Filhos de sangue e outras histórias (Bloodchild and other stories), Octavia E. Butler. Tradução de Heci Regina Candiani. 240 páginas. São Paulo: Morro Branco, 2020.
Por muito tempo, os leitores brasileiros de ficção científica se perguntaram por que os livros de Octavia Butler não eram traduzidos no país. Acreditava-se que talvez fosse o fato da escritora não ser conhecida aqui, apesar de ter conquistado uma coleção dos principais prêmios do gênero e ter alguns contos publicados na edição brasileira da revista Isaac Asimov Magazine. Embora a maior parte dos escritores vistos na IAM também sofrerem do mesmo mal, essa nunca pareceu ser uma explicação suficiente, pois alguns tiveram chances, como Kim Stanley Robinson, Connie Willis e George R. R. Martin, por exemplo.
Alguns dos motivos ficaram mais claros quando a editora Morro Branco lançou-se à aventura de publicar no Brasil o melhor da ficção científica e fantasia escrita por mulheres. E, entre todas elas, nenhuma é mais contundente que Octavia Butler, considerada hoje a grande dama da fc mundial. Já no primeiro título de Butler traduzido aqui, Kindred: Laços de sangue (Kindred), o motivo vem a tona de forma clara: a ficção de Butler é muito diferente daquilo que o leitor brasileiro estava acostumado a receber. A começar pelo tema que trabalha questões de preconceito e intolerância com uma crueza dolorosa. Butler não embarca no conceito da golden age de que a ficção científica deve tratar dos problemas com positividade e universalidade, geralmente extrapolados em futuros distantes para não perturbar os homens brancos que formam o grosso do público do gênero não só no Brasil, mas em toda parte. Butler não faz concessões; sua faca está afiada e cutuca bem em cima da ferida ainda aberta.
Desde então, Butler tornou-se a autora de fc mais publicada da Morro Branco e uma das mais traduzidas no Brasil, com oito títulos: Kindred (2017), Despertar (2108), Ritos de passagem (2019), Imago (2021), A parábola do semeador (2018), A parábola dos talentos (2019), Semente originária (2021), Elos da mente (2022), e Filhos de sangue e outras histórias (2020), que é o objeto desta resenha.
Publicada originalmente em 1996, Filhos de sangue e outras histórias é uma coletânea de contos e ensaios que reúne boa parte da produção curta da autora. Sua republicação em 2005, com acréscimos, é a base da tradução brasileira. Portanto, a coletânea reunia, a época, toda a sua produção curta. A outra única coletânea da autora é Unexpected stories, de 2014, ainda inédita aqui. Butler confessa, no breve prefácio, que tem enorme dificuldade em trabalhar com a ficção curta e que se sente muito mais à vontade nos textos longos.
O volume é formado por três divisões principais. A primeira, nomeada "Histórias", apresenta os cinco contos antes publicados, sendo que dois deles foram vistos na já citada versão brasileira da IAM. A segunda parte é "Dois ensaios" e a terceira, "Novas histórias", apresenta dois contos escritos para a segunda edição da coletânea. Todos os textos são complementados por notas da autora que ajudam na contextualização e no entendimento dos problemas ali apresentados, isso quando não complicam ainda mais as coisas.
O conto que abre a primeira seção é "Filhos de sangue", originalmente publicado em 1984, ganhador dos prêmios Hugo e Nebula. É bastante difícil resumir o contexto principal deste conto, certamente um dos mais expressivos momentos da fc em todos os tempos. Conta a história de uma família, mais precisamente de um jovem pertencente a ela, que vive em um planeta em relação de interdependência biológica com os seres dali, uma antiga raça inteligente que estava em franca decadência até que os humanos lá chegaram. Essa relação implica que os homens humanos servem como hospedeiros dos ovos alienígenas, que se desenvolvem em seu interior até eclodirem em larvas famintas. Nesse momento exato é preciso fazer a retirada das larvas, antes que elas devorem o hospedeiro de dentro para fora. Por sua vez, os alienígenas protegem os humanos das dificuldades da sobrevivência naquele ambiente hostil, alimentando-os com um tipo de leite narcótico que secretam. Apesar do horror que parece significar ser hospedeiro dos ovos alienígenas para um garoto prestes a ser incubado, especialmente depois de testemunhar um parto é extremamente sanguinolento, há uma relação de afeto profundo entre o hospedeiro e alienígena, bem como entre as famílias humanas e alienígenas que não pode ser deixada de lado.
À primeira leitura, parece uma metáfora para a escravidão, mas a própria autora diz que não foi essa a ideia. De fato, a discussão está mais vinculada ao dom da maternidade que, neste caso, cabe tanto às mulheres humanas, que geram seus próprios descendentes, quanto aos homens humanos, que incubam as futuras gerações de alienígenas. Ou seja, trata-se mesmo é de uma estranha história de amor.
O segundo conto é "O entardecer, a manhã e a noite", de 1987. Aqui, estamos às voltas com algum tipo de doença genética altamente disseminada na população, que ataca o sistema nervoso e leva as pessoas a se mutilarem até a morte. Acompanhamos a visita de um casal à mãe de um deles, interna de uma clínica que trata de pessoas com a doença. Ambos são filhos de pessoas que tiveram a doença, o que significa que também a têm e terão de enfrentar as consequências em algum momento no futuro. A questão é: seria justo ter filhos eles mesmos nessa circunstância? Há algo de bradburyano nesta história, porém Butler deriva mais para o drama familiar do que para o horror, que geralmente caracterizava o mestre.
O conto seguinte é "Parentes próximos", publicado em 1979. Este não é um conto de fc, mas segue alguns de seus protocolos. Trata-se de um diálogo entre uma mulher jovem e o irmão de sua mãe recentemente falecida, e a conversa vai revelar verdades ocultas que estiveram sempre à vista. Esta história me lembrou muito o conto "Entre irmãos", de José J. Veiga, mais pela situação em si, do que pelo enredo.
"Sons de fala" é o outro texto que já havia sido traduzido na IAM brasileira, também ganhador do Hugo. Trata-se de um conto publicado originalmente em 1983, que relata os fatos dramáticos que uma jovem senhora tem de enfrentar num mundo pós-apocalíptico no qual uma pandemia emudeceu todas as pessoas. Mas não só isso: além de desprovidas de linguagem, as pessoas também perderam a capacidade de entender a escrita, de modo que a comunicação ficou absolutamente comprometida. Forçada a sair da segurança de sua casa, a mulher pega um ônibus mas uma briga acaba fazendo todos desembarcarem num lugar perigoso. Num mundo em que a civilização caiu, uma bela mulher sempre será a vítima perfeita e é assim que a história inicia.
Histórias sobre o fim da civilização por causa de pandemias mundiais são muito comuns na fc. E sempre funcionam, porque é uma premissa muito factível, como todos podemos confirmar. A contribuição de Butler ao subgênero é centralizar a narrativa no problema do esvaziamento das palavras, que nem sempre é discutido e, mesmo quando é, passa em segundo plano, como em 1984, de George Orwell. Um conto filosófico que implica em importantes discussões a respeito do valor das palavras na sociedade.
O conto seguinte é "Atalho", de 1971, certamente um dos primeiros escritos da autora e o mais curto do volume. Também é um texto mainstream, embora pudesse perfeitamente ser ambientado num cenário distópico qualquer. Quem quiser, pode imaginar que a história se passa em algum assentamento decadente em um planetóide qualquer, nos subterrâneos de Marte ou num futuro pós apocalíptico, mas o caso é que as coisas narradas podem muito bem acontecer neste exato momento em algum lugar do mundo, porque as pessoas levam suas desgraças para qualquer parte que forem. Conta a história de uma mulher trabalhadora que tenta sobreviver num ambiente machista e preconceituoso que a vê apenas como um objeto.
A seção de ensaios traz o artigo "Obsessão positiva", de 1989, no qual Butler oferece um relato autobiográfico de sua carreira na escrita, e "Furor scribendi", de 1993, que é uma espécie de manual e escrita, com conselhos valiosos para quem pretende se aventurar no nada maravilhoso mundo da literatura comercial.
A seção final traz os contos "Anistia" e "O livro de Martha", escritos em 2003 para a reedição da coletânea publicada em 2005.
"Anistia" narra uma entrevista de emprego, mas não um emprego qualquer, uma vez que os contratantes são alienígenas que invadiram a Terra há algumas gerações. O planeta está agora definitivamente ocupado por duas raças inteligentes, mas tudo leva a crer que os alienígenas são os atuais donos dele, pois são mais inteligentes, mais poderosos e mais tolerantes. As comunidades humanas são até deixadas razoavelmente em paz a maior parte do tempo, mas os alienígenas precisam dele nós por vários motivos. O principal é que somos uma espécie de droga para eles, que se sentem muito bem depois de manter uma relação psíquica conosco. Para se relacionar com os humanos, os alienígenas - que são formados por comunidades de minúsculos seres sensientes - contratam tradutores, e é um deles o protagonista deste conto, na verdade uma jovem que foi abduzida quando criança e relata sua experiência para os candidatos a contratação. Esta história guarda algumas semelhanças com "Filhos de sangue". Embora o panorama e as premissas sejam bem diversas, também conta uma relação de simbiose entre humanos e alienígenas, na qual os homens tornam a vida dos alienígenas menos difícil enquanto estes impedem que nos exterminemos a nós mesmos, ainda que muitos acreditem que tenhamos esse direito.
"O livro de Martha" é um conto curiosíssimo. Narra a discussão entre uma mulher e Deus, que O acusa de não fazer o melhor pelos homens que criou. Deus argumenta que fez o melhor em todos os aspectos, que se não parece é porque a visão da mulher é limitada. Deus então propõe que ela diga o que Ele deveria fazer para tornar o mundo melhor. Mas somente uma coisa, pois o excesso de alterações levaria a humanidade ao autoextermínio. E a proposta de mulher é um tanto inusitada.
Fecha a edição, o apêndice "Questões para discussão", com treze questões propostas nos contos para serem aprofundadas pelos leitores, o que torna o livro um material interessante para ser trabalhado em salas de aula no ensino médio e até na universidade, tal é a profundidade das questões.
Filhos de sangue e outras histórias é o livro perfeito para se iniciar nos temas e problemas da ficção de Octavia Butler, que são continuamente retomados em sua ficção longa e caudalosa, que merece ser conhecida e frequentada.
— Cesar Silva