As pelejas de Ojuara, Nei Leandro de Castro. Edição original: Editora Nova Fronteira, 1986. Edição utilizada: Editora Arx, 2006. 272 páginas.
As pelejas de Ojuara foi originalmente publicado em 1986, com o subtítulo A história verdadeira do homem que virou bicho. É um livro incomum, que responde a maior parte das propostas modernistas para a literatura brasileira e, portanto, também ao histórico Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, embora não seja um romance de ficção científica. Trata-se de uma fantasia regionalista, instalada no sertão nordestino, especialmente na região do Seridó, no Rio Grande do Norte, repleta de referências mitológicas que dão um ambiente épico às aventuras deste herói de cores e formas tipicamente brasileiras. Apesar do regionalismo, os conceitos são amplos e ecoam em todas as regiões do país.
Ojuara é o herói, homem valente, forte, destemido, bom de briga, de garfo, de copo e de cama, "sem lei e sem rei", faz seu próprio caminho. Tornou-se lenda cantada em prosa e verso, com direito a estudos acadêmicos de diversos pesquisadores, inclusive Câmara Cascudo, citado diversas vezes no romance. É claro que tudo isso não passa de ficção, mas é divertidíssima a maneira como o autor manobra as referências e as imprime elegantemente no universo de Ojuara, inclusive com um capítulo inteiro dedicado a discussão acadêmica das origens do personagem, dos lugares em que passou e dos nomes de seus cavalos.
Mas não foi sempre assim. A primeira parte do romance conta como Ojuara Abaporojucaiba nasceu aos 28 anos, depois que seu antecessor, o jovem e inseguro Zé Araújo, após passar por uma humilhação suprema na cidade em que morava, ergueu-se em sua fúria, deu uma surra homérica na esposa histérica e no sogro prepotente, e saiu para o mundo em busca de aventuras e felicidade.
Seu caminho passa por terras mágicas, como São Saruê, onde a água brota em flores, as rochas são de rapadura e correm rios de leite e mel. Lá, Ojuara encontra Edmundo e sua máquina voadora, o Pavão Misterioso, com quem pega boleia. Logo depois, Ojuara encontra um grupo de velhos estranhos, Chico Rabelê, Miguel Sá e Pedro Bala, que na verdade pertencem a uma casta de demônios. Os quatro passam a noite contando histórias assustadoras ao redor de uma fogueirinha de casca de ovos e, ao raiar do dia, Rabelê dá conselhos obscuros a Ojuara, além de uma belíssima sela encantada. As histórias da noite dão ideias a Ojuara, que parte em busca de novas valentias pelo mundo, que ora parece focar na realidade para, em seguida, mergulhar na fantasia, numa mistura de Lampião com Pedro Malazartes, ao ritmo de literatura de cordel. Em muitos momentos, o texto realmente assume a musicalidade da poesia cordelista, colorindo a narrativa de uma maneira própria que poucas vezes se viu na literatura fantástica brasileira.
As lutas de Ojuara vão ser muitas e variadas. Ele enfrentará monstros, animais furiosos e adversários de valor, mas todas as suas pelejas serão definidas muitos anos adiante, quando ele enfrenta o próprio diabo depois de se apropriar de uma moeda que não lhe pertencia.
Os parâmetros mais próximos a referenciar a obra de Leandro de Castro são os romances de José J. Veiga e os clássicos Macunaíma, de Mário de Andrade e Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Mas As pelejas de Ojuara tem uma deliciosa veia humorística que lhe acrescenta vigor e personalidade modernos.
O livro foi adaptado para o cinema em 2007, sob o título de O homem que desafiou o diabo, dirigido de Moacyr Góes com Marcos Palmeira no papel principal, e é uma imagem dessa adaptação que ilustra a capa do volume da Arx. O escritor Braulio Tavares participou da montagem do roteiro e, por algum tempo, esteve disponível na internet um jogo online baseado no filme.
Nei Leandro de Castro é um escritor potiguar, nascido em Caicó em 1940. Formado em Direito, trabalhou como publicitário e mudou-se para o Rio de Janeiro em 1968, onde colaborou com O Pasquim sob o pseudônimo de Neil de Castro. Sua obra literária está mais associada à poesia, arte com a qual tem mais de dez livros publicados, mas também desenvolve um trabalho consistente em romances. Além de As pelejas de Ojuara, publicou O dia das moscas (1983), As dunas vermelhas (2004) e A fortaleza dos vencidos (2009).
As pelejas de Ojuara é um livro que deve ser observado atentamente pelos autores que buscam por identidade para a ficção fantástica brasileira. Afinal, o Brasil é muito mais sertão que metrópole e nossa literatura deveria, em tese, refletir essa realidade. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido pelos autores brasileiros antes que consigam superar o complexo de viralatas que os obriga a evitar os temas nacionais, especialmente os regionalistas. Ainda bem que Nei Leandro de Castro superou e nos deu esta obra-prima.
terça-feira, 28 de fevereiro de 2023
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023
HQ Memories 9
HQ Memories é um bem produzido fanzine de e sobre quadrinhos editado por Luigi Rocco sob a chancela do selo Inumanos Agrupados, dedicado a resgatar trabalhos e autores esquecidos dos quadrinhos brasileiros e estrangeiros.
Este nono número, lançado em fevereiro de 2023, apresenta em 36 páginas, sequências de tiras das séries "Zumbi 3015", de Arthur Garcia e Carlos Pacheco, "Dr. Oculto, o detetive fantasma", de Jerry Siegel e Joe Shuster (antes de Superman), "O Urso", de Luís Diferr, "Ficção: Segunda aventura", de Paulo Ernesto Nesti e Paulo Hamasaki, "Capitão Cometa", de Gedeone Malagola e Fernando Almeida, e uma página da hq "Teobaldo, o detetive biruta", de Lyrio Aragão. A capa traz uma bela ilustração do mestre Manoel Victor Filho (1927 - 1995). Detalhes dos trabalhos apresentados podem ser conferidos no blogue da publicação, aqui.
HQ Memories pode ser encomendado diretamente com o autor, pelo email luigirocco29@gmail.com.
Este nono número, lançado em fevereiro de 2023, apresenta em 36 páginas, sequências de tiras das séries "Zumbi 3015", de Arthur Garcia e Carlos Pacheco, "Dr. Oculto, o detetive fantasma", de Jerry Siegel e Joe Shuster (antes de Superman), "O Urso", de Luís Diferr, "Ficção: Segunda aventura", de Paulo Ernesto Nesti e Paulo Hamasaki, "Capitão Cometa", de Gedeone Malagola e Fernando Almeida, e uma página da hq "Teobaldo, o detetive biruta", de Lyrio Aragão. A capa traz uma bela ilustração do mestre Manoel Victor Filho (1927 - 1995). Detalhes dos trabalhos apresentados podem ser conferidos no blogue da publicação, aqui.
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domingo, 26 de fevereiro de 2023
Juvenatrix 244
Está disponível a edição de março de 2023 do fanzine eletrônico de horror e ficção científica Juvenatrix, editado por Renato Rosatti.
Em 13 páginas, traz um artigo especial sobre os cinquenta anos do clássico filme O exorcista, lançado em 1973, além de resenhas aos filmes O exorcista 2000: Versão do diretor, Os monstros do planeta Hidra (1966) e O dia em que Marte invadiu a Terra (1963), todos de autoria do editor. A capa reproduz uma imagem de Linda Blair caracterizada como a menina possuída de O exorcista.
Cópias em formato pdf podem ser obtidas pelo email renatorosatti@yahoo.com.br.
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Resenha do Almanaque: Noite na taverna, Álvares de Azevedo
Noite na taverna, Álvares de Azevedo. Publicado originalmente em 1855. Edição utilizada: Editora Ediouro, Coleção Biblioteca Folha, 1997. 73 páginas. Apresentação de Adonias Filho. Capa: Lúcia Brandão.
Parafraseando Fausto Cunha, a literatura fantástica brasileira pode até ser um planeta quase desabitado, contudo, aqueles que o habitam são gigantes. E no passado, eram ainda maiores.
Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) é um desses titãs lendários, autor paulista que nada publicou em vida, pois morreu cedo, aos 21 anos, de complicações advindas de uma queda de cavalo. Azevedo pertencia à escola ultra romântica — chamada de Mal do Século — e desenvolveu um curto mas expressivo trabalho como dramaturgo, poeta, ensaísta e contista.
Entre seus textos está Noite na taverna, uma espécie de romance fix-up que completou 150 anos de publicação em 2010. A identificação com a literatura de Edgard Alan Poe é imediata, embora o texto de Azevedo seja muito mais lírico, de inspiração byroniana. Poe dava explicações científicas para seus dramas de horror, já Azevedo prefere apresentar o macabro de suas histórias através da maldade, ganância e torpeza humanas.
Noite na taverna é formado por cinco narrativas, cada uma delas feita por um personagem de um grupo de amigos, enquanto se embriagam e contam vantagens numa taverna. As narrativas são amarradas por uma introdução, chamada "Uma noite do século" e um epílogo, chamado "Último beijo de amor", que contextualizam a dinâmica.
Quem inicia a rodada é "Solfieri", com a história de sua paixão por uma estranha dama em Roma, que o torna insatisfeito com todas as demais mulheres do mundo, até finalmente reencontrar aquela que mais amou e cuja obsessão ainda traz ao pescoço.
"Bertram" vem a seguir com história mais macabra da noite, vangloriando-se das mulheres cujas vidas arruinou e sua definitiva aventura amorosa com a linda esposa do capitão de um navio e do terrível modo como logrou sobreviver ao seu naufrágio.
É então a vez de "Genaro", pintor aprendiz que atraiçoou seu mestre e o levou à loucura, depois de, por sua imensurável covardia, ter contribuído para a morte de suas esposa e filha.
"Claudius Hermman" narra então o que fez com uma linda senhora da nobreza londrina, raptando-a na pretensão de que ela pudesse amá-lo. Mantendo-a sedada, aprisionou-a num lugar secreto e lá se revelou então, para ser completamente por ela rejeitado. E, em sua loucura, destruiu-lhe a vida, a de seu marido e certamente até a de si mesmo.
"Johann" conta então aquela que é a história mais conhecida deste volume, na qual depois de derrotar um adversário valoroso num duelo de morte, encontrou a completa desgraça moral ao desonrar uma promessa de feita ao moribundo.
O epílogo dramático coroa a noite de excessos, com fantasmas retornando para cobrar o preço das infâmias sofridas pelos convivas adormecidos pelo chão da taverna.
Dessa forma, em pouco mais de cinquenta páginas, Azevedo construiu um dos mais perturbadores livros de ficção fantástica já escritos; ousado e turbulento, sem edulcorar os detalhes mais sórdidos. Até Poe talvez se surpreendesse com a agressividade de Azevedo que, mesmo sem usar uma única licença realmente sobrenatural, monta um mosaico de terror e perversão que poucos outro autores ousaram, mesmo na ficção fantástica moderna.
Apesar da juventude do autor, Noite na taverna é uma obra adulta e angustiante que, por sua força, tem muito a contribuir para com a identidade da fc&f brasileira.
Um detalhe curioso é que Noite na taverna está entre os títulos de leitura obrigatória no ensino médio. Os estudantes são apresentados à Azevedo sem qualquer contextualização, enquanto os livros do ciclo do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, volta e meia são revisionados. Com certeza, alguns assuntos são mais sensíveis do que outros. Melhor para Azevedo e para a ficção de horror.
Parafraseando Fausto Cunha, a literatura fantástica brasileira pode até ser um planeta quase desabitado, contudo, aqueles que o habitam são gigantes. E no passado, eram ainda maiores.
Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) é um desses titãs lendários, autor paulista que nada publicou em vida, pois morreu cedo, aos 21 anos, de complicações advindas de uma queda de cavalo. Azevedo pertencia à escola ultra romântica — chamada de Mal do Século — e desenvolveu um curto mas expressivo trabalho como dramaturgo, poeta, ensaísta e contista.
Entre seus textos está Noite na taverna, uma espécie de romance fix-up que completou 150 anos de publicação em 2010. A identificação com a literatura de Edgard Alan Poe é imediata, embora o texto de Azevedo seja muito mais lírico, de inspiração byroniana. Poe dava explicações científicas para seus dramas de horror, já Azevedo prefere apresentar o macabro de suas histórias através da maldade, ganância e torpeza humanas.
Noite na taverna é formado por cinco narrativas, cada uma delas feita por um personagem de um grupo de amigos, enquanto se embriagam e contam vantagens numa taverna. As narrativas são amarradas por uma introdução, chamada "Uma noite do século" e um epílogo, chamado "Último beijo de amor", que contextualizam a dinâmica.
Quem inicia a rodada é "Solfieri", com a história de sua paixão por uma estranha dama em Roma, que o torna insatisfeito com todas as demais mulheres do mundo, até finalmente reencontrar aquela que mais amou e cuja obsessão ainda traz ao pescoço.
"Bertram" vem a seguir com história mais macabra da noite, vangloriando-se das mulheres cujas vidas arruinou e sua definitiva aventura amorosa com a linda esposa do capitão de um navio e do terrível modo como logrou sobreviver ao seu naufrágio.
É então a vez de "Genaro", pintor aprendiz que atraiçoou seu mestre e o levou à loucura, depois de, por sua imensurável covardia, ter contribuído para a morte de suas esposa e filha.
"Claudius Hermman" narra então o que fez com uma linda senhora da nobreza londrina, raptando-a na pretensão de que ela pudesse amá-lo. Mantendo-a sedada, aprisionou-a num lugar secreto e lá se revelou então, para ser completamente por ela rejeitado. E, em sua loucura, destruiu-lhe a vida, a de seu marido e certamente até a de si mesmo.
"Johann" conta então aquela que é a história mais conhecida deste volume, na qual depois de derrotar um adversário valoroso num duelo de morte, encontrou a completa desgraça moral ao desonrar uma promessa de feita ao moribundo.
O epílogo dramático coroa a noite de excessos, com fantasmas retornando para cobrar o preço das infâmias sofridas pelos convivas adormecidos pelo chão da taverna.
Dessa forma, em pouco mais de cinquenta páginas, Azevedo construiu um dos mais perturbadores livros de ficção fantástica já escritos; ousado e turbulento, sem edulcorar os detalhes mais sórdidos. Até Poe talvez se surpreendesse com a agressividade de Azevedo que, mesmo sem usar uma única licença realmente sobrenatural, monta um mosaico de terror e perversão que poucos outro autores ousaram, mesmo na ficção fantástica moderna.
Apesar da juventude do autor, Noite na taverna é uma obra adulta e angustiante que, por sua força, tem muito a contribuir para com a identidade da fc&f brasileira.
Um detalhe curioso é que Noite na taverna está entre os títulos de leitura obrigatória no ensino médio. Os estudantes são apresentados à Azevedo sem qualquer contextualização, enquanto os livros do ciclo do Sítio do Pica-pau Amarelo, de Monteiro Lobato, volta e meia são revisionados. Com certeza, alguns assuntos são mais sensíveis do que outros. Melhor para Azevedo e para a ficção de horror.
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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: Introdução ao estudo da “science fiction”, André Carneiro
Introdução ao estudo da “science fiction”, André Carneiro. 142 páginas. Imprensa Oficial do Estado, São Paulo, 1967.
A publicação de ensaios tem sido um dos mais frequentados nichos editorais nos últimos anos no que se refere aos gêneros fantásticos no Brasil. Mas não foi sempre assim. Apesar de títulos importantes terem sido publicados ao longo do tempo, sua presença nas livrarias foi breve e espaçada.
A carência por literatura foi suprida, ao longo dos anos 1980 e 1990, principalmente pela atividade crítica dos muitos fanzines que surgiram nesse período. Essa atividade, porém, era pouco confiável, pois os textos não eram submetidos a um estudo apurado, não eram revisados e seu objetivo era apenas entreter os próprios fãs, nem sempre tão interessados no rigor do estudo. Entretanto, manteve-se nos trabalhos dos críticos-fãs o caráter diletante da atividade, pois era sabido por todos que se os fãs não fizessem sua própria crítica, ninguém a faria em seu lugar.
Com o cancelamento da maior parte dos fanzines no início do século, a prática da crítica migrou para os livros, agora com aspecto mais apurado, geralmente conseguido a partir de trabalhos de graduação universitários. Aos poucos, o aspecto acadêmico reaproximou a crítica dos atuais estudiosos de ficção científica no Brasil, daquela que era praticada nos anos 1960 e 1970, como pode ser percebido na leitura de um dos mais importantes ensaios da história da crítica de FC no Brasil: Introdução ao estudo da “science fiction”, de André Carneiro, publicado pela Imprensa Oficial do Estado em 1967, volume 53 da Coleção Ensaio.
O volume está dividido em cinco capítulos. Na “Introdução“, Carneiro experimenta definir o gênero, não sem alguma dificuldade, como todos que já o tentaram. Compara a FC à poesia (outro formato literário no qual Carneiro é fluente) e ressalta a interdependência da ficção literária no gênero e da ciência, e que a ficção tem que ser um pouco científica, enquanto a ciência tem que ser um pouco ficcional. Também fala sobre os preconceitos ao gênero como um todo, normalmente dirigidos a um certo tipo de ficção científica que de fato existe (e muitos afirmam ser dominante): a ficção científica de má qualidade, a qual Carneiro ousou nomear de space opera. Na opinião de Carneiro, a space opera é a fc de objetivo comercial, feita apenas para responder à necessidade de consumo, sem qualidade literária, quer de estilo, quer de conteúdo. Hoje, esse termo serve para designar um tipo específico de fantasia tecnológica, não necessariamente vazia de conteúdo, embora ainda seja o ramo preferido dos autores que não querem se comprometer para além dos resultados mercadológicos.
Ficção científica de má qualidade encontra-se aos montes em todos os subgêneros, não há nenhum deles que esteja blindado a falta de talento. Já se tentou criar outros termos para designar a ficção científica ruim e, por algum tempo, optou-se por usar o termo anglófono sci-fi, mas este também soa preconceituoso, uma vez que se refere a ficção científica praticada fora da literatura (cinema, tv, quadrinhos, teatro, etc), que tem seus próprios padrões de qualidade. Então, sem meias palavras, o melhor termo para se referir à ficção científica ruim é o puro e simples “lixo“.
No segundo capítulo, “Das raízes à s.f. atual”, o autor faz uma levantamento histórico do gênero, com exemplos de proto-fc, os fundadores do romance fantástico (principalmente a literatura gótica) e os primeiros autores que deram formato ao gênero. Carneiro não se furta a criticar a qualidade dos textos de Júlio Verne, em contraposição aos de H. G. Wells, que considera muito superior, finalizando com a evolução do pulp nos EUA e o desenvolvimento das revistas de ficção científica e fantasia, responsáveis pelo crescimento e popularização do gênero.
O terceiro capítulo, “A ciência na vida contemporânea”, avalia o impacto dos avanços da ciência no cotidiano e o reflexo desse fenômeno na ficção fantástica moderna. Carneiro divide o capítulo seguinte, “A moderna ficção científica”, em nove sub-categorias, comentadas e exemplificadas individualmente com a citação de diversos exemplos em resenhas curtas. O autor mostra aqui ser um leitor voraz e heterogêneo, citando leituras tanto de livros de outros autores brasileiros como de estrangeiros, traduzidos ou não do inglês, francês e outras línguas, um verdadeiro guia de leitura que aponta muitos dos mais expressivos títulos do gênero. Percebemos que Carneiro valoriza o trabalho da Editora GRD pois, entre suas citações, constam praticamente todos os livros publicados pela editora até aquela data.
No capítulo final, “Valor e expansão da ficção científica”, Carneiro dá um passeio pela ficção científica não-literária, mais uma vez com riqueza de exemplos, destacando a presença do gênero no cinema – que considera o melhor veículo para ele depois da literatura. Relaciona uma lista de títulos, entre unanimidades e raridades pouco lembradas. Também dedica uma parte desse capítulo exclusivamente a ficção científica no Brasil, na qual se detém especialmente na análise feroz de O presidente negro, de Monteiro Lobato. Mas também registra livros de Orígenes Lessa, Jerônimo Monteiro, Menotti Del Picchia, Afonso Schmidt, Dinah Silveira de Queiróz, Fausto Cunha, Rubens Teixeira Scavone, Guido Wilmar Sassy, Levy Menezes, entre outros, além de uma grande relação de críticos que dedicaram atenção ao gênero, uma lista que merece ser pesquisada pois guarda ensaios desconhecidos pelos leitores de hoje.
Carneiro é, sem sombra de dúvida, o mais importante nome da ficção científica no Brasil, tendo assinado alguns dos trabalhos mais expressivos da bibliografia nacional, como os contos “A escuridão” (Diário da vave perdida, Edart, 1963) e “A espingarda” (O homem que adivinhava, Edart, 1966), além do excelente romance Piscina Livre (Editora Moderna, 1980).
Além de escritor talentoso, André Carneiro, foi um verdadeiro visionário. Introdução ao estudo da “science fiction” foi o primeiro estudo sério em língua portuguesa sobre a ficção científica, abrangendo o gênero de forma ampla, no seu aspecto nacional e internacional.
O que se observa na leitura de Introdução ao estudo da “Science Fiction” é como as opiniões de Carneiro são perfeitamente atuais, mesmo se considerando que sua publicação está mais de cinquenta anos no passado. São opiniões corajosas e contundentes, sem deixar de ser elegantes e apoiadas em posturas muito claras e objetivas. Leitura obrigatória a todos os interessados em ficção científica.
A publicação de ensaios tem sido um dos mais frequentados nichos editorais nos últimos anos no que se refere aos gêneros fantásticos no Brasil. Mas não foi sempre assim. Apesar de títulos importantes terem sido publicados ao longo do tempo, sua presença nas livrarias foi breve e espaçada.
A carência por literatura foi suprida, ao longo dos anos 1980 e 1990, principalmente pela atividade crítica dos muitos fanzines que surgiram nesse período. Essa atividade, porém, era pouco confiável, pois os textos não eram submetidos a um estudo apurado, não eram revisados e seu objetivo era apenas entreter os próprios fãs, nem sempre tão interessados no rigor do estudo. Entretanto, manteve-se nos trabalhos dos críticos-fãs o caráter diletante da atividade, pois era sabido por todos que se os fãs não fizessem sua própria crítica, ninguém a faria em seu lugar.
Com o cancelamento da maior parte dos fanzines no início do século, a prática da crítica migrou para os livros, agora com aspecto mais apurado, geralmente conseguido a partir de trabalhos de graduação universitários. Aos poucos, o aspecto acadêmico reaproximou a crítica dos atuais estudiosos de ficção científica no Brasil, daquela que era praticada nos anos 1960 e 1970, como pode ser percebido na leitura de um dos mais importantes ensaios da história da crítica de FC no Brasil: Introdução ao estudo da “science fiction”, de André Carneiro, publicado pela Imprensa Oficial do Estado em 1967, volume 53 da Coleção Ensaio.
O volume está dividido em cinco capítulos. Na “Introdução“, Carneiro experimenta definir o gênero, não sem alguma dificuldade, como todos que já o tentaram. Compara a FC à poesia (outro formato literário no qual Carneiro é fluente) e ressalta a interdependência da ficção literária no gênero e da ciência, e que a ficção tem que ser um pouco científica, enquanto a ciência tem que ser um pouco ficcional. Também fala sobre os preconceitos ao gênero como um todo, normalmente dirigidos a um certo tipo de ficção científica que de fato existe (e muitos afirmam ser dominante): a ficção científica de má qualidade, a qual Carneiro ousou nomear de space opera. Na opinião de Carneiro, a space opera é a fc de objetivo comercial, feita apenas para responder à necessidade de consumo, sem qualidade literária, quer de estilo, quer de conteúdo. Hoje, esse termo serve para designar um tipo específico de fantasia tecnológica, não necessariamente vazia de conteúdo, embora ainda seja o ramo preferido dos autores que não querem se comprometer para além dos resultados mercadológicos.
Ficção científica de má qualidade encontra-se aos montes em todos os subgêneros, não há nenhum deles que esteja blindado a falta de talento. Já se tentou criar outros termos para designar a ficção científica ruim e, por algum tempo, optou-se por usar o termo anglófono sci-fi, mas este também soa preconceituoso, uma vez que se refere a ficção científica praticada fora da literatura (cinema, tv, quadrinhos, teatro, etc), que tem seus próprios padrões de qualidade. Então, sem meias palavras, o melhor termo para se referir à ficção científica ruim é o puro e simples “lixo“.
No segundo capítulo, “Das raízes à s.f. atual”, o autor faz uma levantamento histórico do gênero, com exemplos de proto-fc, os fundadores do romance fantástico (principalmente a literatura gótica) e os primeiros autores que deram formato ao gênero. Carneiro não se furta a criticar a qualidade dos textos de Júlio Verne, em contraposição aos de H. G. Wells, que considera muito superior, finalizando com a evolução do pulp nos EUA e o desenvolvimento das revistas de ficção científica e fantasia, responsáveis pelo crescimento e popularização do gênero.
O terceiro capítulo, “A ciência na vida contemporânea”, avalia o impacto dos avanços da ciência no cotidiano e o reflexo desse fenômeno na ficção fantástica moderna. Carneiro divide o capítulo seguinte, “A moderna ficção científica”, em nove sub-categorias, comentadas e exemplificadas individualmente com a citação de diversos exemplos em resenhas curtas. O autor mostra aqui ser um leitor voraz e heterogêneo, citando leituras tanto de livros de outros autores brasileiros como de estrangeiros, traduzidos ou não do inglês, francês e outras línguas, um verdadeiro guia de leitura que aponta muitos dos mais expressivos títulos do gênero. Percebemos que Carneiro valoriza o trabalho da Editora GRD pois, entre suas citações, constam praticamente todos os livros publicados pela editora até aquela data.
No capítulo final, “Valor e expansão da ficção científica”, Carneiro dá um passeio pela ficção científica não-literária, mais uma vez com riqueza de exemplos, destacando a presença do gênero no cinema – que considera o melhor veículo para ele depois da literatura. Relaciona uma lista de títulos, entre unanimidades e raridades pouco lembradas. Também dedica uma parte desse capítulo exclusivamente a ficção científica no Brasil, na qual se detém especialmente na análise feroz de O presidente negro, de Monteiro Lobato. Mas também registra livros de Orígenes Lessa, Jerônimo Monteiro, Menotti Del Picchia, Afonso Schmidt, Dinah Silveira de Queiróz, Fausto Cunha, Rubens Teixeira Scavone, Guido Wilmar Sassy, Levy Menezes, entre outros, além de uma grande relação de críticos que dedicaram atenção ao gênero, uma lista que merece ser pesquisada pois guarda ensaios desconhecidos pelos leitores de hoje.
Carneiro é, sem sombra de dúvida, o mais importante nome da ficção científica no Brasil, tendo assinado alguns dos trabalhos mais expressivos da bibliografia nacional, como os contos “A escuridão” (Diário da vave perdida, Edart, 1963) e “A espingarda” (O homem que adivinhava, Edart, 1966), além do excelente romance Piscina Livre (Editora Moderna, 1980).
Além de escritor talentoso, André Carneiro, foi um verdadeiro visionário. Introdução ao estudo da “science fiction” foi o primeiro estudo sério em língua portuguesa sobre a ficção científica, abrangendo o gênero de forma ampla, no seu aspecto nacional e internacional.
O que se observa na leitura de Introdução ao estudo da “Science Fiction” é como as opiniões de Carneiro são perfeitamente atuais, mesmo se considerando que sua publicação está mais de cinquenta anos no passado. São opiniões corajosas e contundentes, sem deixar de ser elegantes e apoiadas em posturas muito claras e objetivas. Leitura obrigatória a todos os interessados em ficção científica.
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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: A hora dos ruminantes, José J. Veiga
A hora dos ruminantes, José J. Veiga. Lançado originalmente em 1966. Edição utilizada: Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, 4ª edição, 102 páginas.
A cidade de Manarairema é como muitas outras pelo Brasil: tem todo tipo de gente trabalhando para ganhar a vida. Tem o vendeiro, o carroceiro e o ferreiro. Tem o padre, o casal de namorados e o valentão. Tem o menino que vende cigarros de palha, o consertador de carroças e a dona de casa. E tem também um monte de gente que não faz nada, mas adora uma fofoca. Por isso, a cidade entra em polvorosa quando, sem nenhum aviso prévio ou explicação posterior, um acampamento de gente estranha brota num terreno próximo. São erguidas barracas, construídas cercas e casinhas de madeira, mas os estranhos não aparecem para se apresentar aos manarairemenses.
Todos ficam alvoroçados, perguntam daqui e de lá, mas ninguém tem coragem de ir à tapera ver quem é aquela gente e o que pretende. Os dias passam e o mistério continua.
Geminiano, o carroceiro, é abordado por um dos estranhos que quer comprar sua carroça a qualquer custo. Mas o carroceiro recusa a venda e fica irritado com a insistência. Sua conversa ríspida não passou despercebida e logo virou assunto em toda a cidade.
Amâncio, o dono da venda, que também é o valentão de Manarairema, não tem muito apreço pelo carroceiro e critica publicamente a maneira como ele tratou o estranho. Para mostrar valentia, resolve ir ao acampamento e tirar as coisas em pratos limpos. Depois de um tempo, volta atemorizado e não fala nada para ninguém. Toda a cidade fica inquieta com a reação de Amâncio, e piora quando Geminiano acaba por submeter-se às ordens do povo da tapera. Não vendeu a carroça, mas parece humilhado.
Os estranhos continuam a investir sobre os moradores da cidade e cada um que recusa atender as ordens vindas da tapera, logo recebe a visita suplicante de Geminiano ou de Amâncio, tentando convencer o renitente a ceder.
Os dias passam e o povo fica cada vez mais amedrontado com a presença ameaçadora da tapera ao longe. De repente, sem motivo ou explicação, a cidade é tomada por milhares de cachorros vindo da tapera. São tantos que mal há lugar para pisar. Os animais espalham-se por cada centímetro quadrado de Manarairema, entram nas casas e submergem a cidade em sua onipresença. Depois de muitos dias, com o povo já acostumado com a cachorrada atrevida, um sinal invisível e inaudível convoca a matilha. Os bichos saem da cidade aos trambolhões, deixando para trás uma Manarairema imunda, assustada e intrigada.
Não demora muito, nova invasão e, desta vez, a coisa é realmente séria: a cidade é inundada por bois, tão coladinhos uns nos outros que ninguém mais consegue sair à rua. Sem ter como se abastecer de água e comida, o povo sofre aprisionado em suas casas. Quando as esperanças estão perdidas e o fim se aproxima, os bois simplesmente desaparecem, deixando a cidade enterrada em toneladas de esterco.
O povo da tapera também se foi. Finalmente, Manarairema pode voltar ao normal, mas a memória dessa experiência sufocante nunca vai deixar de influenciar o comportamento do povo daquela cidadezinha indefesa.
Esta é a história que o escritor goiano José J. Veiga conta em A hora dos ruminantes, publicado em 1966, uma alegoria sobre o poder e sua efemeridade. Certamente foi a maneira como o autor reagiu aos anos de chumbo da ditadura, quando o inocente era considerado subversivo e a opressão se manifestava nas formas mais absurdas. Compõe com Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, e Fazenda modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda, uma verdadeira trilogia fantástica sobre o autoritarismo que vivemos entre 1964 e 1985.
Mesmo hoje, mais de trinta anos depois do fim da ditadura militar, A hora dos ruminantes continua efetivo em seu discurso antiautoritarismo e nos faz pensar em como nós, feitos manarairemenses, reagiríamos àquele estado de opressão.
A hora dos ruminantes foi a primeira novela de José J. Veiga, muito bem recebida pela crítica especializada, que deu ao autor o reconhecimento completo pelo seu trabalho, iniciado poucos anos antes, em 1959, com a publicação da coletânea Os cavalinho do Platiplanto, livro bem avaliado e rico em sabores para o leitor de ficção fantástica porque boa parte dos contos – senão todos – está de algum modo associado ao fantástico.
O sucesso e o reconhecimento de Veiga são estranhos no imaginário dos fã brasileiro de ficção fantástica. Isso porque desmentem cada uma das suas principais “verdades” instituídas: 1) Que o mainstream tem preconceito visceral contra a ficção fantástica; 2) que ficção fantástica não vende; e 3) que só os fãs conseguem escrever ficção fantástica de boa qualidade.
Veiga sempre foi um autor identificado com o mainstream, um outsider que nunca fez parte do domínio dos fãs, seja em sua geração contemporânea, a Primeira Onda – conhecida como Geração GRD –, seja na Segunda Onda, formada por fãs e fanzines a partir de meados dos anos 1980. Apesar disso, e desde o primeiro livro, toda a sua carreira vitoriosa foi construída com a ficção fantástica.
Entre seus trabalhos há ficção científica (Sombras de reis barbudos, 1972, história alternativa (A casca da serpente, 1989), ficção alternativa (O relógio Belisário, 1995) e muita fantasia. Todos venderam bem, tiveram dezenas de edições, foram traduzidos em muitas línguas, reconhecidos pelo mainstream e agraciados com vários prêmios: Veiga recebeu da Câmara Brasileira do Livro três Prêmios Jabuti, por De jogos e festas (1981), Aquele mundo de Vasabarros (1983) e O risonho cavalo do príncipe (1993). Em 1997, o valor da obra de Veiga foi reconhecido pela Academia Brasileira de Letras que lhe outorgou o Prêmio Machado de Assis.
Falecido em 1999, José J. Veiga legou aos brasileiros uma obra ampla e de grande significado, que precisa ser conhecida e estudada por aqueles que pretendem atuar no meio editorial, seja como autores, críticos ou editores.
A cidade de Manarairema é como muitas outras pelo Brasil: tem todo tipo de gente trabalhando para ganhar a vida. Tem o vendeiro, o carroceiro e o ferreiro. Tem o padre, o casal de namorados e o valentão. Tem o menino que vende cigarros de palha, o consertador de carroças e a dona de casa. E tem também um monte de gente que não faz nada, mas adora uma fofoca. Por isso, a cidade entra em polvorosa quando, sem nenhum aviso prévio ou explicação posterior, um acampamento de gente estranha brota num terreno próximo. São erguidas barracas, construídas cercas e casinhas de madeira, mas os estranhos não aparecem para se apresentar aos manarairemenses.
Todos ficam alvoroçados, perguntam daqui e de lá, mas ninguém tem coragem de ir à tapera ver quem é aquela gente e o que pretende. Os dias passam e o mistério continua.
Geminiano, o carroceiro, é abordado por um dos estranhos que quer comprar sua carroça a qualquer custo. Mas o carroceiro recusa a venda e fica irritado com a insistência. Sua conversa ríspida não passou despercebida e logo virou assunto em toda a cidade.
Amâncio, o dono da venda, que também é o valentão de Manarairema, não tem muito apreço pelo carroceiro e critica publicamente a maneira como ele tratou o estranho. Para mostrar valentia, resolve ir ao acampamento e tirar as coisas em pratos limpos. Depois de um tempo, volta atemorizado e não fala nada para ninguém. Toda a cidade fica inquieta com a reação de Amâncio, e piora quando Geminiano acaba por submeter-se às ordens do povo da tapera. Não vendeu a carroça, mas parece humilhado.
Os estranhos continuam a investir sobre os moradores da cidade e cada um que recusa atender as ordens vindas da tapera, logo recebe a visita suplicante de Geminiano ou de Amâncio, tentando convencer o renitente a ceder.
Os dias passam e o povo fica cada vez mais amedrontado com a presença ameaçadora da tapera ao longe. De repente, sem motivo ou explicação, a cidade é tomada por milhares de cachorros vindo da tapera. São tantos que mal há lugar para pisar. Os animais espalham-se por cada centímetro quadrado de Manarairema, entram nas casas e submergem a cidade em sua onipresença. Depois de muitos dias, com o povo já acostumado com a cachorrada atrevida, um sinal invisível e inaudível convoca a matilha. Os bichos saem da cidade aos trambolhões, deixando para trás uma Manarairema imunda, assustada e intrigada.
Não demora muito, nova invasão e, desta vez, a coisa é realmente séria: a cidade é inundada por bois, tão coladinhos uns nos outros que ninguém mais consegue sair à rua. Sem ter como se abastecer de água e comida, o povo sofre aprisionado em suas casas. Quando as esperanças estão perdidas e o fim se aproxima, os bois simplesmente desaparecem, deixando a cidade enterrada em toneladas de esterco.
O povo da tapera também se foi. Finalmente, Manarairema pode voltar ao normal, mas a memória dessa experiência sufocante nunca vai deixar de influenciar o comportamento do povo daquela cidadezinha indefesa.
Esta é a história que o escritor goiano José J. Veiga conta em A hora dos ruminantes, publicado em 1966, uma alegoria sobre o poder e sua efemeridade. Certamente foi a maneira como o autor reagiu aos anos de chumbo da ditadura, quando o inocente era considerado subversivo e a opressão se manifestava nas formas mais absurdas. Compõe com Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, e Fazenda modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda, uma verdadeira trilogia fantástica sobre o autoritarismo que vivemos entre 1964 e 1985.
Mesmo hoje, mais de trinta anos depois do fim da ditadura militar, A hora dos ruminantes continua efetivo em seu discurso antiautoritarismo e nos faz pensar em como nós, feitos manarairemenses, reagiríamos àquele estado de opressão.
A hora dos ruminantes foi a primeira novela de José J. Veiga, muito bem recebida pela crítica especializada, que deu ao autor o reconhecimento completo pelo seu trabalho, iniciado poucos anos antes, em 1959, com a publicação da coletânea Os cavalinho do Platiplanto, livro bem avaliado e rico em sabores para o leitor de ficção fantástica porque boa parte dos contos – senão todos – está de algum modo associado ao fantástico.
O sucesso e o reconhecimento de Veiga são estranhos no imaginário dos fã brasileiro de ficção fantástica. Isso porque desmentem cada uma das suas principais “verdades” instituídas: 1) Que o mainstream tem preconceito visceral contra a ficção fantástica; 2) que ficção fantástica não vende; e 3) que só os fãs conseguem escrever ficção fantástica de boa qualidade.
Veiga sempre foi um autor identificado com o mainstream, um outsider que nunca fez parte do domínio dos fãs, seja em sua geração contemporânea, a Primeira Onda – conhecida como Geração GRD –, seja na Segunda Onda, formada por fãs e fanzines a partir de meados dos anos 1980. Apesar disso, e desde o primeiro livro, toda a sua carreira vitoriosa foi construída com a ficção fantástica.
Entre seus trabalhos há ficção científica (Sombras de reis barbudos, 1972, história alternativa (A casca da serpente, 1989), ficção alternativa (O relógio Belisário, 1995) e muita fantasia. Todos venderam bem, tiveram dezenas de edições, foram traduzidos em muitas línguas, reconhecidos pelo mainstream e agraciados com vários prêmios: Veiga recebeu da Câmara Brasileira do Livro três Prêmios Jabuti, por De jogos e festas (1981), Aquele mundo de Vasabarros (1983) e O risonho cavalo do príncipe (1993). Em 1997, o valor da obra de Veiga foi reconhecido pela Academia Brasileira de Letras que lhe outorgou o Prêmio Machado de Assis.
Falecido em 1999, José J. Veiga legou aos brasileiros uma obra ampla e de grande significado, que precisa ser conhecida e estudada por aqueles que pretendem atuar no meio editorial, seja como autores, críticos ou editores.
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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: Esfinge, Coelho Neto
Esfinge, Coelho Neto. Publicado originalmente em 1908. Edição de referência: Lello & Irmão – Editores, Porto, Portugal. 3ª edição, 1925. 220 páginas.
Esfinge completou cem anos em 2008 e é, sem dúvida, um dos grandes momentos da ficção fantástica brasileira. Conta a história incrível de James Marian, inglês tímido em passagem pelo Brasil, hospedado na discreta e luxuosa pensão Barkley, na Rua Paissandu, no Rio de Janeiro, onde habitam também outros figurões estrangeiros e personalidades proeminentes da sociedade carioca, entre músicos, estudantes e empresários. Um deles – cujo nome não é citado e leva a crer que seja o próprio Coelho Neto – assume a narrativa e apresenta os personagens que parecem gravitar o inglês. Ele os atrai com seu ar misterioso e sua beleza extrema, sendo descrito fisicamente como um deus grego com um rosto de graça incomum.
Todos se agitam com relação a James. Alguns sentem-se atraídos por ele, como a jovem britânica Miss Fanny, professora de crianças que nutre por James uma paixão platônica. Outros, como o capitalista Comendador Bernaz, sentem repulsa por seu comportamento reservado e afetado. As relações entre os hóspedes também são alteradas pela influência do misterioso estrangeiro, como se dele emanasse algum tipo de energia perturbadora.
Numa das raras oportunidades em que James participa de uma refeição coletiva, aproxima-se do narrador e lhe faz confidências surpreendentes. Depois de uma conversa bastante íntima, James pede que ele traduza para o português uma novela que escreveu, tarefa pela qual o autor fica muito empolgado. De posse dos manuscritos, retira-se para seu quarto e inicia o trabalho.
Os manuscritos quase ilegíveis exigem grande esforço do tradutor. Aos poucos, emerge uma estranha história, que conta como um casal de jovens que morreu violentamente – o menino teve a cabeça esfacelada, e a menina o corpo destruído – tem a vida restaurada por um sábio chamado Arhat. Com o uso de conhecimentos secretos em medicina, ele une as partes preservadas num único ser: a cabeça feminina no corpo masculino. Entretanto, Arhat teme que sua criatura torne-se infeliz, com a personalidade dominada por uma eterna batalha entre dois espíritos conflituosos, sem que qualquer deles predomine definitivamente sobre o outro.
Acompanhado apenas do seu sábio tutor, quase sempre ausente, o jovem revivido passa o restante de sua infância explorando grande e bonito castelo que é sua residência. Anos depois, por ordem do sábio Arhat, um casal de adolescentes vem lhe fazer companhia e o jovem descobre os sentimentos e, com eles, seus tormentos.
Ao final da tradução deste primeiro trecho do romance, o tradutor exausto começa a apresentar um comportamento estranho: vê coisas, vaga sem destino pelas ruas, dorme mal e tem muitos pesadelos.
A tradução dos manuscritos prossegue: numa sequência de delicada beleza, Arhat transcende a existência humana e deixa para sua criatura, agora crescida e bem formada, um livro que é a chave para a revelação de sua condição, mas que apenas um homem sensível e sábio seria capaz de traduzir. Herdeira de uma grande fortuna, a atormentada quimera viaja pelo mundo em busca de alguém que lhe traduza o livro.
Enquanto isso, a delicada Miss Fanny adoece gravemente, com sintomas de tuberculose galopante. A morte precoce da donzela abala a pequena comunidade pensionista que, progressivamente, apresenta um comportamento cada vez mais irascível e extremado. O desfecho do drama se dá pouco depois do sepultamento da infeliz Miss Fanny, quando James decide ir embora. O narrador recebe uma última visita do inglês quando este vem buscar os manuscritos. Mas James ainda reserva um último grande choque ao seu tradutor, que vai tresandar o pouco equilíbrio emocional que ainda lhe resta; as páginas finais do relato são escritas muito mais tarde, depois de uma temporada numa clínica de repouso.
A narrativa de Coelho Neto antecipa o modelo de histórias que seria a marca registrada do escritor norte americano H. P. Lovecraft, em que o contato de um ser humano normal com um grande mistério o torna louco, quando não o mata. Em muitos aspectos, Esfinge reporta ao estilo do horror gótico, por conta do texto rebuscado, da narrativa em forma de diário, das imagens de casarões e castelos, e das descrições de delírios e sonhos dos personagens, na tradição de O manuscrito de Saragoça, de Jan Potocky, O vampiro de Karnstein, de Sheridan Le Fanu, A casa na beira do abismo, de William Hodgson e Frankenstein, de Mary Shelley.
Entretanto, mais fantástico que Esfinge é o seu autor. Henrique Maximiniano Coelho Neto (1864-1934), mameluco maranhense de Caxias, escritor realista, pré-modernista, foi por muito tempo um dos mais lidos escritores brasileiros. Tinha uma impressionante capacidade vocabular, que fazia questão de demonstrar em seus escritos. Recebeu o título de Príncipe dos Prosadores Brasileiros devido ao estilo sofisticado e o sucesso entre os leitores. Seu prestígio demonstra-se inclusive no fato dele ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando-lhe a cadeira de número 2, casa que presidiu em 1926. Por isso foi principalmente contra ele, bem como também a Olavo Bilac, que os modernistas apontaram suas baterias. Acusavam-no de se interessar unicamente pela forma e pelas palavras, ignorando a realidade brasileira, e estar a serviço de uma ideologia conservadora e elitista. As críticas dos modernistas para com os trabalhos de Coelho Neto foram tão ácidas e destrutivas que o autor praticamente desapareceu da memória do leitor brasileiro. Seus mais de 120 livros publicados, todos de grande sucesso, como A Capital Federal (1893), Miragem (1895) O morto (1898), Fogo fátuo (1928), A Cidade Maravilhosa (1928) e Sertão (contos, 1896), foram obliterados do cânone e mesmo sua figura de escritor foi ferozmente demolida por incontáveis artigos desmedidamente raivosos, que até hoje causam prejuízos.
Coelho Neto expõe em Esfinge todos os atributos que tornaram famosas suas narrativas: bom ritmo, personagens bem construídos, cada qual com um léxico particular – algo em falta na ficção de forma geral –, imagens vívidas e bom domínio da narrativa psicológica, sendo dessa forma um dos mais completos autores brasileiros a ter trafegado na literatura fantástica.
Esfinge completou cem anos em 2008 e é, sem dúvida, um dos grandes momentos da ficção fantástica brasileira. Conta a história incrível de James Marian, inglês tímido em passagem pelo Brasil, hospedado na discreta e luxuosa pensão Barkley, na Rua Paissandu, no Rio de Janeiro, onde habitam também outros figurões estrangeiros e personalidades proeminentes da sociedade carioca, entre músicos, estudantes e empresários. Um deles – cujo nome não é citado e leva a crer que seja o próprio Coelho Neto – assume a narrativa e apresenta os personagens que parecem gravitar o inglês. Ele os atrai com seu ar misterioso e sua beleza extrema, sendo descrito fisicamente como um deus grego com um rosto de graça incomum.
Todos se agitam com relação a James. Alguns sentem-se atraídos por ele, como a jovem britânica Miss Fanny, professora de crianças que nutre por James uma paixão platônica. Outros, como o capitalista Comendador Bernaz, sentem repulsa por seu comportamento reservado e afetado. As relações entre os hóspedes também são alteradas pela influência do misterioso estrangeiro, como se dele emanasse algum tipo de energia perturbadora.
Numa das raras oportunidades em que James participa de uma refeição coletiva, aproxima-se do narrador e lhe faz confidências surpreendentes. Depois de uma conversa bastante íntima, James pede que ele traduza para o português uma novela que escreveu, tarefa pela qual o autor fica muito empolgado. De posse dos manuscritos, retira-se para seu quarto e inicia o trabalho.
Os manuscritos quase ilegíveis exigem grande esforço do tradutor. Aos poucos, emerge uma estranha história, que conta como um casal de jovens que morreu violentamente – o menino teve a cabeça esfacelada, e a menina o corpo destruído – tem a vida restaurada por um sábio chamado Arhat. Com o uso de conhecimentos secretos em medicina, ele une as partes preservadas num único ser: a cabeça feminina no corpo masculino. Entretanto, Arhat teme que sua criatura torne-se infeliz, com a personalidade dominada por uma eterna batalha entre dois espíritos conflituosos, sem que qualquer deles predomine definitivamente sobre o outro.
Acompanhado apenas do seu sábio tutor, quase sempre ausente, o jovem revivido passa o restante de sua infância explorando grande e bonito castelo que é sua residência. Anos depois, por ordem do sábio Arhat, um casal de adolescentes vem lhe fazer companhia e o jovem descobre os sentimentos e, com eles, seus tormentos.
Ao final da tradução deste primeiro trecho do romance, o tradutor exausto começa a apresentar um comportamento estranho: vê coisas, vaga sem destino pelas ruas, dorme mal e tem muitos pesadelos.
A tradução dos manuscritos prossegue: numa sequência de delicada beleza, Arhat transcende a existência humana e deixa para sua criatura, agora crescida e bem formada, um livro que é a chave para a revelação de sua condição, mas que apenas um homem sensível e sábio seria capaz de traduzir. Herdeira de uma grande fortuna, a atormentada quimera viaja pelo mundo em busca de alguém que lhe traduza o livro.
Enquanto isso, a delicada Miss Fanny adoece gravemente, com sintomas de tuberculose galopante. A morte precoce da donzela abala a pequena comunidade pensionista que, progressivamente, apresenta um comportamento cada vez mais irascível e extremado. O desfecho do drama se dá pouco depois do sepultamento da infeliz Miss Fanny, quando James decide ir embora. O narrador recebe uma última visita do inglês quando este vem buscar os manuscritos. Mas James ainda reserva um último grande choque ao seu tradutor, que vai tresandar o pouco equilíbrio emocional que ainda lhe resta; as páginas finais do relato são escritas muito mais tarde, depois de uma temporada numa clínica de repouso.
A narrativa de Coelho Neto antecipa o modelo de histórias que seria a marca registrada do escritor norte americano H. P. Lovecraft, em que o contato de um ser humano normal com um grande mistério o torna louco, quando não o mata. Em muitos aspectos, Esfinge reporta ao estilo do horror gótico, por conta do texto rebuscado, da narrativa em forma de diário, das imagens de casarões e castelos, e das descrições de delírios e sonhos dos personagens, na tradição de O manuscrito de Saragoça, de Jan Potocky, O vampiro de Karnstein, de Sheridan Le Fanu, A casa na beira do abismo, de William Hodgson e Frankenstein, de Mary Shelley.
Entretanto, mais fantástico que Esfinge é o seu autor. Henrique Maximiniano Coelho Neto (1864-1934), mameluco maranhense de Caxias, escritor realista, pré-modernista, foi por muito tempo um dos mais lidos escritores brasileiros. Tinha uma impressionante capacidade vocabular, que fazia questão de demonstrar em seus escritos. Recebeu o título de Príncipe dos Prosadores Brasileiros devido ao estilo sofisticado e o sucesso entre os leitores. Seu prestígio demonstra-se inclusive no fato dele ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando-lhe a cadeira de número 2, casa que presidiu em 1926. Por isso foi principalmente contra ele, bem como também a Olavo Bilac, que os modernistas apontaram suas baterias. Acusavam-no de se interessar unicamente pela forma e pelas palavras, ignorando a realidade brasileira, e estar a serviço de uma ideologia conservadora e elitista. As críticas dos modernistas para com os trabalhos de Coelho Neto foram tão ácidas e destrutivas que o autor praticamente desapareceu da memória do leitor brasileiro. Seus mais de 120 livros publicados, todos de grande sucesso, como A Capital Federal (1893), Miragem (1895) O morto (1898), Fogo fátuo (1928), A Cidade Maravilhosa (1928) e Sertão (contos, 1896), foram obliterados do cânone e mesmo sua figura de escritor foi ferozmente demolida por incontáveis artigos desmedidamente raivosos, que até hoje causam prejuízos.
Coelho Neto expõe em Esfinge todos os atributos que tornaram famosas suas narrativas: bom ritmo, personagens bem construídos, cada qual com um léxico particular – algo em falta na ficção de forma geral –, imagens vívidas e bom domínio da narrativa psicológica, sendo dessa forma um dos mais completos autores brasileiros a ter trafegado na literatura fantástica.
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terça-feira, 21 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: O diálogo dos mundos, Rubens Teixeira Scavone
O diálogo dos mundos, Rubens Teixeira Scavone. 152 páginas. Capa: Fotomotagem de Rubens Teixeira Scavone. Coleção Ficção Científica GRD nº10, Editora GRD, Rio de Janeiro, 1961.
É sempre uma grande responsabilidade resenhar um clássico. Isso porque ele carrega valores emocionais e históricos difíceis de não se levar em conta na hora de elaborar uma análise. A dificuldade aumenta quando se trata de um autor cujo nome é praticamente sinônimo da ficção científica brasileira. Rubens Teixeira Scavone (1925-2007) é um dos autores que vêm a mente em primeiro lugar quando nos referimos a fc brasileira, e todos os seus textos foram muito bem aceitos por várias gerações de leitores. Scavone foi um escritor erudito, de grande qualidade técnica, conhecedor do gênero e muito bem instalado no mainstream, uma vez que foi um dos raros escritores do fandom a receber o Prêmo Jabuti de Melhor Romance (por Clube de campo, 1973).
O diálogo dos mundos é uma coletânea de contos, número 10 da lendária coleção Ficção Científica GRD, com seis textos de Scavone apresentados por um longo prefácio assinado por José Geraldo Vieira, por si só uma peça de interesse, repleta de informações curiosas sobre a proto-ficção científica.
O texto que dá nome à antologia é uma noveleta que toma quase a metade do volume. Conta a história de uma equipe de pesquisa chefiada por um cientista ambicioso que está prestes a divulgar à comunidade internacional, durante um grande evento, o sucesso conquistado num custoso programa que nunca havia recebido muito crédito. A humanidade finalmente contactara uma cultura alienígena, feito obtido depois de anos de escuta em um radiotelescópio, e é justamente em suas dependências que o grande evento acontece.
Enquanto o cientista chefe sonha com os louros que vai conquistar, uma grande nevasca parece querer impedir o sucesso do evento. A tensão aumenta quando o público presente é reunido para, depois de escutar as transmissões captadas, discutir qual seria a melhor forma de respondê-las. Surge um turbulento debate entre os intelectuais presentes, que chega a beira a insanidade, mas o pior ainda estava por vir.
Esta novela é um clássico da fc brasileira. A peça literária é sustentada pela tensão entre um estilo estóico e uma ironia permanente que, durante toda a leitura, permite antever a tragédia que se avizinha. Mais que o final, que é na verdade um tanto anticlimático, o valor desse cabo de guerra está justamente na disputa dessas forças narrativas que Scavone soube manobrar muito bem.
“O fim da aventura” é uma narrativa menos ambiciosa e, fora de seu contexto histórico, pode ser considerada ingênua e inverossímil, mas há cinquenta anos tinha um valor diferente. Conta a malfadada aventura de uma equipe de cosmonautas que, durante uma viagem exploratória secreta, é obrigada a fazer um pouso de emergência num ambiente hostil e acaba dizimada por nativos ferozes. O resgate dos restos dessa tragédia revela os limites da pretensão da ciência humana. Mais uma vez, o valor do texto está na qualidade narrativa e na estrutura que Scavone teceu para conduzir o leitor para longe das pistas que revelariam, antes da hora, o final da história. Apesar da boa técnica, a repetição seguida da estrutura com final surpresa não ajudou o conjunto. Finais surpresa são difíceis de manobrar e, se não forem sustentados por uma história poderosa, tornam-se armadilhas para o autor. Scavone escapou por pouco, salvo pela qualidade técnica de seu texto.
“Número transcendental” é o melhor conto do volume. Narra a história de um homem rico que, internado contra a sua vontade pela família num hospício, desenvolve um plano de fuga para recuperar o controle de sua vida e de sua fortuna. Mas, durante a ação, tem um inesperado e deslumbrante contato imediato com um grupo de seres alienígenas. Esquecido da fuga, o homem rico acaba por ser recapturado pelos seguranças do manicômio. Diagnosticado com um quadro de piora, perde assim a única oportunidade de fuga que jamais voltaria a ter.
“O menino e o robô” é um dos textos curtos mais conhecidos de Scavone, republicado diversas vezes. Conta o dramá de um técnico que vive em constantes viagens espaciais e que adquire um robô para fazer companhia a seu filho, que vive com a mãe na Terra. A máquina é programada com rotinas de empatia e fica muito ligada ao menino. Contudo o garoto adoece e morre, e o sofrimento dos pais revela-se não ser maior que o do próprio robô. Uma história tocante ao estilo de Ray Bradbury, e que discute alguns dos grandes temas do relacionamento humano.
“Passagem para Júpiter” é outro conto muito conhecido de Scavone, que emprestou o nome a outra de suas coletâneas. Trata de um cientista do ano de 2222, muito bem-sucedido em suas realizações na Lua e em Marte, mas que nunca deixou a Terra. Sua atenção agora se volta a Júpiter, então a fronteira da humanidade, pois somente lá, entre o desconhecido e o imponderável, poderia encontrar desafios que justificassem sair do planeta. Ele dedica seus esforços ao projeto, mas não percebe que o que o atrai de fato não é Júpiter em si. A história é surpreendente, mesmo depois de tantos anos, enxuta, correta e moderna.
“Flores para uma terrestre” é outro trabalho de laivos emotivos influenciados pela ficção bradburiana. Um astronauta está prestes a encerrar seu turno em uma estação mineradora em Titã, quando, durante uma de suas rondas, se depara com uma rara forma de vida que se assemelha a uma flor. Admirado com a descoberta, que poderia lhe trazer fama e fortuna, decide levá-la à Terra como definitiva prova de amor à sua noiva, que não vê há três anos. Em segredo, prepara tudo para que o espécime, que só pode sobreviver na atmosfera venenosa da lua saturniana, chegue a salvo ao destino e, contra todos os prognósticos, o plano dele dá certo. Ou quase.
O diálogo dos mundos é um volume de leitura obrigatória para todo aquele que pretende conhecer profundamente a ficção cientifica brasileira. A edição de GRD foi a primeira, mas o livro também tem outra edição, de 1965, pelo Clube do Livro, que é bem mais fácil de encontrar nos sebos, pois teve grande tiragem. Mesmo aquele que não pretende se especializar em fc, interessado apenas em desfrutar algumas horas de bom entretenimento, O dialógo dos mundos é leitura recomendável, repleta de sentimento, emoção, humor e maravilhamento frente a imensidão e os mistérios cósmicos.
É sempre uma grande responsabilidade resenhar um clássico. Isso porque ele carrega valores emocionais e históricos difíceis de não se levar em conta na hora de elaborar uma análise. A dificuldade aumenta quando se trata de um autor cujo nome é praticamente sinônimo da ficção científica brasileira. Rubens Teixeira Scavone (1925-2007) é um dos autores que vêm a mente em primeiro lugar quando nos referimos a fc brasileira, e todos os seus textos foram muito bem aceitos por várias gerações de leitores. Scavone foi um escritor erudito, de grande qualidade técnica, conhecedor do gênero e muito bem instalado no mainstream, uma vez que foi um dos raros escritores do fandom a receber o Prêmo Jabuti de Melhor Romance (por Clube de campo, 1973).
O diálogo dos mundos é uma coletânea de contos, número 10 da lendária coleção Ficção Científica GRD, com seis textos de Scavone apresentados por um longo prefácio assinado por José Geraldo Vieira, por si só uma peça de interesse, repleta de informações curiosas sobre a proto-ficção científica.
O texto que dá nome à antologia é uma noveleta que toma quase a metade do volume. Conta a história de uma equipe de pesquisa chefiada por um cientista ambicioso que está prestes a divulgar à comunidade internacional, durante um grande evento, o sucesso conquistado num custoso programa que nunca havia recebido muito crédito. A humanidade finalmente contactara uma cultura alienígena, feito obtido depois de anos de escuta em um radiotelescópio, e é justamente em suas dependências que o grande evento acontece.
Enquanto o cientista chefe sonha com os louros que vai conquistar, uma grande nevasca parece querer impedir o sucesso do evento. A tensão aumenta quando o público presente é reunido para, depois de escutar as transmissões captadas, discutir qual seria a melhor forma de respondê-las. Surge um turbulento debate entre os intelectuais presentes, que chega a beira a insanidade, mas o pior ainda estava por vir.
Esta novela é um clássico da fc brasileira. A peça literária é sustentada pela tensão entre um estilo estóico e uma ironia permanente que, durante toda a leitura, permite antever a tragédia que se avizinha. Mais que o final, que é na verdade um tanto anticlimático, o valor desse cabo de guerra está justamente na disputa dessas forças narrativas que Scavone soube manobrar muito bem.
“O fim da aventura” é uma narrativa menos ambiciosa e, fora de seu contexto histórico, pode ser considerada ingênua e inverossímil, mas há cinquenta anos tinha um valor diferente. Conta a malfadada aventura de uma equipe de cosmonautas que, durante uma viagem exploratória secreta, é obrigada a fazer um pouso de emergência num ambiente hostil e acaba dizimada por nativos ferozes. O resgate dos restos dessa tragédia revela os limites da pretensão da ciência humana. Mais uma vez, o valor do texto está na qualidade narrativa e na estrutura que Scavone teceu para conduzir o leitor para longe das pistas que revelariam, antes da hora, o final da história. Apesar da boa técnica, a repetição seguida da estrutura com final surpresa não ajudou o conjunto. Finais surpresa são difíceis de manobrar e, se não forem sustentados por uma história poderosa, tornam-se armadilhas para o autor. Scavone escapou por pouco, salvo pela qualidade técnica de seu texto.
“Número transcendental” é o melhor conto do volume. Narra a história de um homem rico que, internado contra a sua vontade pela família num hospício, desenvolve um plano de fuga para recuperar o controle de sua vida e de sua fortuna. Mas, durante a ação, tem um inesperado e deslumbrante contato imediato com um grupo de seres alienígenas. Esquecido da fuga, o homem rico acaba por ser recapturado pelos seguranças do manicômio. Diagnosticado com um quadro de piora, perde assim a única oportunidade de fuga que jamais voltaria a ter.
“O menino e o robô” é um dos textos curtos mais conhecidos de Scavone, republicado diversas vezes. Conta o dramá de um técnico que vive em constantes viagens espaciais e que adquire um robô para fazer companhia a seu filho, que vive com a mãe na Terra. A máquina é programada com rotinas de empatia e fica muito ligada ao menino. Contudo o garoto adoece e morre, e o sofrimento dos pais revela-se não ser maior que o do próprio robô. Uma história tocante ao estilo de Ray Bradbury, e que discute alguns dos grandes temas do relacionamento humano.
“Passagem para Júpiter” é outro conto muito conhecido de Scavone, que emprestou o nome a outra de suas coletâneas. Trata de um cientista do ano de 2222, muito bem-sucedido em suas realizações na Lua e em Marte, mas que nunca deixou a Terra. Sua atenção agora se volta a Júpiter, então a fronteira da humanidade, pois somente lá, entre o desconhecido e o imponderável, poderia encontrar desafios que justificassem sair do planeta. Ele dedica seus esforços ao projeto, mas não percebe que o que o atrai de fato não é Júpiter em si. A história é surpreendente, mesmo depois de tantos anos, enxuta, correta e moderna.
“Flores para uma terrestre” é outro trabalho de laivos emotivos influenciados pela ficção bradburiana. Um astronauta está prestes a encerrar seu turno em uma estação mineradora em Titã, quando, durante uma de suas rondas, se depara com uma rara forma de vida que se assemelha a uma flor. Admirado com a descoberta, que poderia lhe trazer fama e fortuna, decide levá-la à Terra como definitiva prova de amor à sua noiva, que não vê há três anos. Em segredo, prepara tudo para que o espécime, que só pode sobreviver na atmosfera venenosa da lua saturniana, chegue a salvo ao destino e, contra todos os prognósticos, o plano dele dá certo. Ou quase.
O diálogo dos mundos é um volume de leitura obrigatória para todo aquele que pretende conhecer profundamente a ficção cientifica brasileira. A edição de GRD foi a primeira, mas o livro também tem outra edição, de 1965, pelo Clube do Livro, que é bem mais fácil de encontrar nos sebos, pois teve grande tiragem. Mesmo aquele que não pretende se especializar em fc, interessado apenas em desfrutar algumas horas de bom entretenimento, O dialógo dos mundos é leitura recomendável, repleta de sentimento, emoção, humor e maravilhamento frente a imensidão e os mistérios cósmicos.
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Rubens Teixeira Scavone
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023
Vaporpunk II
Vaporpunk: Novos documentos de uma pitoresca época steampunk, Fábio Fernandes e Romeu Martins, orgs. 224 páginas. São Paulo: Draco, 2014.
Vaporpunk: Novos documentos de uma pitoresca época steampunk é o segundo volume do título e o quarto da série "punk" da editora Draco, que conta também com Vaporpunk (2010), Dieselpunk (2011), Solarpunk (2013) e Cyberpunk (2019). Trata-se de uma antologia de contos na tradição do modelo inaugurado por A máquina diferencial, romance de Bruce Sterling e William Gibson originalmente publicado em 1990 e traduzido no Brasil em 2012 pela editora Aleph, que propõe o desenvolvimento de tecnologias modernas, como aviões, automóveis e computadores, muito antes do que de fato aconteceram, alterando profundamente a história como a conhecemos.
Os organizadores Fábio Fernandes e Romeu Martins reuniram nove textos para investigar retrofuturos possíveis para o Brasil, mas sem ser muito exigente com o conceito. Há contos que sem dúvida são steampunk, mas outros têm no modelo uma relação distante ou mesmo nenhuma.
Fábio Fernandes abre a seleta com "O alferes de ferro", uma história alternativa em que Tiradentes desenvolve uma armadura de combate para enfrentar a guarda colonial e o traidor Joaquim Silvério dos Reis.
Romeu Martins participa com dois textos do policial ferroviário João Fumaça: "Tridente de Cristo" e "Modelo B". O personagem foi apresentado aos leitores no conto "Cidade Phantástica" na antologia Steampunk: Histórias de um passado extraordinário (2009, Tarja) e estas novas histórias o colocam diante de um terrorista que pretende explodir uma igreja durante um concorrido casamento no Rio de Janeiro imperial, e um automóvel a vapor de propriedade de um excêntrico milionário americano, trazido pro seu dedicado mordomo para a feira mundial no Brasil. Martins gosta de citar e fazer referências diversas a seus autores e personagens favoritos, tanto que um dos contos traz até um glossário explicitando algumas delas.
"V.E.R.N.E. e o Farol de Dover", de Dana Guedes, parece um trecho de uma história mais longa, sobre a ação de um grupo de revoltosos contra o governo opressor do Reino Unido.
Nikelen Witter apresenta, em "Uma missão para Miss Boite", uma história de mistério e espionagem que envolve uma relíquia valiosa.
"Mecanismos precários" é um poema em prosa de Luiz Brás, visto antes na coletânea Máquina Macunaíma (2013), que fala sobre relações de amor e ódio representadas na luta entre dois robôs gigantes, com doses generosas de experimentalismo literário.
"Notícias de Marte", de Sid Castro, é uma competente história alternativa com viagem no tempo, que trança narrativas separadas por um intervalo de dez anos. Em 1900, o piloto de uma aeronave da marinha se perde e vai parar num futuro em que não é bem vindo.
"O cerco de Dr. Vikare Blisset", de Jacques Barcia, se apresenta no estilo incomum de um relatório, no qual o detetive Carlos Werke enumera os crimes do famigerado ladrão de patentes Vikare Blisset.
O melhor conto da seleta é "Meus pais, os pterodáctilos", de Cirilo Lemos, com a história incrível de um jovem humano adotado por um casal de pterodáctilos, que precisa aprender a voar de qualquer maneira, caso contrário sofrerá severas consequências.
A maior parte das histórias repete as fórmulas do já clássico romance de Sterling e Gibson, e, por isso, não se sobressaem na antologia. Os que logram maior significado são justamente aqueles textos que não seguem o padrão e investem em conceitos outros, como a história alternativa e o cyberpunk.
Não é facil trazer novidades para um gênero que começou com um texto tão maduro e sofisticado como A máquina diferencial. Na verdade, nem mesmo autores estrangeiros profissionais conseguiram avançar além dele, logo, não se pode ser muito rigoroso com os autores amadores. Mas não deixa de ser uma leitura divertida para aqueles que apreciam a estética do steampunk.
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domingo, 19 de fevereiro de 2023
Insólita
Insólita: Revista Brasileira de Estudos Interdisciplinares do Insólito, da Fantasia e do Imaginário é um periódico acadêmico dedicado aos estudos do fantástico.
Editado por Laura Loguercio Cánepa, Nara Lya Cabral Scabin e Genio de Paulo Alves Nascimento através da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (PPGCOM-UAM), teve seu prim eiro número lançado em 2021, com periodicidade semestral.
Como toda publicação acadêmica, Insólita apresenta artigos e ensaios científicos, mas também traz entrevistas com personalidades do meio, além de poemas que ilustram os volumes.
Em julho de 2022, a publicação chegou ao quarto número que, em 118 páginas, publica o dossiê "Mídias sonoras, narrativas e imaginário", organizado por Daniel Gambaro, o artigo "Ficção científica, mortes e viagens intergaláticas: narrativa fantástica e estilo insólito na série de animação The midnight gospel", de Ana Catarine Mendes da Silva e João Paulo Hergesel; resenha de Emanuelli da Silva Monsores e Ellen Alves Lima ao livro Drácula: O vampiro camaleônico (2014), de Yuri Garcia, entrevista com o pesquisador, produtor e cineasta Fabiano Pereira com Rodrigo Areias; e o poema "Parede do banheiro", de Francisco Gabriel Garcia, que também assina a ilustração da capa.
A edição pode ser acessada aqui, para leitura e download gratuitos. As edições anteriores também estão disponíveis.
Editado por Laura Loguercio Cánepa, Nara Lya Cabral Scabin e Genio de Paulo Alves Nascimento através da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (PPGCOM-UAM), teve seu prim eiro número lançado em 2021, com periodicidade semestral.
Como toda publicação acadêmica, Insólita apresenta artigos e ensaios científicos, mas também traz entrevistas com personalidades do meio, além de poemas que ilustram os volumes.
Em julho de 2022, a publicação chegou ao quarto número que, em 118 páginas, publica o dossiê "Mídias sonoras, narrativas e imaginário", organizado por Daniel Gambaro, o artigo "Ficção científica, mortes e viagens intergaláticas: narrativa fantástica e estilo insólito na série de animação The midnight gospel", de Ana Catarine Mendes da Silva e João Paulo Hergesel; resenha de Emanuelli da Silva Monsores e Ellen Alves Lima ao livro Drácula: O vampiro camaleônico (2014), de Yuri Garcia, entrevista com o pesquisador, produtor e cineasta Fabiano Pereira com Rodrigo Areias; e o poema "Parede do banheiro", de Francisco Gabriel Garcia, que também assina a ilustração da capa.
A edição pode ser acessada aqui, para leitura e download gratuitos. As edições anteriores também estão disponíveis.
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Resenha do Almanaque: Cristoferus, Henrique Flory
Cristoferus, Henrique Flory. 100 páginas. Capa de Carlos Alonso Corvalon Soto. Edições GRD, São Paulo, 1992.
A Segunda Onda de Ficção Científica Brasileira teve um caráter muito mais amador do que profissional. E isso não é juízo de valor, mas apenas uma constatação acadêmica. A maior parte da produção dessa geração de autores estava restrita a publicações amadoras, periódicos editados e lidos apenas por fanáticos pelo gênero – os chamados fanzines – que prosperaram naqueles tempos pré-internet. Mesmo porque o processo de publicação de um livro era uma ciência hermética, domínio exclusivo das editoras estabelecidas; a maior parte dos autores sequer sabia por onde começar. Havia quem tentasse, mas eram casos raros e, quase sempre, não passavam das primeiras tentativas devido a dificuldades em recuperar o capital investido.
O então jovem escritor Henrique Vilibor Flory não queria esperar por uma chance que talvez nunca viesse, tampouco estava satisfeito em ver seus escritos apenas nas páginas mal impressas dos fanzines. Sua estratégia foi brilhante.
Em primeiro lugar, procurou pelo mais respeitado e acessível editor de ficção científica do país, Gumercindo Rocha Dorea, proprietário da Edições GRD que, na época, havia se aproximado do fandom paulista e ensaiava a volta de sua histórica coleção. A ele Flory propôs uma parceria irrecusável, financiando a produção de seu livro e tomando a tiragem para vender ele mesmo em palestras que passou a ministrar nos cursinhos pré-vestibulares e faculdades. E foi desse modo que, contrariando todos os paradigmas, Flory esgotou a tiragem de seu primeiro livro, a boa coletânea Só sei que não vou por aí (1989) pois, além de tudo, escrevia muito bem. O sucesso foi tanto que, em 1991, a mesma GRD republicaria o livro, agora com o título de A pedra que canta e outras histórias. Entre os dois, Flory ainda publicaria em 1990, por sua própria empresa, a HVF Representações, o romance de ficção científica Projeto Evolução.
Antecipando o interesse pela passagem dos quinhentos anos do descobrimento da América, Flory redigiu Cristoferus, uma alegoria à vida e obra do navegador genovês Cristóvão Colombo, que também veio a público pela Edições GRD, em 1992.
Trata-se de uma novela de ficção científica bastante adequada, pois a aventura espacial guarda grandes similaridades com as navegações do século XVI. O conceito não era inédito, muitos autores estrangeiros já o haviam utilizado de forma similar e é provável que Flory, como bom conhecedor do gênero, tenha se inspirado em alguns deles.
Em Cristoferus, Colombo é Cristóvão Colón, nascido na estação orbital Genoa. Romântico e determinado, quer ser navegador e acaba embarcando numa espaçonave na qual passa muitos anos em velocidades relativísticas. Seu irmão Bartolomeu vai para Lisgan, no planeta Lusitan, onde se estabelece como um bem sucedido cartógrafo. Os navegantes lusos estavam tentando chegar até as Índias, sem sucesso, por um longo caminho que passava pelo insuperável Cabo das Tormentas, uma vez que a rota original estava barrada pelo domínio mouro nas regiões intermediárias do espaço. Bartolomeu acredita que talvez fosse mais fácil ir diretamente pelo centro da galáxia, mas havia um poderoso buraco negro no caminho e esse era um problema que o cartógrafo não sabia como resolver. O fato é que quem descobrisse uma rota segura para as Índias certamente ficaria rico.
Os irmãos veem-se novamente juntos quando a nave de Cristóvão é abatida por um ataque mouro próximo a Lusitan. Cristóvão recupera-se de seus ferimentos graças a uma valiosíssima clonagem que Bartolomeu adquire para ele, e ambos passam a trabalhar em uma teoria ousada para superar o perigoso do buraco negro. Motivado pela dívida que sente para com o irmão, Cristóvão empreende uma verdadeira peregrinação em busca de financiamento para uma expedição que comprove sua técnica temerária. Tudo parece que vai se resolver quando chega a notícia que o navegante Bartolomeu Dias conseguira, enfim superar as dificuldades no temido Cabo das Tormentas e chegara à Índia, o que reduziu a praticamente nada as chances de Cristóvão realizar seu sonho e devolver ao seu irmão a imortalidade perdida. O final desta história não é preciso que eu conte, pois estamos aqui para testemunhá-la.
Cristoferus tem todos os elementos para um romance sofisticado e empolgante, mas foi resolvido de uma forma demasiado ligeira. O drama e o desespero de Cristóvão Colón não chegam a atingir o leitor com toda a força, pois a narrativa não o envolve. Há um grande distanciamento causado pela combinação mal cozida de referências históricas explícitas com a ambientação de ficção científica, gênero que exige uma certa cumplicidade do leitor para superar a descrença. Mesmo assim, o livro foi reconhecido pelos leitores brasileiros que o agraciaram com o Prêmio Nova de Melhor Livro Nacional de FC de 1992, com o que Flory praticamente encerrou sua carreira como autor do gênero.
Parafraseando as palavras finais do próprio romance: para o bem ou para o mal, Cristoferus conquistou a imortalidade. E é por isso que ele está aqui.
A Segunda Onda de Ficção Científica Brasileira teve um caráter muito mais amador do que profissional. E isso não é juízo de valor, mas apenas uma constatação acadêmica. A maior parte da produção dessa geração de autores estava restrita a publicações amadoras, periódicos editados e lidos apenas por fanáticos pelo gênero – os chamados fanzines – que prosperaram naqueles tempos pré-internet. Mesmo porque o processo de publicação de um livro era uma ciência hermética, domínio exclusivo das editoras estabelecidas; a maior parte dos autores sequer sabia por onde começar. Havia quem tentasse, mas eram casos raros e, quase sempre, não passavam das primeiras tentativas devido a dificuldades em recuperar o capital investido.
O então jovem escritor Henrique Vilibor Flory não queria esperar por uma chance que talvez nunca viesse, tampouco estava satisfeito em ver seus escritos apenas nas páginas mal impressas dos fanzines. Sua estratégia foi brilhante.
Em primeiro lugar, procurou pelo mais respeitado e acessível editor de ficção científica do país, Gumercindo Rocha Dorea, proprietário da Edições GRD que, na época, havia se aproximado do fandom paulista e ensaiava a volta de sua histórica coleção. A ele Flory propôs uma parceria irrecusável, financiando a produção de seu livro e tomando a tiragem para vender ele mesmo em palestras que passou a ministrar nos cursinhos pré-vestibulares e faculdades. E foi desse modo que, contrariando todos os paradigmas, Flory esgotou a tiragem de seu primeiro livro, a boa coletânea Só sei que não vou por aí (1989) pois, além de tudo, escrevia muito bem. O sucesso foi tanto que, em 1991, a mesma GRD republicaria o livro, agora com o título de A pedra que canta e outras histórias. Entre os dois, Flory ainda publicaria em 1990, por sua própria empresa, a HVF Representações, o romance de ficção científica Projeto Evolução.
Antecipando o interesse pela passagem dos quinhentos anos do descobrimento da América, Flory redigiu Cristoferus, uma alegoria à vida e obra do navegador genovês Cristóvão Colombo, que também veio a público pela Edições GRD, em 1992.
Trata-se de uma novela de ficção científica bastante adequada, pois a aventura espacial guarda grandes similaridades com as navegações do século XVI. O conceito não era inédito, muitos autores estrangeiros já o haviam utilizado de forma similar e é provável que Flory, como bom conhecedor do gênero, tenha se inspirado em alguns deles.
Em Cristoferus, Colombo é Cristóvão Colón, nascido na estação orbital Genoa. Romântico e determinado, quer ser navegador e acaba embarcando numa espaçonave na qual passa muitos anos em velocidades relativísticas. Seu irmão Bartolomeu vai para Lisgan, no planeta Lusitan, onde se estabelece como um bem sucedido cartógrafo. Os navegantes lusos estavam tentando chegar até as Índias, sem sucesso, por um longo caminho que passava pelo insuperável Cabo das Tormentas, uma vez que a rota original estava barrada pelo domínio mouro nas regiões intermediárias do espaço. Bartolomeu acredita que talvez fosse mais fácil ir diretamente pelo centro da galáxia, mas havia um poderoso buraco negro no caminho e esse era um problema que o cartógrafo não sabia como resolver. O fato é que quem descobrisse uma rota segura para as Índias certamente ficaria rico.
Os irmãos veem-se novamente juntos quando a nave de Cristóvão é abatida por um ataque mouro próximo a Lusitan. Cristóvão recupera-se de seus ferimentos graças a uma valiosíssima clonagem que Bartolomeu adquire para ele, e ambos passam a trabalhar em uma teoria ousada para superar o perigoso do buraco negro. Motivado pela dívida que sente para com o irmão, Cristóvão empreende uma verdadeira peregrinação em busca de financiamento para uma expedição que comprove sua técnica temerária. Tudo parece que vai se resolver quando chega a notícia que o navegante Bartolomeu Dias conseguira, enfim superar as dificuldades no temido Cabo das Tormentas e chegara à Índia, o que reduziu a praticamente nada as chances de Cristóvão realizar seu sonho e devolver ao seu irmão a imortalidade perdida. O final desta história não é preciso que eu conte, pois estamos aqui para testemunhá-la.
Cristoferus tem todos os elementos para um romance sofisticado e empolgante, mas foi resolvido de uma forma demasiado ligeira. O drama e o desespero de Cristóvão Colón não chegam a atingir o leitor com toda a força, pois a narrativa não o envolve. Há um grande distanciamento causado pela combinação mal cozida de referências históricas explícitas com a ambientação de ficção científica, gênero que exige uma certa cumplicidade do leitor para superar a descrença. Mesmo assim, o livro foi reconhecido pelos leitores brasileiros que o agraciaram com o Prêmio Nova de Melhor Livro Nacional de FC de 1992, com o que Flory praticamente encerrou sua carreira como autor do gênero.
Parafraseando as palavras finais do próprio romance: para o bem ou para o mal, Cristoferus conquistou a imortalidade. E é por isso que ele está aqui.
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sábado, 18 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: Asilo nas Torres, Ruth Bueno
Asilo nas Torres, Ruth Bueno. 152 páginas. Coleção Autores Brasileiros, nº 38, Editora Ática, São Paulo, 1979.
O período entre 1975 e 1982, aproximadamente, é tido como perdido para a ficção fantástica brasileira, quando o gênero entrou numa hibernação que só terminaria com o surgimento dos fã-clubes e fanzines dedicados ao tema, quando despontou uma nova geração de fãs e autores que desconhecia totalmente aquelas que a antecederam. Desde então, a restauração dessa memória tem sido trabalho de muitos especialistas e muito já foi recuperado. Mas aquele período, em especial, ainda parece uma falha na evolução do gênero no país.
O Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica dedicou-se, desde o princípio, a identificar as obras históricas dos gêneros fantásticos de autores brasileiros e, aos poucos, logrou preencher lacunas que permitem observar com mais precisão a real trajetória da fc&f nativa. E o que se percebe é que não houve, de fato, uma estagnação naqueles oito anos.
Obras de grande vigor e criatividade foram publicadas naquele período, porém uma coisa realmente se deu: os autores que as escreveram não estavam vinculados ao fandom anterior – chamado de Primeira Onda ou Geração GRD –, nem se vincularam depois à dita Segunda Onda, surgida nos fanzines. Eram, geralmente, autores experientes, de carreira feita, que ousaram adotar o gênero para estabelecer algum tipo de reflexão política e social que os anos de chumbo esforçavam-se em obliterar.
São desse período, por exemplo, O necrológico, de Vitor Giudice (1972), Sombra dos reis barbudos, de José J. Veiga (1972), Fazenda modelo, de Chico Buarque (1974), Catatau, de Paulo Leminski (1975), O fruto do vosso ventre, de Herberto Salles (1976), As mulheres dos cabelos de metal, de Cassandra Rios (1976), A invasão, de José Antônio Severo (1979), Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (1981), Mistérios, de Lygia Fagundes Telles (1981), entre outros. Ou seja, aqueles "anos perdidos", na verdade, revelaram algumas das mais importantes obras da ficção fantástica nacional. E entre elas figura também o objeto desta resenha, Asilo nas Torres, de Ruth Bueno, publicado em 1979.
Ruth Bueno é a assinatura literária de Ruth Maria Barbosa Goulart Bueno (1925-1985). Mineira de Juiz de Fora, ficcionista, poetisa, ensaísta, advogada e professora de Direito, sua estreia na literatura aconteceu em 1966 com a coletânea de contos e poemas Diário das máscaras. Escreveu ficção e ensaios, dedicando-se a causas feministas em obras que tratam principalmente do desamor e da busca pelo auto-conhecimento. Sua última publicação foi O livro de Auta, de 1984.
Asilo nas Torres é uma novela alegórica, absurdista e distópica, curiosamente instalada num planeta Saturno que não o é. Lá, habita um povo de comportamento individualista e desiludido, que vive em função das Torres, três edifícios públicos gigantescos que concentram o trabalho burocrático da sociedade. Na mais alta das torres, num andar acima das nuvens, mora o Rei que quase nunca se mostra, mas concentra grande poder político.
As Torres são extremamente hierarquizadas e, como em qualquer repartição pública, os amigos do Rei são sempre favorecidos. Elas são alimentadas por máquinas barulhentas, mas delicadas, que precisam de temperaturas baixas para funcionar a contento. Por isso, o ar no interior das Torres é mantido bem gelado, de forma que todos os que nelas trabalham precisam estar sempre bem agasalhados.
Os trabalhadores, chamados de asilados, têm uma relação de amor e ódio com as Torres, pois o ambiente externo, aprazível e pastoral, com arco-íris decorando o céu a cada crepúsculo, despertam o desejo de liberdade. Mas como o asilo nas Torres é a única forma de garantir o sustento, elas acabam sendo, para eles, mais reais que o belo mundo que as cerca.
As Torres foram construídas em meio a um descampado, cercadas por grades e muros. Mantêm-se em constante trabalho de ampliação, para acomodar o crescente contingente de asilados. De alturas diferentes entre si, são branquíssimas como tudo mais a volta, incluindo as onipresentes iúcas, plantas decorativas de flores muito brancas.
Os asilados, anônimos e nomeados apenas pela letra inicial de seus nomes, relacionam-se de forma doentia e desesperada, utilizando toda a sorte de artimanhas para manterem seus postos de trabalho e a influência que julgam ter. Amigos do rei exploram seus amigos, estes exploram os chefes de setor que exploram seus subordinados; homens exploram mulheres etc. O ambiente burocrático favorece a evolução de situações bizarras, como trabalhadores que passam a vida toda realizando tarefas inúteis, sem que ninguém, nem os próprios, se aperceba disso. Mesmo as eventuais falhas no serviço de energia não conseguem mudar a rotina tirânica dos asilados, rigidamente controlada pelo relógio.
Duas mulheres polarizam a narrativa, as únicas com nomes. Salomé, sempre envolta em véus e acompanhada de um séquito de harpias, é uma bruxa cruel que domina os ventos e as artes da alquimia. E Assunta, mulher simples que leva a vida de forma discreta e esperançosa. Nem mesmo elas têm controle sobre as próprias vidas. Cada uma, a seu modo, é escrava das Torres, como todos os asilados.
Mas algo mais não vai bem. Filetes de água cristalina irrompem, sem explicação, nas paredes de concreto das Torres, em locais onde não há nenhum encanamento. Como os técnicos não conseguem identificar problema, a vida nas Torres segue inalterada. Contudo, serão a pista para a definição dos destinos dos asilados, suas Torres e principalmente de Salomé e Assunta, num desfecho dramático e simbólico.
A narrativa da novela é multifacetada, construída através de relatos breves e aleatórios de situações cotidianas dentro e ao redor das Torres, entremeados por trechos de versículos bíblicos. Ruth Bueno investe fortemente nas relações interpessoais, com surpreendentes inserções de um erotismo quase pornográfico.
Ainda que a novela seja curta – apenas 150 páginas – e o texto leve, a leitura é difícil e dolorida, embora não chegue a ser depressiva. Os episódios encadeados amarram-se frouxamente e só um certo distanciamento, obtido com uma leitura de pelo menos três quartos do texto total, consegue revelar uma imagem mais clara.
A ensaísta Cristina Guzzo diz, no verbete dedicado à Ruth Bueno em Latin american science fiction writers: An A-to-Z guide (página 41), que "há um paralelo claro na novela entre a cidade ficcional criada em Saturno e a fundação histórica da moderna cidade de Brasília, a nova capital do Brasil construída nos anos 1960 em meio a floresta". E conclui: "A novela está perfeitamente adaptada ao contexto brasileiro, ajudando a fazer dela um dos melhores exemplo da ficção científica escrita no Brasil".
O período entre 1975 e 1982, aproximadamente, é tido como perdido para a ficção fantástica brasileira, quando o gênero entrou numa hibernação que só terminaria com o surgimento dos fã-clubes e fanzines dedicados ao tema, quando despontou uma nova geração de fãs e autores que desconhecia totalmente aquelas que a antecederam. Desde então, a restauração dessa memória tem sido trabalho de muitos especialistas e muito já foi recuperado. Mas aquele período, em especial, ainda parece uma falha na evolução do gênero no país.
O Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica dedicou-se, desde o princípio, a identificar as obras históricas dos gêneros fantásticos de autores brasileiros e, aos poucos, logrou preencher lacunas que permitem observar com mais precisão a real trajetória da fc&f nativa. E o que se percebe é que não houve, de fato, uma estagnação naqueles oito anos.
Obras de grande vigor e criatividade foram publicadas naquele período, porém uma coisa realmente se deu: os autores que as escreveram não estavam vinculados ao fandom anterior – chamado de Primeira Onda ou Geração GRD –, nem se vincularam depois à dita Segunda Onda, surgida nos fanzines. Eram, geralmente, autores experientes, de carreira feita, que ousaram adotar o gênero para estabelecer algum tipo de reflexão política e social que os anos de chumbo esforçavam-se em obliterar.
São desse período, por exemplo, O necrológico, de Vitor Giudice (1972), Sombra dos reis barbudos, de José J. Veiga (1972), Fazenda modelo, de Chico Buarque (1974), Catatau, de Paulo Leminski (1975), O fruto do vosso ventre, de Herberto Salles (1976), As mulheres dos cabelos de metal, de Cassandra Rios (1976), A invasão, de José Antônio Severo (1979), Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão (1981), Mistérios, de Lygia Fagundes Telles (1981), entre outros. Ou seja, aqueles "anos perdidos", na verdade, revelaram algumas das mais importantes obras da ficção fantástica nacional. E entre elas figura também o objeto desta resenha, Asilo nas Torres, de Ruth Bueno, publicado em 1979.
Ruth Bueno é a assinatura literária de Ruth Maria Barbosa Goulart Bueno (1925-1985). Mineira de Juiz de Fora, ficcionista, poetisa, ensaísta, advogada e professora de Direito, sua estreia na literatura aconteceu em 1966 com a coletânea de contos e poemas Diário das máscaras. Escreveu ficção e ensaios, dedicando-se a causas feministas em obras que tratam principalmente do desamor e da busca pelo auto-conhecimento. Sua última publicação foi O livro de Auta, de 1984.
Asilo nas Torres é uma novela alegórica, absurdista e distópica, curiosamente instalada num planeta Saturno que não o é. Lá, habita um povo de comportamento individualista e desiludido, que vive em função das Torres, três edifícios públicos gigantescos que concentram o trabalho burocrático da sociedade. Na mais alta das torres, num andar acima das nuvens, mora o Rei que quase nunca se mostra, mas concentra grande poder político.
As Torres são extremamente hierarquizadas e, como em qualquer repartição pública, os amigos do Rei são sempre favorecidos. Elas são alimentadas por máquinas barulhentas, mas delicadas, que precisam de temperaturas baixas para funcionar a contento. Por isso, o ar no interior das Torres é mantido bem gelado, de forma que todos os que nelas trabalham precisam estar sempre bem agasalhados.
Os trabalhadores, chamados de asilados, têm uma relação de amor e ódio com as Torres, pois o ambiente externo, aprazível e pastoral, com arco-íris decorando o céu a cada crepúsculo, despertam o desejo de liberdade. Mas como o asilo nas Torres é a única forma de garantir o sustento, elas acabam sendo, para eles, mais reais que o belo mundo que as cerca.
As Torres foram construídas em meio a um descampado, cercadas por grades e muros. Mantêm-se em constante trabalho de ampliação, para acomodar o crescente contingente de asilados. De alturas diferentes entre si, são branquíssimas como tudo mais a volta, incluindo as onipresentes iúcas, plantas decorativas de flores muito brancas.
Os asilados, anônimos e nomeados apenas pela letra inicial de seus nomes, relacionam-se de forma doentia e desesperada, utilizando toda a sorte de artimanhas para manterem seus postos de trabalho e a influência que julgam ter. Amigos do rei exploram seus amigos, estes exploram os chefes de setor que exploram seus subordinados; homens exploram mulheres etc. O ambiente burocrático favorece a evolução de situações bizarras, como trabalhadores que passam a vida toda realizando tarefas inúteis, sem que ninguém, nem os próprios, se aperceba disso. Mesmo as eventuais falhas no serviço de energia não conseguem mudar a rotina tirânica dos asilados, rigidamente controlada pelo relógio.
Duas mulheres polarizam a narrativa, as únicas com nomes. Salomé, sempre envolta em véus e acompanhada de um séquito de harpias, é uma bruxa cruel que domina os ventos e as artes da alquimia. E Assunta, mulher simples que leva a vida de forma discreta e esperançosa. Nem mesmo elas têm controle sobre as próprias vidas. Cada uma, a seu modo, é escrava das Torres, como todos os asilados.
Mas algo mais não vai bem. Filetes de água cristalina irrompem, sem explicação, nas paredes de concreto das Torres, em locais onde não há nenhum encanamento. Como os técnicos não conseguem identificar problema, a vida nas Torres segue inalterada. Contudo, serão a pista para a definição dos destinos dos asilados, suas Torres e principalmente de Salomé e Assunta, num desfecho dramático e simbólico.
A narrativa da novela é multifacetada, construída através de relatos breves e aleatórios de situações cotidianas dentro e ao redor das Torres, entremeados por trechos de versículos bíblicos. Ruth Bueno investe fortemente nas relações interpessoais, com surpreendentes inserções de um erotismo quase pornográfico.
Ainda que a novela seja curta – apenas 150 páginas – e o texto leve, a leitura é difícil e dolorida, embora não chegue a ser depressiva. Os episódios encadeados amarram-se frouxamente e só um certo distanciamento, obtido com uma leitura de pelo menos três quartos do texto total, consegue revelar uma imagem mais clara.
A ensaísta Cristina Guzzo diz, no verbete dedicado à Ruth Bueno em Latin american science fiction writers: An A-to-Z guide (página 41), que "há um paralelo claro na novela entre a cidade ficcional criada em Saturno e a fundação histórica da moderna cidade de Brasília, a nova capital do Brasil construída nos anos 1960 em meio a floresta". E conclui: "A novela está perfeitamente adaptada ao contexto brasileiro, ajudando a fazer dela um dos melhores exemplo da ficção científica escrita no Brasil".
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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023
A nova mãe
Desde 2020 que a Editora Wish mantém no Catarse a coleção Sociedade das Relíquias Literárias, uma campanha recorrente para financiar a tradução e a publicação de textos raros de ficção fantástica, resgatando assim obras desconhecidas de autores em domínio público.
A edição de fevereiro de 2023 é a novela A nova mãe, de Lucy Clifford, originalmente publicada em 1882, com tradução de Carol Chiovatto. A peça é reputada como principal inspiração de Neil Gaiman para a novela Coraline. Diz o texto de apresentação: "Olho Azul e Peru são duas garotinhas tão curiosas quanto seus nomes. Sua mãe as envia para a cidade para verificarem se receberam alguma carta do pai, que está no mar. No caminho, encontram uma menina estranha que esconde uma caixa secreta. Só que as garotinhas são boazinhas demais para ter acesso ao conteúdo. Para poderem ver as pessoinhas dançando dentro da caixa e ouvir seus segredos, precisam ser malvadas."
A assinatura, a partir de R$8,00 por mês, dá ao apoiador, entre outras coisas interessantes, o direito de receber um novo ebook a cada mês (disponível nos formatos epub, mobi e pdf).
A edição de fevereiro de 2023 é a novela A nova mãe, de Lucy Clifford, originalmente publicada em 1882, com tradução de Carol Chiovatto. A peça é reputada como principal inspiração de Neil Gaiman para a novela Coraline. Diz o texto de apresentação: "Olho Azul e Peru são duas garotinhas tão curiosas quanto seus nomes. Sua mãe as envia para a cidade para verificarem se receberam alguma carta do pai, que está no mar. No caminho, encontram uma menina estranha que esconde uma caixa secreta. Só que as garotinhas são boazinhas demais para ter acesso ao conteúdo. Para poderem ver as pessoinhas dançando dentro da caixa e ouvir seus segredos, precisam ser malvadas."
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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023
Mystério Retrô 13
Editada por Tito Prates, a revista Mystério Retrô é um periódico literário distribuído em formato impresso e viabilizado através de financiamento direto dos assinantes na plataforma Catarse. Sua linha editorial prioriza a literatura de mistério, mas mantém um flerte com o fantástico.
Até 17 de março, ficará aberta a campanha da edição número 13, que traz contos de Anne van dem Bedum, Amilton Alves, Arthur Moraes, Ana Lúcia Merege, Tessa Oliver, David Leite, Renato Dutra, Júlia do Passo Ramalho, Vitor Galdino, Mia Sardini, além de artigos de Luciano Reis sobre os mistérios de Machado de Assis, Renato Dutra sobre as crianças em Stephen King, e Chrystal Siqueira sobre os venenos em Agatha Christie. Um diferencial importante das campanhas da Mystério Retrô é a entrega imediata, uma vez que a revista já está impressa.
Mystério Retrô 13 pode ser adquirido aqui. Também há ofertas para aquisição de combos e até da coleção completa.
Até 17 de março, ficará aberta a campanha da edição número 13, que traz contos de Anne van dem Bedum, Amilton Alves, Arthur Moraes, Ana Lúcia Merege, Tessa Oliver, David Leite, Renato Dutra, Júlia do Passo Ramalho, Vitor Galdino, Mia Sardini, além de artigos de Luciano Reis sobre os mistérios de Machado de Assis, Renato Dutra sobre as crianças em Stephen King, e Chrystal Siqueira sobre os venenos em Agatha Christie. Um diferencial importante das campanhas da Mystério Retrô é a entrega imediata, uma vez que a revista já está impressa.
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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls
A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls. Publicado originalmente em 1925. Edição utilizada: Edição Saraiva, Coleção Saraiva nº 115, 1957. 240 páginas. Apresentação de Adonias Filho. Capa: Nico Rosso.
A Amazônia misteriosa é um desses raros encontros entre a qualidade narrativa e o conhecimento científico detalhado sobre determinado assunto, no caso, as terras, gentes e costumes dos povos brasileiros.
Este romance, do escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959), foi instalado nas profundezas da selva amazônica, um dos mais interessantes cenários da fc&f brasileira, que serviu de tabuleiro para diversos outros romances. Contudo, nenhum deles supera o de Cruls em pujança e detalhamento, tão farto que o autor julgou apropriado acrescentar-lhe um glossário, ou "Elucidário", para explicar os nomes e termos usados ao longo da história.
O primeiro capítulo do romance são as páginas finais de um diário de viagem, cujo autor chamado durante toda a história apenas como "Seu Doutor", narra os últimos progressos de uma expedição científica à floresta amazônica. O autor não se contém em apresentar o lugar como um verdadeiro paraíso, repleto de vida, beleza e perigos. Com ele viaja um pequeno grupo de homens, especializados nos perigos de uma incursão desse tipo.
A partir do segundo capítulo, o formato de diário é abandonado e assume uma narrativa mais dinâmica, em primeira pessoa. Durante uma das expedições em busca de alimento, o narrador, acompanhado dos mateiros Piauí e Pacatuba, perdem-se do grupo principal e, depois de errar na mata por alguns dias, são capturados por índios que os levam numa longa caminhada pela mata. A certa altura, Piauí é acometido de uma febre e, em delírio, acaba desaparecendo na mata, para não ser mais visto. Os dois sobreviventes são levados para uma outra tribo, que o narrador vai logo identificar como sendo a aldeia das lendárias amazonas.
Para surpresa do Seu Doutor, vivem com elas alguns estrangeiros: um pesquisador alemão chamado Jacob Hartmann, que ali desenvolve algum tipo de pesquisa secreta, a jovem francesa Rosina esposa de Hartmann, e uns poucos homens de pouca relevância na trama. A índia Malila é encarregada de cuidar dos recém chegados e acaba por desenvolver por eles uma afetividade importante. Também será significativa a figura de Rosina, que se ressente da condição de exilada na selva e do casamento infeliz com o frio cientista, e com a qual Seu Doutor vai desenvolver um relacionamento perigoso.
A princípio, porém, a vida dos dois homens na aldeia da amazonas não é desagradável. Alimentados, bem tratados e na esperança de retornar a civilização, eles passam a explorar a aldeia, conhecendo seus costumes e suas histórias. Num ritual, o narrador toma uma bebida narcótica e faz uma viagem ao tempo dos incas, às antigas metrópoles de Cuzco e Quito, no auge dessa civilização. É, sem dúvida, o trecho de maior maravilhamento do romance.
Curioso sobre os segredos da pesquisa de Hartmann, Seu Doutor espiona o laboratório improvisado numa área reservada da aldeia e fica horrorizado com o que descobre: crianças deformadas, mantidas em jaulas como animais. Ao confrontar o alemão, este lhe explica que é um importante geneticista que chegou ao limite de suas pesquisas sobre afasia, um mal que causa a perda das habilidades de linguagem falada e escrita. Entre os silvícolas, pode dar prosseguimento aos experimentos em seres humanos, especialmente entre as amazonas que desprezam os filhos homens. Também aproveitou para realizar experiências relacionadas ao crescimento, conseguindo dessa forma homens minúsculos e gigantes, bem como o cruzamento entre espécies. Inescrupuloso, Hartmann decide manter os homens presos por mais tempo e acha muito útil até, pois poderá usar o Seu Doutor como cobaia nos estudos mais conclusivos, o que vai levá-lo a tomar atitudes práticas para preservar sua própria integridade e salvar seu companheiro Pacatuba, bem como a apaixonada Rosina, de um destino incerto nas mãos do alemão.
Filho de um importante médico e cientista, Gastão Cruls foi revelado na Revista do Brasil, editada por Monteiro Lobato. Se primeiro livro foi a coletânea Coivara, e também são de sua autoria os romances Elza e Helena, A Criação e o Criador, Vertigem, e outros. A Amazônia misteriosa foi sua incursão na ficção científica e é geralmente associada pelos críticos à obra de Edgar Alan Poe. Entretanto, parece mais claramente inserida na tradição do romance científico de Júlio Verne.
Cruls não tentou escamotear outras influências e citou, textualmente, os romances A ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells, e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, no que fez muio bem. Pois em pleno 1925, compôs de forma primorosa ambas as propostas do nascente gênero da ficção científica, unindo o relato científico de Verne à fantasia de Wells, e aproveitando ainda as ideias modernistas que estavam em ebulição na literatura brasileira.
O significado de A Amazônia misteriosa para a ficção científica brasileira é incomparável, pois o romance aglutina de forma primorosa um leque de propostas que ainda hoje estão em debate, num romance sofisticado cujas qualidades narrativas estão vários pontos acima da média. Se traduzido hoje no mercado estrangeiro, o romance certamente atrairia a atenção, não só pelo seu caráter exótico e pela sua qualidade literária, mas porque os estrangeiros estão ávidos por este tipo de história, que boa parte dos autores nacionais de fc&f ainda insistem em desprezar.
A Amazônia misteriosa é um desses raros encontros entre a qualidade narrativa e o conhecimento científico detalhado sobre determinado assunto, no caso, as terras, gentes e costumes dos povos brasileiros.
Este romance, do escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959), foi instalado nas profundezas da selva amazônica, um dos mais interessantes cenários da fc&f brasileira, que serviu de tabuleiro para diversos outros romances. Contudo, nenhum deles supera o de Cruls em pujança e detalhamento, tão farto que o autor julgou apropriado acrescentar-lhe um glossário, ou "Elucidário", para explicar os nomes e termos usados ao longo da história.
O primeiro capítulo do romance são as páginas finais de um diário de viagem, cujo autor chamado durante toda a história apenas como "Seu Doutor", narra os últimos progressos de uma expedição científica à floresta amazônica. O autor não se contém em apresentar o lugar como um verdadeiro paraíso, repleto de vida, beleza e perigos. Com ele viaja um pequeno grupo de homens, especializados nos perigos de uma incursão desse tipo.
A partir do segundo capítulo, o formato de diário é abandonado e assume uma narrativa mais dinâmica, em primeira pessoa. Durante uma das expedições em busca de alimento, o narrador, acompanhado dos mateiros Piauí e Pacatuba, perdem-se do grupo principal e, depois de errar na mata por alguns dias, são capturados por índios que os levam numa longa caminhada pela mata. A certa altura, Piauí é acometido de uma febre e, em delírio, acaba desaparecendo na mata, para não ser mais visto. Os dois sobreviventes são levados para uma outra tribo, que o narrador vai logo identificar como sendo a aldeia das lendárias amazonas.
Para surpresa do Seu Doutor, vivem com elas alguns estrangeiros: um pesquisador alemão chamado Jacob Hartmann, que ali desenvolve algum tipo de pesquisa secreta, a jovem francesa Rosina esposa de Hartmann, e uns poucos homens de pouca relevância na trama. A índia Malila é encarregada de cuidar dos recém chegados e acaba por desenvolver por eles uma afetividade importante. Também será significativa a figura de Rosina, que se ressente da condição de exilada na selva e do casamento infeliz com o frio cientista, e com a qual Seu Doutor vai desenvolver um relacionamento perigoso.
A princípio, porém, a vida dos dois homens na aldeia da amazonas não é desagradável. Alimentados, bem tratados e na esperança de retornar a civilização, eles passam a explorar a aldeia, conhecendo seus costumes e suas histórias. Num ritual, o narrador toma uma bebida narcótica e faz uma viagem ao tempo dos incas, às antigas metrópoles de Cuzco e Quito, no auge dessa civilização. É, sem dúvida, o trecho de maior maravilhamento do romance.
Curioso sobre os segredos da pesquisa de Hartmann, Seu Doutor espiona o laboratório improvisado numa área reservada da aldeia e fica horrorizado com o que descobre: crianças deformadas, mantidas em jaulas como animais. Ao confrontar o alemão, este lhe explica que é um importante geneticista que chegou ao limite de suas pesquisas sobre afasia, um mal que causa a perda das habilidades de linguagem falada e escrita. Entre os silvícolas, pode dar prosseguimento aos experimentos em seres humanos, especialmente entre as amazonas que desprezam os filhos homens. Também aproveitou para realizar experiências relacionadas ao crescimento, conseguindo dessa forma homens minúsculos e gigantes, bem como o cruzamento entre espécies. Inescrupuloso, Hartmann decide manter os homens presos por mais tempo e acha muito útil até, pois poderá usar o Seu Doutor como cobaia nos estudos mais conclusivos, o que vai levá-lo a tomar atitudes práticas para preservar sua própria integridade e salvar seu companheiro Pacatuba, bem como a apaixonada Rosina, de um destino incerto nas mãos do alemão.
Filho de um importante médico e cientista, Gastão Cruls foi revelado na Revista do Brasil, editada por Monteiro Lobato. Se primeiro livro foi a coletânea Coivara, e também são de sua autoria os romances Elza e Helena, A Criação e o Criador, Vertigem, e outros. A Amazônia misteriosa foi sua incursão na ficção científica e é geralmente associada pelos críticos à obra de Edgar Alan Poe. Entretanto, parece mais claramente inserida na tradição do romance científico de Júlio Verne.
Cruls não tentou escamotear outras influências e citou, textualmente, os romances A ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells, e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, no que fez muio bem. Pois em pleno 1925, compôs de forma primorosa ambas as propostas do nascente gênero da ficção científica, unindo o relato científico de Verne à fantasia de Wells, e aproveitando ainda as ideias modernistas que estavam em ebulição na literatura brasileira.
O significado de A Amazônia misteriosa para a ficção científica brasileira é incomparável, pois o romance aglutina de forma primorosa um leque de propostas que ainda hoje estão em debate, num romance sofisticado cujas qualidades narrativas estão vários pontos acima da média. Se traduzido hoje no mercado estrangeiro, o romance certamente atrairia a atenção, não só pelo seu caráter exótico e pela sua qualidade literária, mas porque os estrangeiros estão ávidos por este tipo de história, que boa parte dos autores nacionais de fc&f ainda insistem em desprezar.
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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023
Lançamento: Olhando para as estrelas só vejo o passado
A Coleção Futuro Infinito, coordenada por Luiz Brás para a Editora Patuá, anuncia o lançamento de mais um volume. Trata-se de Olhando para as estrelas só vejo o passado, primeiro romance do escritor paulistano Gabriel Carneiro.
Diz o texto de divulgação: "Mantidos por um pesquisador alienígena, dois diários misteriosos – o terceiro se perdeu – expõem a insólita realidade de um planeta Terra subitamente desabitado. Abandonado. Sem humanos ou animais de nenhuma espécie. O que teria acontecido com todos os habitantes desse planeta? De que maneira interpretar o silêncio suspeito das cidades fantasmas? São essas as perguntas que o solitário visitante de outra estrela propõe, dia após dia, aos livros, filmes, discos, fotos e dezenas de outros objetos culturais que encontra em suas andanças. Mas tudo ao seu redor parece apenas desdobrar o silêncio e o mistério. O passado se recusa a revelar seu segredo. Toda informação é inconsistente, toda afirmação é duvidosa. Sinais ambíguos e enigmáticos brilham às dezenas, mantendo o exótico visitante – suas (in)certezas – prisioneiro num labirinto nada confortável de reflexos e miragens."
O evento acontece no dia 25 de fevereiro, sábado, das 17 às 22h, na Livraria Patuscada (Rua Luis Murat, 40, Pinheiros, São Paulo). O livro encontra-se em pré-venda no site da Patuá, aqui.
Diz o texto de divulgação: "Mantidos por um pesquisador alienígena, dois diários misteriosos – o terceiro se perdeu – expõem a insólita realidade de um planeta Terra subitamente desabitado. Abandonado. Sem humanos ou animais de nenhuma espécie. O que teria acontecido com todos os habitantes desse planeta? De que maneira interpretar o silêncio suspeito das cidades fantasmas? São essas as perguntas que o solitário visitante de outra estrela propõe, dia após dia, aos livros, filmes, discos, fotos e dezenas de outros objetos culturais que encontra em suas andanças. Mas tudo ao seu redor parece apenas desdobrar o silêncio e o mistério. O passado se recusa a revelar seu segredo. Toda informação é inconsistente, toda afirmação é duvidosa. Sinais ambíguos e enigmáticos brilham às dezenas, mantendo o exótico visitante – suas (in)certezas – prisioneiro num labirinto nada confortável de reflexos e miragens."
O evento acontece no dia 25 de fevereiro, sábado, das 17 às 22h, na Livraria Patuscada (Rua Luis Murat, 40, Pinheiros, São Paulo). O livro encontra-se em pré-venda no site da Patuá, aqui.
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Resenha do Almanaque: O alienista, Machado de Assis
O alienista, Machado de Assis. Originalmente publicado na coletânea Papéis avulsos (1882). Texto avaliado publicado em Contos escolhidos: Machado de Assis, seleção de Roberto Alves, Coleção Vestibular Estadão, editora Click, sem data.
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, cidade do Rio de Janeiro. Mulato, pobre, gago e epilético, ninguém naquela sociedade ainda escravocrata poderia imaginar que atingiria tal significado na cultura brasileira ao ponto de, quando de sua morte, ser enterrado com cerimônias de chefe de estado.
A ficção de Machado de Assis é brilhante em sua capacidade de transmitir os contornos da sociedade brasileira do final do século XIX, evidenciando as suas contradições de uma forma aguda e, ao mesmo tempo, acessível. Seu texto é geralmente irônico e formalmente sofisticado, porém enxuto e econômico. Em seus contos, Machado é mais identificado com a escola romântica, o que o aproxima dos temas fantásticos.
Na coletânea Papéis avulsos (1882), a novela "O alienista" trabalha muito bem os conceitos que a ficção científica viria a se ocupar mais tarde, ironizando amplamente o pensamento científico frente à contraditória estrutura sócio-política, um ótimo exemplo de soft-fiction new-wave antecipada em oitenta anos.
Nessa novela, Dr. Simão Bacamarte é um figurão na corte, respeitado pelo rei e seus súditos. Médico e pesquisador científico de alta patente, poderia ter sido o que bem quisesse com o beneplácito real, mas sua curiosidade científica o fez ir à cidade de Itaguaí, onde usou de sua influência para instalar uma clínica psiquiátrica, a primeira da cidade, num prédio grande e vistoso especialmente construído para tal fim. Pretendia o sábio Dr. Bacamarte sondar os segredos da mente humana através da observação minuciosa dos alienados e dementes de Itaguaí. A inquietação que os loucos causavam facilitou que os poderosos da cidade apoiassem a iniciativa do sábio que foi amplamente festejado, e a ele cederam plenos poderes no que se referia ao diagnóstico e tratamento dos dementes.
Recolhidos os primeiros desvirtuados mentais, começou Bacamarte a estabelecer, com métodos estritamente científicos, as muitas formas de loucura que acometiam os homens de Itaguaí, classificando-as por forma e relevância. Logo, Bacamarte percebeu que mesmo as pessoas bem socializadas podiam apresentar sintomas esquizofrênicos e, ao primeiro sinal, recolhia também esses pacientes em uma das celas de sua clínica, para estudos mais detalhados. Quando começou a deter personalidades importantes da cidade, as autoridades reagiram. Porém, a autoridade científica de Bacamarte era tamanha, que eles nada podiam fazer. A sociedade como um todo indignou-se contra a clínica e promoveu uma verdadeira revolução, aos gritos de "Morte a Simão Bacamarte". O levante foi a princípio combatido pelas autoridades constituídas, mas quando a polícia bandeou-se para o lado dos revoltosos, o governo foi dissolvido e, em seu lugar, instalado um governo revolucionário. Porém, o discurso anti-Bacamarte não resistiu sequer ao primeiro ato do novo governo que, traindo suas próprias convicções, alinhou-se ao cientista garantindo-lhe a continuidade do trabalho. Bacamarte avaliou isso como algum tipo de descontrole emocional patológico e tomou as devidas providências, recolhendo vários dos rebeldes para uma melhor avaliação do seu quadro clínico. Outras tentativas de revolução pipocaram, mas não progrediram, e o governo legal enfim retomou o poder.
A volúpia carcereira de Bacamarte não esmoreceu, ao contrário. Quando o sábio notou que três quartos da população de Itaguaí estavam detidos no seu manicômio, iluminou-lhe na mente um novo conceito: se o normal era ser louco, os verdadeiros doentes eram os que não apresentavam qualquer sintoma. Libertou todos os detidos e passou a observar os demais. Quando diagnosticava alguém como absolutamente equilibrado, detinha-o imediatamente, submetendo-o a tratamentos adequados a fim de "normalizá-lo" para o bom convívio social.
Depois de mais algum tempo, o sábio finalmente concluiu que não havia mais nenhum mentecapto em Itaguaí, e que única deformidade digna de estudos só poderia estar naquele indivíduo que fosse absoluta e perfeitamente equilibrado, exemplar do qual Simão Bacamarte só conhecia um espécime: ele mesmo. Assim, o sábio recolhe-se solitário em seu próprio manicômio, na intenção de estudar a si mesmo até descobrir uma cura adequada.
Machado estabelece em sua novela uma discussão sobre a relevância da ciência na vida do cidadão comum, a partir da iniciativa de um sábio que, da ciência, tudo sabe, mas que não tem absolutamente nenhuma empatia pela vida humana, que classifica com a mesma impessoalidade que dedicaria a um objeto qualquer. A Bacamarte importa apenas a pesquisa, pois ele tem completa convicção da relevância científica, acima de todas as coisas. Logo de saída, Machado nos conta, por exemplo, como Bacamarte selecionou sua própria esposa, considerando principalmente as qualidades físicas adequadas a uma boa procriação. Apesar da lógica perfeita, Bacamarte morreu sem filhos. Deste modo, vemos em "O alienista" a descrença de Machado na ciência e nos cientistas em especial.
Da mesma forma, o autor não economiza na crítica ao sistema governo. Os políticos eleitos comportam-se de forma fisiológica, apoiando ou opondo-se conforme as conveniências de momento. Saem de cena ao primeiro sinal de problemas e aqueles que lhe tomam o lugar, antes muito determinados, mudam imediatamente o discurso, continuando no mesmo modelo fisiológico de seus antecessores.
Muito espertamente, Machado defendeu-se de possíveis críticas na medida em que estabeleceu que toda a história do manicômio de Bacamarte em Itaguaí aconteceu muito tempo antes, possivelmente no período colonial. Mas está claro que não se trata de um épico: o autor refere-se de fato a gente de seu próprio tempo, que não deixa de ser válido ainda nos nosso dias.
Há hoje uma confiança maior nas boas intenções da ciência devido à presença massiva da tecnologia na vida das pessoas, especialmente nas grandes cidades, mas ainda é escopo importante da ficção científica antecipar os descaminhos de decisões tecnocratas e cientificistas. Neste aspecto, Machado estava sintonizado com o futuro do gênero, enquanto em seu tempo a ficção científica, ainda sem esse nome, era palco de fantasias e aventuras científicas positivistas, e assim continuaria por muito tempo.
Seria um exagero tratar Machado de Assis como um autor de ficção científica, isso ele definitivamente não foi. Seus textos eram muito variados e atendiam públicos diferentes em diversas categorias editoriais. Portanto, não é de se admirar que, em alguns momentos, tenha enviezado por esse gênero ainda nacituro, por simples sorte — ou azar, como devem pensar muitos. Contudo, não há como negar que "O alienista", uma de suas novelas mais conhecidas e características, tenha diversos pontos de contato com a ficção científica. Com certeza, um material que merece ser revisitado pela crítica acadêmica.
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, cidade do Rio de Janeiro. Mulato, pobre, gago e epilético, ninguém naquela sociedade ainda escravocrata poderia imaginar que atingiria tal significado na cultura brasileira ao ponto de, quando de sua morte, ser enterrado com cerimônias de chefe de estado.
A ficção de Machado de Assis é brilhante em sua capacidade de transmitir os contornos da sociedade brasileira do final do século XIX, evidenciando as suas contradições de uma forma aguda e, ao mesmo tempo, acessível. Seu texto é geralmente irônico e formalmente sofisticado, porém enxuto e econômico. Em seus contos, Machado é mais identificado com a escola romântica, o que o aproxima dos temas fantásticos.
Na coletânea Papéis avulsos (1882), a novela "O alienista" trabalha muito bem os conceitos que a ficção científica viria a se ocupar mais tarde, ironizando amplamente o pensamento científico frente à contraditória estrutura sócio-política, um ótimo exemplo de soft-fiction new-wave antecipada em oitenta anos.
Nessa novela, Dr. Simão Bacamarte é um figurão na corte, respeitado pelo rei e seus súditos. Médico e pesquisador científico de alta patente, poderia ter sido o que bem quisesse com o beneplácito real, mas sua curiosidade científica o fez ir à cidade de Itaguaí, onde usou de sua influência para instalar uma clínica psiquiátrica, a primeira da cidade, num prédio grande e vistoso especialmente construído para tal fim. Pretendia o sábio Dr. Bacamarte sondar os segredos da mente humana através da observação minuciosa dos alienados e dementes de Itaguaí. A inquietação que os loucos causavam facilitou que os poderosos da cidade apoiassem a iniciativa do sábio que foi amplamente festejado, e a ele cederam plenos poderes no que se referia ao diagnóstico e tratamento dos dementes.
Recolhidos os primeiros desvirtuados mentais, começou Bacamarte a estabelecer, com métodos estritamente científicos, as muitas formas de loucura que acometiam os homens de Itaguaí, classificando-as por forma e relevância. Logo, Bacamarte percebeu que mesmo as pessoas bem socializadas podiam apresentar sintomas esquizofrênicos e, ao primeiro sinal, recolhia também esses pacientes em uma das celas de sua clínica, para estudos mais detalhados. Quando começou a deter personalidades importantes da cidade, as autoridades reagiram. Porém, a autoridade científica de Bacamarte era tamanha, que eles nada podiam fazer. A sociedade como um todo indignou-se contra a clínica e promoveu uma verdadeira revolução, aos gritos de "Morte a Simão Bacamarte". O levante foi a princípio combatido pelas autoridades constituídas, mas quando a polícia bandeou-se para o lado dos revoltosos, o governo foi dissolvido e, em seu lugar, instalado um governo revolucionário. Porém, o discurso anti-Bacamarte não resistiu sequer ao primeiro ato do novo governo que, traindo suas próprias convicções, alinhou-se ao cientista garantindo-lhe a continuidade do trabalho. Bacamarte avaliou isso como algum tipo de descontrole emocional patológico e tomou as devidas providências, recolhendo vários dos rebeldes para uma melhor avaliação do seu quadro clínico. Outras tentativas de revolução pipocaram, mas não progrediram, e o governo legal enfim retomou o poder.
A volúpia carcereira de Bacamarte não esmoreceu, ao contrário. Quando o sábio notou que três quartos da população de Itaguaí estavam detidos no seu manicômio, iluminou-lhe na mente um novo conceito: se o normal era ser louco, os verdadeiros doentes eram os que não apresentavam qualquer sintoma. Libertou todos os detidos e passou a observar os demais. Quando diagnosticava alguém como absolutamente equilibrado, detinha-o imediatamente, submetendo-o a tratamentos adequados a fim de "normalizá-lo" para o bom convívio social.
Depois de mais algum tempo, o sábio finalmente concluiu que não havia mais nenhum mentecapto em Itaguaí, e que única deformidade digna de estudos só poderia estar naquele indivíduo que fosse absoluta e perfeitamente equilibrado, exemplar do qual Simão Bacamarte só conhecia um espécime: ele mesmo. Assim, o sábio recolhe-se solitário em seu próprio manicômio, na intenção de estudar a si mesmo até descobrir uma cura adequada.
Machado estabelece em sua novela uma discussão sobre a relevância da ciência na vida do cidadão comum, a partir da iniciativa de um sábio que, da ciência, tudo sabe, mas que não tem absolutamente nenhuma empatia pela vida humana, que classifica com a mesma impessoalidade que dedicaria a um objeto qualquer. A Bacamarte importa apenas a pesquisa, pois ele tem completa convicção da relevância científica, acima de todas as coisas. Logo de saída, Machado nos conta, por exemplo, como Bacamarte selecionou sua própria esposa, considerando principalmente as qualidades físicas adequadas a uma boa procriação. Apesar da lógica perfeita, Bacamarte morreu sem filhos. Deste modo, vemos em "O alienista" a descrença de Machado na ciência e nos cientistas em especial.
Da mesma forma, o autor não economiza na crítica ao sistema governo. Os políticos eleitos comportam-se de forma fisiológica, apoiando ou opondo-se conforme as conveniências de momento. Saem de cena ao primeiro sinal de problemas e aqueles que lhe tomam o lugar, antes muito determinados, mudam imediatamente o discurso, continuando no mesmo modelo fisiológico de seus antecessores.
Muito espertamente, Machado defendeu-se de possíveis críticas na medida em que estabeleceu que toda a história do manicômio de Bacamarte em Itaguaí aconteceu muito tempo antes, possivelmente no período colonial. Mas está claro que não se trata de um épico: o autor refere-se de fato a gente de seu próprio tempo, que não deixa de ser válido ainda nos nosso dias.
Há hoje uma confiança maior nas boas intenções da ciência devido à presença massiva da tecnologia na vida das pessoas, especialmente nas grandes cidades, mas ainda é escopo importante da ficção científica antecipar os descaminhos de decisões tecnocratas e cientificistas. Neste aspecto, Machado estava sintonizado com o futuro do gênero, enquanto em seu tempo a ficção científica, ainda sem esse nome, era palco de fantasias e aventuras científicas positivistas, e assim continuaria por muito tempo.
Seria um exagero tratar Machado de Assis como um autor de ficção científica, isso ele definitivamente não foi. Seus textos eram muito variados e atendiam públicos diferentes em diversas categorias editoriais. Portanto, não é de se admirar que, em alguns momentos, tenha enviezado por esse gênero ainda nacituro, por simples sorte — ou azar, como devem pensar muitos. Contudo, não há como negar que "O alienista", uma de suas novelas mais conhecidas e características, tenha diversos pontos de contato com a ficção científica. Com certeza, um material que merece ser revisitado pela crítica acadêmica.
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sábado, 11 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: O Doutor Benignus, Augusto Emílio Zaluar
O Doutor Benignus, Augusto Emílio Zaluar. Publicação original de 1875. Edição avaliada: Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1998.
Quando foi relançado em 1994 pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), O Doutor Benignus, romance de Augusto Emílio Zaluar publicado originalmente em 1875, ganhou evidência na mídia e foi muito comentado pelos participantes dos fandom brasileiro. Foi considerado um trabalho de arqueologia da ficção científica brasileira, contemporâneo das aventuras científicas de Júlio Verne, das quais recebeu forte influência.
Zaluar nasceu em Lisboa em 1826 e não completou os estudo em medicina para dedicar-se ao ofício de escrever. Migrou para o Brasil em 1850, estabelecendo-se como jornalista. Seus interesses nas ciências, especialmente na antropologia, o levaram a se dedicar aos estudos sobre o homem brasileiro, e Zaluar acompanhava atentamente os trabalhos das missões científicas no Brasil, e isso fica claro na leitura de O Doutor Benignus, pois o autor faz questão de citar cada um dos seus inspiradores, inaugurando junto com o gênero uma mania cada vez mais em destaque entre os autores brasileiros de ficção científica e fantasia.
A história acompanha o sábio Dr. Benignus, que decide não mais viver em meio à corte brasileira no Rio de Janeiro e retira-se para uma fazenda em Minas Gerais. Lá, além da família, apenas alguns empregados. Durante uma incursão a um trecho de mata próximo a sua residência, Benignus encontra um pergaminho com o desenho do Sol e uma inscrição desconhecida. Obcecado com o achado, realiza amplas pesquisas até descobrir que a inscrição, em língua tupi, quer dizer “Aqui há habitantes”. A descoberta incute no sábio uma grande necessidade de provar a habitabilidade de outros mundos e, para isso, organiza uma expedição ao Brasil Central. Juntam-se a ele o cientista francês M. de Fronville e o jovem inglês chamado Jaime River, que pretende encontrar o pai, o pesquisador William River, desaparecido numa expedição à mesma região.
A comitiva reúne dezenas de pessoas e viaja pelas matas, sempre descritas como belas e hospitaleiras, evitando as estradas e os povoados para não assustar as pessoas. Pelo caminho, enfrentam diversas aventuras, como uma forte tempestade, a travessia de rios perigosos, o ataque de um jaguar negro (quando acontece a única baixa da expedição), a exploração de uma caverna – onde encontram o crânio fossilizado de um homem pré-histórico –, a queda de um meteorito e um incêndio florestal.
Seguindo as pistas do pesquisador desaparecido, a comitiva passa por Uberaba, Santa Rita de Paranaíba, Goiás, Jurupensém, Leopoldina e a Ilha do Bananal, onde acontece o grande desfecho. Ali, os aventureiros encontram uma nação carajá, cujo chefe Koinamam confirma a posse do pai de Jaime, mas recusa-se libertá-lo. A tensão aumenta, mas ocorre um incrível golpe de sorte: da floresta surge um balão de ar quente, conduzido por James Wathon, cientista norte-americano amigo pessoal do Dr. Benignus, alterando o destino fatalista da expedição.
O Doutor Benignus está longe de ser um livro de ficção científica e mal pode ser comparado às aventuras vernianas que o inspiraram. Trata-se apenas do relato de uma viagem de intelectuais ao planalto central do Brasil, sem muito apuro realista. O Brasil selvagem de Zaluar é um lugar de campos abertos, florestas limpas e rios navegáveis, sinal claro de que o autor nunca deve ter feito sequer uma incursão à Mata Atlântica. Esse Brasil não parece ter muitos problemas além das dúvidas existenciais que incomodam o sábio. Colonialismo puro, é apenas um enorme parque de diversões para intelectuais entediados. Não há nada no romance, por exemplo, a respeito de questões dramáticas de sua época, como a escravidão, o preconceito racial e o movimento republicano. Os próprios cientistas da expedição carecem de credibilidade, pois suas considerações são sempre citações de cientistas mais afamados. Zaluar talvez não estivesse mesmo interessado em realizar um relato científico, como acontece com a fc de forma geral, mas a ciência de O Doutor Benignus resume-se a essas citações. Apenas durante um breve delírio onírico, no qual o sábio dialoga com um ser luminoso supostamente vindo do Sol, o texto consegue estabelecer um clima favorável ao fantástico mas, sendo apenas um sonho, não pode ser ponderado nesse contexto. Contudo, percebe-se nele alguma vontade em ser fantástico na medida em que tem seu gérmen no papiro misterioso que, na interpretação do Dr. Benignus, sugere a habitabilidade do Sol e, em suma, era o que o ele pretendia provar com sua viagem ao Planalto Central, mas que não tem maiores significados na trama.
A edição da UFRJ é bem cuidada e, ainda que tenha atualizado a grafia, manteve os maneirismos do autor. O livro tem nada menos que quatro prefácios, sendo um deles um glossário com explicações das idiossincrasias textuais. Fecham o volume, um grande caderno de notas comentando as muitas citações, e um posfácio assinado por Alba Zaluar, provável descendente do autor, com uma leitura crítica que destaca a forma descomprometida com que Zaluar tratou as figuras da mulher e do negro.
Podemos, é claro, chamar à ficção científica o mérito pioneiro de O Doutor Benignus, da mesma forma que tomamos textos de muitos outros autores que nunca imaginaram que o que escreveram seria um dia adotado como registro históricos de um gênero. Mas é preciso ser um tanto criativo para encontrar ficção científica em O Doutor Benignus.
Quando foi relançado em 1994 pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), O Doutor Benignus, romance de Augusto Emílio Zaluar publicado originalmente em 1875, ganhou evidência na mídia e foi muito comentado pelos participantes dos fandom brasileiro. Foi considerado um trabalho de arqueologia da ficção científica brasileira, contemporâneo das aventuras científicas de Júlio Verne, das quais recebeu forte influência.
Zaluar nasceu em Lisboa em 1826 e não completou os estudo em medicina para dedicar-se ao ofício de escrever. Migrou para o Brasil em 1850, estabelecendo-se como jornalista. Seus interesses nas ciências, especialmente na antropologia, o levaram a se dedicar aos estudos sobre o homem brasileiro, e Zaluar acompanhava atentamente os trabalhos das missões científicas no Brasil, e isso fica claro na leitura de O Doutor Benignus, pois o autor faz questão de citar cada um dos seus inspiradores, inaugurando junto com o gênero uma mania cada vez mais em destaque entre os autores brasileiros de ficção científica e fantasia.
A história acompanha o sábio Dr. Benignus, que decide não mais viver em meio à corte brasileira no Rio de Janeiro e retira-se para uma fazenda em Minas Gerais. Lá, além da família, apenas alguns empregados. Durante uma incursão a um trecho de mata próximo a sua residência, Benignus encontra um pergaminho com o desenho do Sol e uma inscrição desconhecida. Obcecado com o achado, realiza amplas pesquisas até descobrir que a inscrição, em língua tupi, quer dizer “Aqui há habitantes”. A descoberta incute no sábio uma grande necessidade de provar a habitabilidade de outros mundos e, para isso, organiza uma expedição ao Brasil Central. Juntam-se a ele o cientista francês M. de Fronville e o jovem inglês chamado Jaime River, que pretende encontrar o pai, o pesquisador William River, desaparecido numa expedição à mesma região.
A comitiva reúne dezenas de pessoas e viaja pelas matas, sempre descritas como belas e hospitaleiras, evitando as estradas e os povoados para não assustar as pessoas. Pelo caminho, enfrentam diversas aventuras, como uma forte tempestade, a travessia de rios perigosos, o ataque de um jaguar negro (quando acontece a única baixa da expedição), a exploração de uma caverna – onde encontram o crânio fossilizado de um homem pré-histórico –, a queda de um meteorito e um incêndio florestal.
Seguindo as pistas do pesquisador desaparecido, a comitiva passa por Uberaba, Santa Rita de Paranaíba, Goiás, Jurupensém, Leopoldina e a Ilha do Bananal, onde acontece o grande desfecho. Ali, os aventureiros encontram uma nação carajá, cujo chefe Koinamam confirma a posse do pai de Jaime, mas recusa-se libertá-lo. A tensão aumenta, mas ocorre um incrível golpe de sorte: da floresta surge um balão de ar quente, conduzido por James Wathon, cientista norte-americano amigo pessoal do Dr. Benignus, alterando o destino fatalista da expedição.
O Doutor Benignus está longe de ser um livro de ficção científica e mal pode ser comparado às aventuras vernianas que o inspiraram. Trata-se apenas do relato de uma viagem de intelectuais ao planalto central do Brasil, sem muito apuro realista. O Brasil selvagem de Zaluar é um lugar de campos abertos, florestas limpas e rios navegáveis, sinal claro de que o autor nunca deve ter feito sequer uma incursão à Mata Atlântica. Esse Brasil não parece ter muitos problemas além das dúvidas existenciais que incomodam o sábio. Colonialismo puro, é apenas um enorme parque de diversões para intelectuais entediados. Não há nada no romance, por exemplo, a respeito de questões dramáticas de sua época, como a escravidão, o preconceito racial e o movimento republicano. Os próprios cientistas da expedição carecem de credibilidade, pois suas considerações são sempre citações de cientistas mais afamados. Zaluar talvez não estivesse mesmo interessado em realizar um relato científico, como acontece com a fc de forma geral, mas a ciência de O Doutor Benignus resume-se a essas citações. Apenas durante um breve delírio onírico, no qual o sábio dialoga com um ser luminoso supostamente vindo do Sol, o texto consegue estabelecer um clima favorável ao fantástico mas, sendo apenas um sonho, não pode ser ponderado nesse contexto. Contudo, percebe-se nele alguma vontade em ser fantástico na medida em que tem seu gérmen no papiro misterioso que, na interpretação do Dr. Benignus, sugere a habitabilidade do Sol e, em suma, era o que o ele pretendia provar com sua viagem ao Planalto Central, mas que não tem maiores significados na trama.
A edição da UFRJ é bem cuidada e, ainda que tenha atualizado a grafia, manteve os maneirismos do autor. O livro tem nada menos que quatro prefácios, sendo um deles um glossário com explicações das idiossincrasias textuais. Fecham o volume, um grande caderno de notas comentando as muitas citações, e um posfácio assinado por Alba Zaluar, provável descendente do autor, com uma leitura crítica que destaca a forma descomprometida com que Zaluar tratou as figuras da mulher e do negro.
Podemos, é claro, chamar à ficção científica o mérito pioneiro de O Doutor Benignus, da mesma forma que tomamos textos de muitos outros autores que nunca imaginaram que o que escreveram seria um dia adotado como registro históricos de um gênero. Mas é preciso ser um tanto criativo para encontrar ficção científica em O Doutor Benignus.
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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
Resenha do Almanaque: Comba Malina, Dinah Silveira de Queiroz
Comba Malina, Dinah Silveira de Queiroz. 206 páginas. Coleção Dinah Fantástica, Editora Laudes, Rio de Janeiro, 1969.
Qualquer obra que tenha ultrapassado os vinte anos tem seu valor histórico e ainda mais importante se torna quando o seu autor demonstrou capacidades literárias amplas dentro e fora dos gêneros fantásticos, como é o caso de Dinah Silveira de Queiroz, autora consagrada no mainstream, que tem em sua bibliografia textos importantes como Floradas na serra (1939) e A muralha (1954).
Dinah era uma escritora consagrada quando decidiu escrever fantasia, iniciando com o romance Margarida La Rocque (A ilha dos demônios), cuja primeira edição é de 1949 pela Livraria José Olympio Editora, e que, mais tarde, teria traduções em vários países. Não por acaso, Margarida La Rocque é o primeiro volume da Coleção Dinah Fantástica, que teve em seguida a edição de Comba Malina, coletânea de contos de ficção científica que é o assunto desta resenha.
A coletânea apresenta oito contos da autora, sendo três inéditos até então, nesta ordem: "Comba Malina", "Os possessos de Núbia", "O céu anterior", "A universidade marciana", "Anima", "A Ficcionista", "Eles herdarão a Terra" e "O Carioca".
O conto de abertura, que dá nome ao livro, é o melhor de todos. Escrito em 1968 para esta antologia, é o relato, em primeira pessoa, de um faxineiro cujo nome não nos é revelado. Por necessidade financeira, o narrador procura uma residência mais próxima ao banco onde cumpre expediente, e é atraído para um beco por uma insidiosa sequência musical. Quando se dá conta, está batendo à porta de um casario, que se trata justamente de uma pensão que tem uma vaga disponível a um preço muito baixo. O protagonista vê-se então colega de quarto do cientista aposentado Professor Sarmento, que desenvolve uma pesquisa histórica sobre o passado daquele velho casarão que, duzentos e cinquenta anos antes, fora a Bodega da Comba Malina, uma cigana belíssima pela qual o Professor parecia ter fixação.
Ao longo dos dias e noites que ambos compartilham, o faxineiro começa a participar das investigações do cientista, que tem uma teoria inusitada sobre o tempo e desenvolveu um dispositivo que permite a visualização do passado. Quando o protagonista finalmente experimenta a viagem e vê Comba Malina, apaixona-se perdidamente por ela, o que será a sua ruína. O desfecho assemelha-se a algumas histórias do escritor americano H. P. Lovecraft, porém com amplas referências ao candomblé, que dá um charme especial ao conto, numa das mais pioneiras manifestações da antropofagia modernista na fc brasileira.
A seguir temos "Os possessos de Núbia", também um conto inédito escrito em 1968 para esta antologia. Bruno é um imigrante em Núbia, planeta inóspito que abriga uma colônia de humanos. Ele foi para lá para dar a sua família uma vida melhor, uma vez que os imigrantes recebiam uma generosa indenização pelos vinte anos, no mínimo, que cada colono teria de passar no planeta. Porém Bruno não foi só pelo dinheiro. Ele se sentia incomodado com os desejos da esposa em ter filhos de forma natural, quando há muito tempo isso não era mais o costume, sendo as crianças todas geradas em úteros artificiais de porcelana.
Núbia apresentava sempre a mesma face para o sol local. Era impossível viver tanto na sua face iluminada, muito quente, quanto no lado escuro, muito frio. A colônia situava-se, portanto, numa estreita faixa de crepúsculo, onde as temperaturas eram suportáveis. A colônia nunca fizera contato com qualquer forma de vida local, mas isso iria mudar quando uma inesperada onda de calor intenso começou a varrer a superfície do planeta. Uma boa ideia desenvolvida nos moldes da Asimov e Bradbury. Porém, sem a precisão científica daquele e o lirismo deste, não repetiu o estilo brilhante visto no primeiro conto.
"O céu anterior" já havia sido publicado na antologia Histórias do acontecerá (GRD, 1961), e seria novamente compilado na antologia Enquanto houver Natal (GRD, 1989). No ano 3559, um astrônomo vê, através de um monitor especial, o céu do ano zero e fica perturbado ao ter uma visão mística com a imagem de uma "estrela que fala". Vai então passar férias num balneário subterrâneo, onde consultará um psiquiatra especialista em esgotamentos de astronautas. Como já se percebe, é uma história sobre o Natal, e seu final-surpresa não funciona porque é perfeitamente previsível antes da metade do conto.
Trata-se do conto mais fraco da antologia porque parte da premissa que dezesseis séculos no futuro ninguém mais se lembraria do Natal, sem dar uma explicação plausível de como isso poderia acontecer uma vez que o calendário usado ainda é o mesmo.
Muito melhor é o conto seguinte, "A universidade marciana", visto anteriormente na outra coletânea da autora, Eles herdarão a Terra (GRD, 1960). O protagonista narrador também não tem seu nome revelado na história, mas trata-se de um morador da cidade do Rio de Janeiro, residindo no décimo andar de um prédio em ruínas numa Copacabana arrasada pela elevação do nível do mar. Em sua andanças solitárias pela orla decadente, é contatado por uma entidade alienígena que, entretanto, não lhe revela muita coisa. Ele desenvolve uma filosofia sobre o modo de ser do homem brasileiro, a qual chama de "Carioquismo" e, por conta de sua repercussão, é convocado para ir ao Vaticano unir-se a um grupo heterogêneo formado por dezenove homens e mulheres cuidadosamente escolhidos para serem instruídos por seres superiores vindos do espaço, possivelmente marcianos – os mesmos que o contaram na praia. O Papa Pio XIII, um chinês, é um dos poucos líderes políticos do mundo a acreditar nos bons préstimos desses alienígenas e aproveita o fato do Vaticano ser o único estado murado do mundo para abrigar, sob sigilo, essa verdadeira universidade. Esses vinte homens e mulheres serão confrontados aos alienígenas e suas estranhas filosofias, mas os marcianos também serão irremediavelmente afetados pelos conceitos humanos.
A autora constrói uma bela narrativa, com descrições vivas e detalhadas do Vaticano e, sem apelar para qualquer dos recursos costumazes da ficção científica, elabora um trabalho perturbador e de profundo lirismo.
"Anima" é o terceiro conto inédito da coletânea, tal como os outros escrito em 1968. Jorge Alves é um cientista pesquisador da alma humana, que propõe na Assembleia Geral da ONU que a comunidade internacional participe do esforço brasileiro em enviar uma missão "espiritual" ao planeta Vênus. A princípio ridicularizado, o método demonstra-se eficiente e uma equipe de cinco astronautas, entre eles o próprio Jorge Alves, despacha seus espíritos para Vênus e lá passam três dias em expedições de reconhecimento visual, uma vez que não podem interagir fisicamente. Entre esses astronautas está uma jovem que sofre de uma doença terminal e, no momento da volta, ela decide permanecer em Vênus, abandonando a existência física que, de qualquer forma, seria bastante breve, e com isso desequilibra toda a equipe. Uma ideia interessante, ainda que não de todo original, desenvolvida com sensibilidade porém sem apresentar uma personalidade mais definida.
"A Ficcionista" é o conto mais longo do livro, já visto na Antologia brasileira de ficção científica (GRD, 1961). É narrado em primeira pessoa por um homem criado em laboratório, um cidadão de segunda classe adotado como assistente pelo cientista e engenheiro Jonas André Camp, que desenvolve um sistema de comunicação audiovisual que fala diretamente ao cérebro, conseguindo dessa forma uma integração quase real com o expectador. O invento entusiasma Sálvio Marconi, proprietário de uma das maiores emissoras de tv concreta (uma espécie de tv 3D), que financia a instalação da máquina, chamada de Ficcionista. A nova mídia é um sucesso de público e crítica, e rapidamente fagocita todas as outras. levando a humanidade para uma existência passiva de tragédia iminente.
O conto apresenta a função de amarragem do livro, pois alguns dos seus elementos principais, como a tv concreta, por exemplo, aparecem nos demais. Também é metalinguístico, uma vez que trata do trabalho do escritor, da maneira como os escritores se comportam e da relação da arte de massa com o público consumidor. Há muitos mais conceitos filosóficos que, embora não se aprofundem, não impedem que este seja um conto muito bom.
"Eles herdarão a Terra" é um conto de invasão marciana, o primeiro texto de ficção científica de Dinah, escrito em 1957 e primeiro publicado na revista Jóia, depois compilado na coletânea que lhe emprestou o nome, publicada em 1960 pela Editora GRD.
Marcos mora com o pai idoso num farol isolado. O velho é fascinado por astronomia e passa as noites a observar o céu. Certo dia, o faroleiro decide trazer para o farol sua outra filha, Tuda, que será a catalisadora de uma tragédia cósmica. Quando o velho morre de infarto, Marcos assume suas funções até que seja nomeado um novo titular e, justamente num dia em que, depois de uma tempestade, o farol está mais isolado do que o normal, Marcos e Tuda recebem a visita de uma entidade estranha, bizarra, aparentemente pacífica mas que revela um sórdido plano de invasão e atira os irmãos num torvelinho de horror. Um conto perturbador, que dialoga com muitas outras obras da fc mundial.
O conto que fecha a edição é "O Carioca", que também faz parte da já citada coletânea Eles herdarão a Terra. Apresenta dois moradores do décimo segundo andar de um prédio recentemente construído, vazio de outros habitantes. O vigia do prédio, que ainda está em fase de acabamento, desliga a energia elétrica do prédio ao final do expediente e ambos têm de passar as noites sem luz e sem elevadores. Num desses dias, chegando atrasados, eles se conhecem ao subir os doze andares pelas escadas. Sendo um homem e uma mulher, ambos jovens, é fatal que se apaixonem. Ela é viúva e passou por uma séria provação quando da doença de seu falecido marido; ele é solteiro, mas tem uma profissão estranha: fabrica robôs e tem alguns deles em seu apartamento. A relação do casal de vizinhos é neurótica e as coisas se complicam mais quando o rapaz leva para casa seu robô mais sofisticado, o Carioca, que ele está prestes a vender para o exército. As máquinas são muito mais que simples mecanismos, tratam-se de inteligências artificiais primitivas e a convivência deles com a mulher vai trazer desentendimentos para a relação de ambos. Um conto maduro e muito bem realizado, como poucas vezes se viu na fc brasileira, com grandes doses de psicologia e drama humano.
Os jovens autores de fc teriam muito a ganhar com a leitura desta coletânea de uma das pioneiras da ficção científica brasileira que, não só, demonstra uma qualidade literária superior e sem pedantismo, um estilo amadurecido e o domínio dos conceitos e protocolos do gênero, mas inocula nos enredos altas doses de dramaticidade e psicologia, de problemas e preocupações humanas.
Não é, obviamente, uma fc de entretenimento, e isso vai desgostar aqueles que avaliam a qualidade de uma historia diretamente proporcional a sua capacidade de entreter, e inversamente a sua capacidade de perturbar. Dinah Silveira de Queiroz escreveu fc como gente grande e para gente grande.
Qualquer obra que tenha ultrapassado os vinte anos tem seu valor histórico e ainda mais importante se torna quando o seu autor demonstrou capacidades literárias amplas dentro e fora dos gêneros fantásticos, como é o caso de Dinah Silveira de Queiroz, autora consagrada no mainstream, que tem em sua bibliografia textos importantes como Floradas na serra (1939) e A muralha (1954).
Dinah era uma escritora consagrada quando decidiu escrever fantasia, iniciando com o romance Margarida La Rocque (A ilha dos demônios), cuja primeira edição é de 1949 pela Livraria José Olympio Editora, e que, mais tarde, teria traduções em vários países. Não por acaso, Margarida La Rocque é o primeiro volume da Coleção Dinah Fantástica, que teve em seguida a edição de Comba Malina, coletânea de contos de ficção científica que é o assunto desta resenha.
A coletânea apresenta oito contos da autora, sendo três inéditos até então, nesta ordem: "Comba Malina", "Os possessos de Núbia", "O céu anterior", "A universidade marciana", "Anima", "A Ficcionista", "Eles herdarão a Terra" e "O Carioca".
O conto de abertura, que dá nome ao livro, é o melhor de todos. Escrito em 1968 para esta antologia, é o relato, em primeira pessoa, de um faxineiro cujo nome não nos é revelado. Por necessidade financeira, o narrador procura uma residência mais próxima ao banco onde cumpre expediente, e é atraído para um beco por uma insidiosa sequência musical. Quando se dá conta, está batendo à porta de um casario, que se trata justamente de uma pensão que tem uma vaga disponível a um preço muito baixo. O protagonista vê-se então colega de quarto do cientista aposentado Professor Sarmento, que desenvolve uma pesquisa histórica sobre o passado daquele velho casarão que, duzentos e cinquenta anos antes, fora a Bodega da Comba Malina, uma cigana belíssima pela qual o Professor parecia ter fixação.
Ao longo dos dias e noites que ambos compartilham, o faxineiro começa a participar das investigações do cientista, que tem uma teoria inusitada sobre o tempo e desenvolveu um dispositivo que permite a visualização do passado. Quando o protagonista finalmente experimenta a viagem e vê Comba Malina, apaixona-se perdidamente por ela, o que será a sua ruína. O desfecho assemelha-se a algumas histórias do escritor americano H. P. Lovecraft, porém com amplas referências ao candomblé, que dá um charme especial ao conto, numa das mais pioneiras manifestações da antropofagia modernista na fc brasileira.
A seguir temos "Os possessos de Núbia", também um conto inédito escrito em 1968 para esta antologia. Bruno é um imigrante em Núbia, planeta inóspito que abriga uma colônia de humanos. Ele foi para lá para dar a sua família uma vida melhor, uma vez que os imigrantes recebiam uma generosa indenização pelos vinte anos, no mínimo, que cada colono teria de passar no planeta. Porém Bruno não foi só pelo dinheiro. Ele se sentia incomodado com os desejos da esposa em ter filhos de forma natural, quando há muito tempo isso não era mais o costume, sendo as crianças todas geradas em úteros artificiais de porcelana.
Núbia apresentava sempre a mesma face para o sol local. Era impossível viver tanto na sua face iluminada, muito quente, quanto no lado escuro, muito frio. A colônia situava-se, portanto, numa estreita faixa de crepúsculo, onde as temperaturas eram suportáveis. A colônia nunca fizera contato com qualquer forma de vida local, mas isso iria mudar quando uma inesperada onda de calor intenso começou a varrer a superfície do planeta. Uma boa ideia desenvolvida nos moldes da Asimov e Bradbury. Porém, sem a precisão científica daquele e o lirismo deste, não repetiu o estilo brilhante visto no primeiro conto.
"O céu anterior" já havia sido publicado na antologia Histórias do acontecerá (GRD, 1961), e seria novamente compilado na antologia Enquanto houver Natal (GRD, 1989). No ano 3559, um astrônomo vê, através de um monitor especial, o céu do ano zero e fica perturbado ao ter uma visão mística com a imagem de uma "estrela que fala". Vai então passar férias num balneário subterrâneo, onde consultará um psiquiatra especialista em esgotamentos de astronautas. Como já se percebe, é uma história sobre o Natal, e seu final-surpresa não funciona porque é perfeitamente previsível antes da metade do conto.
Trata-se do conto mais fraco da antologia porque parte da premissa que dezesseis séculos no futuro ninguém mais se lembraria do Natal, sem dar uma explicação plausível de como isso poderia acontecer uma vez que o calendário usado ainda é o mesmo.
Muito melhor é o conto seguinte, "A universidade marciana", visto anteriormente na outra coletânea da autora, Eles herdarão a Terra (GRD, 1960). O protagonista narrador também não tem seu nome revelado na história, mas trata-se de um morador da cidade do Rio de Janeiro, residindo no décimo andar de um prédio em ruínas numa Copacabana arrasada pela elevação do nível do mar. Em sua andanças solitárias pela orla decadente, é contatado por uma entidade alienígena que, entretanto, não lhe revela muita coisa. Ele desenvolve uma filosofia sobre o modo de ser do homem brasileiro, a qual chama de "Carioquismo" e, por conta de sua repercussão, é convocado para ir ao Vaticano unir-se a um grupo heterogêneo formado por dezenove homens e mulheres cuidadosamente escolhidos para serem instruídos por seres superiores vindos do espaço, possivelmente marcianos – os mesmos que o contaram na praia. O Papa Pio XIII, um chinês, é um dos poucos líderes políticos do mundo a acreditar nos bons préstimos desses alienígenas e aproveita o fato do Vaticano ser o único estado murado do mundo para abrigar, sob sigilo, essa verdadeira universidade. Esses vinte homens e mulheres serão confrontados aos alienígenas e suas estranhas filosofias, mas os marcianos também serão irremediavelmente afetados pelos conceitos humanos.
A autora constrói uma bela narrativa, com descrições vivas e detalhadas do Vaticano e, sem apelar para qualquer dos recursos costumazes da ficção científica, elabora um trabalho perturbador e de profundo lirismo.
"Anima" é o terceiro conto inédito da coletânea, tal como os outros escrito em 1968. Jorge Alves é um cientista pesquisador da alma humana, que propõe na Assembleia Geral da ONU que a comunidade internacional participe do esforço brasileiro em enviar uma missão "espiritual" ao planeta Vênus. A princípio ridicularizado, o método demonstra-se eficiente e uma equipe de cinco astronautas, entre eles o próprio Jorge Alves, despacha seus espíritos para Vênus e lá passam três dias em expedições de reconhecimento visual, uma vez que não podem interagir fisicamente. Entre esses astronautas está uma jovem que sofre de uma doença terminal e, no momento da volta, ela decide permanecer em Vênus, abandonando a existência física que, de qualquer forma, seria bastante breve, e com isso desequilibra toda a equipe. Uma ideia interessante, ainda que não de todo original, desenvolvida com sensibilidade porém sem apresentar uma personalidade mais definida.
"A Ficcionista" é o conto mais longo do livro, já visto na Antologia brasileira de ficção científica (GRD, 1961). É narrado em primeira pessoa por um homem criado em laboratório, um cidadão de segunda classe adotado como assistente pelo cientista e engenheiro Jonas André Camp, que desenvolve um sistema de comunicação audiovisual que fala diretamente ao cérebro, conseguindo dessa forma uma integração quase real com o expectador. O invento entusiasma Sálvio Marconi, proprietário de uma das maiores emissoras de tv concreta (uma espécie de tv 3D), que financia a instalação da máquina, chamada de Ficcionista. A nova mídia é um sucesso de público e crítica, e rapidamente fagocita todas as outras. levando a humanidade para uma existência passiva de tragédia iminente.
O conto apresenta a função de amarragem do livro, pois alguns dos seus elementos principais, como a tv concreta, por exemplo, aparecem nos demais. Também é metalinguístico, uma vez que trata do trabalho do escritor, da maneira como os escritores se comportam e da relação da arte de massa com o público consumidor. Há muitos mais conceitos filosóficos que, embora não se aprofundem, não impedem que este seja um conto muito bom.
"Eles herdarão a Terra" é um conto de invasão marciana, o primeiro texto de ficção científica de Dinah, escrito em 1957 e primeiro publicado na revista Jóia, depois compilado na coletânea que lhe emprestou o nome, publicada em 1960 pela Editora GRD.
Marcos mora com o pai idoso num farol isolado. O velho é fascinado por astronomia e passa as noites a observar o céu. Certo dia, o faroleiro decide trazer para o farol sua outra filha, Tuda, que será a catalisadora de uma tragédia cósmica. Quando o velho morre de infarto, Marcos assume suas funções até que seja nomeado um novo titular e, justamente num dia em que, depois de uma tempestade, o farol está mais isolado do que o normal, Marcos e Tuda recebem a visita de uma entidade estranha, bizarra, aparentemente pacífica mas que revela um sórdido plano de invasão e atira os irmãos num torvelinho de horror. Um conto perturbador, que dialoga com muitas outras obras da fc mundial.
O conto que fecha a edição é "O Carioca", que também faz parte da já citada coletânea Eles herdarão a Terra. Apresenta dois moradores do décimo segundo andar de um prédio recentemente construído, vazio de outros habitantes. O vigia do prédio, que ainda está em fase de acabamento, desliga a energia elétrica do prédio ao final do expediente e ambos têm de passar as noites sem luz e sem elevadores. Num desses dias, chegando atrasados, eles se conhecem ao subir os doze andares pelas escadas. Sendo um homem e uma mulher, ambos jovens, é fatal que se apaixonem. Ela é viúva e passou por uma séria provação quando da doença de seu falecido marido; ele é solteiro, mas tem uma profissão estranha: fabrica robôs e tem alguns deles em seu apartamento. A relação do casal de vizinhos é neurótica e as coisas se complicam mais quando o rapaz leva para casa seu robô mais sofisticado, o Carioca, que ele está prestes a vender para o exército. As máquinas são muito mais que simples mecanismos, tratam-se de inteligências artificiais primitivas e a convivência deles com a mulher vai trazer desentendimentos para a relação de ambos. Um conto maduro e muito bem realizado, como poucas vezes se viu na fc brasileira, com grandes doses de psicologia e drama humano.
Os jovens autores de fc teriam muito a ganhar com a leitura desta coletânea de uma das pioneiras da ficção científica brasileira que, não só, demonstra uma qualidade literária superior e sem pedantismo, um estilo amadurecido e o domínio dos conceitos e protocolos do gênero, mas inocula nos enredos altas doses de dramaticidade e psicologia, de problemas e preocupações humanas.
Não é, obviamente, uma fc de entretenimento, e isso vai desgostar aqueles que avaliam a qualidade de uma historia diretamente proporcional a sua capacidade de entreter, e inversamente a sua capacidade de perturbar. Dinah Silveira de Queiroz escreveu fc como gente grande e para gente grande.
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