 17, levando a bordo ninguém menos que o próprio inventor da tecnologia de hibridização, ele mesmo um híbrido que, assim como o inescrupuloso Doutor Morreau de H. G. Wells, ousou invadir o terreno do sagrado e, com isso, só colaborou para que as coisas ficassem ainda piores.
E, numa terceira linha narrativa, dois cavaleiros quase idênticos, separados entre si por exatos três quilômetros, caminham pela vastidão gelada em busca do local místico em que realizarão seu quarto e talvez definitivo duelo de morte. As narrativas vão se cruzar e determinar o futuro de cada um destes infelizes desesperados do fim do mundo.
A história tem o estilo descosturado que caracteriza as obras de Bilal, com personagens enigmáticos e atormentados que se debatem por algo que sequer sabem ser real. Isso, somado a ausência de uma contextualização sólida, dá a história tons claustrofóbicos estranhamente reforçados pela vastidão gelada do cenário, num diálogo muito próximo ao longa-metragem Quinteto (Quintet), ficção científica dirigida por Robert Altman em 1979.
Os desenhos são um espetáculo à parte, executados com habilidade de um mestre da anatomia, usando apenas lápis pastel sobre papel tonalizado, em cores frias que não variam muito além do cinza azulado, o preto e o branco. A arte é valorizada pelo acabamento gráfico da edição brasileira, que tem 104 páginas em papel cuchê fosco de boa gramatura e encadernação costurada em capa dura.
A Nemo investiu na publicação da obra de Bilal, um dos mais importantes ilustradores surgidos nos anos 1970 nas páginas da revista Metal Hurlant. Em 2012, a editora também trouxe aos leitores brasileiros a festejada Trilogia Nikopol, obra-prima que já tem inclusive uma adaptação para o cinema, Immortel (ad vitam), dirigida em 2004 pelo próprio Bilal.
Apesar das qualidades inegáveis, Animal'z não é uma história em quadrinhos fácil. A narrativa barroca e incômoda, ideias em estado bruto, texto fragmentado e a violência fria, quase gratuita, pode chocar os leitores que não estão acostumados ao estilo do autor, às especulações da ficção científica moderna ou aos modelos pós-modernos da narrativa literária. Ainda assim, é uma experiência muito recomendável.
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Adorável Noite ao cubo
Depois de um prolongado hiato, estão disponíveis os números 36, 37 e 38 do fanzine de horror Adorável Noite, editado por Adriano Siqueira.
Todas as três edições têm 8 páginas cada e trazem contos curtos e poemas sombrios de diversos autores, incluindo do editor, principalmente sobre vampiros, especialidade da publicação.
Os arquivos estão disponíveis aqui em formato pdf paginados para impressão, mas com alguma ginástica podem também ser lidos online.
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Conexão Literatura 43
Está circulando o número 43 da revista eletrônica Conexão Literatura, editada por Ademir Pascale.
A edição tem 98 páginas e destaca o artigo de Rusty Burke sobre o escritor americano Robert E. Howard, criador de Conan, Red Sonja e outros importantes personagens da fantasia mundial.
São entrevistados os escritores Lara Emanueli Neiva Sousa (Os desafios de amar), F. E. Jacob (Homo tempus) e o próprio editor, que organizou a antologia Possessão alienígena para a Devir Livraria, numa conversa conduzida por Sérgio Simka. Contos de Míriam Santiago e Roberto Schima, resenhas, artigos e divulgações de filmes e livros completam a edição.
Conexão Literatura é gratuita e pode ser baixada aqui. Edições anteriores também estão disponíveis.
A edição tem 98 páginas e destaca o artigo de Rusty Burke sobre o escritor americano Robert E. Howard, criador de Conan, Red Sonja e outros importantes personagens da fantasia mundial.
São entrevistados os escritores Lara Emanueli Neiva Sousa (Os desafios de amar), F. E. Jacob (Homo tempus) e o próprio editor, que organizou a antologia Possessão alienígena para a Devir Livraria, numa conversa conduzida por Sérgio Simka. Contos de Míriam Santiago e Roberto Schima, resenhas, artigos e divulgações de filmes e livros completam a edição.
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