Por exemplo, temos os casos de 1984, de George Orwell, Shikasta, de Doris Lessing, A estrada (The road), de Cormac McCarthy, Associação Judaica de Polícia (The Yiddish Policemen's Union), de Michael Chabon, Não verás pais nenhum de Ignácio de Loyola Brandão, e Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. A eles se soma também Complô contra a América (The plot against America) de Philip Roth, que recebeu uma nova edição em 2015 na coleção Companhia de Bolso, da Editora Companhia das Letras, com tradução de Paulo Henriques Britto.
É um caso curioso porque a obra de Philip Roth não apresenta nenhum outro livro especulativo. Sua produção está focada no realismo, em livros como O complexo de Portnoy (Portnoy's complaint) e Pastoral americana (American pastoral). Nascido em Newark, Nova Jersey, em 1933, Roth é um autor mainstream prestigiado, detentor dos mais importantes prêmios literários, entre os quais o Pulitzer e a National Medal of Arts. É um mistério os motivos que o levaram a escrever esta ficção especulativa instalada no subgênero da História Alternativa, um formato que geralmente faz sucesso apenas entre fãs de ficção científica.
Não se trata de uma ideia original. Antes de Roth, outros autores dedicaram textos à utopias nazistas na América, como, por exemplo, O homem do castelo alto (The man in the high castle), de Philip K. Dick, e O sonho de ferro (The iron dream), de Norman Spinrad, ambos já publicados no Brasil.
O caso é que Complô contra a América é muito mais que uma história alternativa. Trata-se de um romance em que o real e o imaginário misturam-se de tal forma que é praticamente impossível desassociá-los. Não porque seja difícil saber o que é historicamente correto ou não, porque essa percepção o autor providencia de modo muito claro, ao inserir, no final do livro, um apêndice detalhado com as biografias reais dos principais personagens históricos citados no romance, para "fornecer referências aos leitores interessados em saber até onde vão os fatos históricos e onde tem inicio a imaginação histórica", cita o próprio Roth na nota de esclarecimento que abre a seção.
O que não sabemos se é real ou não são os fatos ocorridos com os protagonistas, que nada mais são que os membros da família de Philip Roth, num relato que pode muito bem ser autobiográfico em sua maior parte, ou completamente inventado. Pois o romance, narrado em forma de um testemunhal, conta as impressões do infante Philip Roth que, com apenas sete anos de idade, vive um período turbulento da sociedade americana, exatamente os dias que antecederam a entrada do país na Segunda Guerra Mundial.
No romance, a comunidade judaica de Newark, onde vivem os Roth, é abalada quando, nas eleições de 1940, o herói da pátria Charles Lindberg – o primeiro homem a atravessar o oceano Atlântico sozinho num vôo sem escalas – elege-se presidente dos Estados Unidos derrotando o democrata Franklin Delano Roosevelt, que se candidatara ao terceiro mandato. Ocorre que Lindberg tinha ideias controversas, pois era antissemita assumido e admirador de Adolf Hitler. A presença de Lindberg na Casa Branca faz o país manter-se fora do conflito europeu e cria desconforto entre os judeus americanos ao abrir espaço à propagação do nazismo nos EUA.
O texto de Roth, ainda que dotado de menos maravilhamento que seus antecessores, ao importar o holocausto europeu para a América – numa situação que não aconteceu de fato –, apresenta um retrato um tanto cruel da sociedade judaica, discutindo agudamente a questão antissemita nos EUA, a estrutura familiar da comunidade, seus valores e cultura. Pelos olhos do pequeno Phil vamos acompanhar como o fascismo avança gulosamente sobre a sociedade americana, animada pela ampla aprovação à política isolacionista de Lindberg, travestida por ações pacifistas e progressistas. E a tragédia que era apenas um temor, comprova-se para a família Roth quando são tratados como cidadãos de segunda classe em uma malfadada viagem turística à capital do pais, assim como no drama do primo Alvin, que havia se alistado no exército canadense para lutar contra Hitler na Europa, mas retornou poucos meses depois sem uma das pernas, perdida em batalha.
O mais dramático, contudo, é que os traumas pelo que vão passar os Roth e seus vizinhos da comunidade judaica de Newark são, de forma geral, criados a partir da intolerância dos próprios judeus entre si, em especial a ação de Walter Winchell, radialista de enorme audiência que move uma campanha difamatória incansável – e não propriamente honesta – contra o presidente Lindberg. Em cada detalhe das recordações do pequeno Phil, as pistas de como os próprios judeus ajudam a construir as armadilhas para seus iguais, incluindo o próprio Philip que, do alto de seu inocente egoísmo juvenil, lança seu vizinho Seldon, provavelmente o único admirador que jamais teve, no pior de todos os infernos, potencializando a natureza de culpa que todo judeu carrega desde o berço.
O que enfraquece a tocante história de Complô contra a América é a atabalhoada explicação final, que sugere Lindberg como mais uma das vítimas de um plano nazista para dominar a América, sendo que tudo o que ele fez foi decorrente de chantagem, uma vez que os alemães teriam seu filho refém (na história oficial, o filho de Lindberg morreu ainda bebê, assassinado por um sequestrador psicopata). Ainda que a forma como Roth apresenta essa conspiração seja um tanto transversal, através de uma série de contraditórias reportagens de jornal que não parecem ser dignas de crédito, o efeito final é da História sendo reconduzida ao normal, apenas com um ano de atraso: os japoneses atacam Pearl Harbour em 1942 e os EUA acabam por entrar na Segunda Guerra ao lado dos aliados.
Mesmo assim, a opção de Roth por construir um holocausto pessoal pelos olhos de sua própria infância dá tal credibilidade á história que nos faz pensar que ela talvez tenha acontecido de uma forma ou outra, e que inacreditável é o fato de não ter sido assim, uma dúvida que perturbará para sempre o leitor: talvez, a história tenha sido mesmo aquela e sejamos nós que vivemos na realidade alternativa.
— Cesar Silva