Bacurau, Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles. 132 min. França/Brasil, 2019.
O cinema é uma arte praticada no Brasil desde seus primeiros tempos. Mas, como todas as demais linguagens artísticas, o cinema brasileiro passou por muitos altos e baixos, com períodos produtivos historicamente localizados entre grandes espaços de menor atividade. Tais flutuações têm vários motivos, desde questões políticas como a censura, dificuldades com a distribuição e, principalmente, problemas financeiros, uma vez que fazer um filme nunca foi barato. A indústria do cinema, na verdade, nunca se instalou solidamente no país e em muitos períodos a produção nacional foi iminentemente diletante, não raro com os cineastas financiando seus filmes com dinheiro do próprio bolso.
Mas o cinema fantástico sofre ainda mais, pois a todas essas dificuldades estruturais soma-se ainda um grande preconceito dos próprios artistas, pois o gênero acabou associado ao cinemão norte americano, de matizes comerciais e, não raro, proselitistas. Fazer ficção fantástica no Brasil é, em muias esferas, sinônimo de entreguismo cultural. Por isso, a produção cinematográfica nacional de fc&f é pequena e pouco desenvolvida. Mas, ainda assim, têm seus clássicos, como Os cosmonautas (Victor Lima, 1962), Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr., 1969), Quem é Beta? (Nelson Pereira dos Santos, 1972), Parada 88: Limite de alerta (José de Anchieta, 1977) e Abrigo nuclear (Roberto Pires, 1981), entre outros raros exemplos.
Contudo, a radical redução de custos de produção devido ao surgimento das filmadoras digitais, e a possibilidade de exibição dos filmes pela internet contribuiram para o surgimento de uma nova geração de produtores audiovisuais que tem se exercitado nos ambientes não comerciais e ganhado reconhecimento em festivais nacionais e internacionais. A criação da Ancine, em 2001, foi outro grande impulsionador da produção audiovisual no país pois contribuiu valiosamente para uma produção estável que ganhou ainda mais sustentação com o advento da tv a cabo e, mais recentemente, dos serviços de streaming, que resolveram de vez os insolúveis problemas de distribuição. Por contraditório que seja, o fim do cinema como sistema de exibição em salas exclusivas foi justamente o que permitiu a produção nacional finalmente desabrochar. E esse ambiente favorável alcançou também a ficção fantástica.
Muitos filmes bons começaram a surgir nos últimos vinte anos, e Bacurau, longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é o melhor exemplo do que é possível fazer com a ficção científica quando a oportunidade e a qualidade criativa se encontram. A dupla é responsável pelos grandes sucessos recentes, os premiados Um som ao redor (2013) e Aquarius (2016).
O filme conta a história de um pequeno vilarejo localizado em algum lugar no sertão de Pernambuco, habitado por gente simples e endurecida pelas dificuldades da vida e pela natureza áspera. O povo humilde é politicamente dominado pelo prefeito da cidade, que não o valoriza e só se lembra dele quando precisa de votos. Quando uma família de agricultores é chacinada, revela-se um tenebroso projeto comercial promovido pelos gestores da cidade: oferecer os habitantes de Bacurau como alvos para turistas estrangeiros psicopatas, mas cheios de dinheiro, darem vasão aos seus mais baixos instintos. É então que a "docilidade" dos homens e mulheres sertanejos vai se revelar em toda a sua glória.
O elenco, em sua maioria, é composto de atores pouco conhecidos, como Bárbara Colen, Thomas Aquino, Silvero Pereira, Thardelly Lima, Rubens Santos, Wilson Rabelo, Carlos Francisco, Luciana Souza, Karine Teles e Julia Marie Peterson, entre outros. Mas conta também com dois nomes de peso: a brasileira Sonia Braga, que interpreta a médica Domingas – uma das pessoas mais proeminente da sociedade bacurauense –, e o ator alemão Udo Kier – que interpeta Michael, o líder da legião de assassinos –, cuja fisionomia dura é bastante conhecida dos filmes americanos de terror.
A cenografia é um dos pontos altos da produção, que retrata com felicidade um panorama muito familiar aos brasileiros: mata de caatinga, casarios antigos e grandes obras de infraestrutura em ruínas, talvez nunca inauguradas, que servem como esconderijo para outsiders; criminosos, talvez, mas, mais que isso, sobreviventes de uma realidade em tudo pós-apocalíptica. As filmagens usaram como locação os municípios de Parelhas e Acari, no estado do Rio Grande do Norte.
Bacurau teve um custo de R$ 7,7 milhões e arrecadou mais que o dobro disso. E ainda ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, onde teve sua primeira exibição em 15 de maio de 2019. No Brasil, a fita estreou algumas semanas depois, no dia 29 de agosto.
Alguns podem argumentar que Bacurau não é um efetivamente um filme de fc, visto que o único detalhe evidente do gênero é um drone em forma de disco voador que é usado pelos assassinos para rastrear suas "presas". Mas é claro que não é só isso. O que faz de Bacurau uma boa e legítima história de ficção científica são seus aspectos sociológicos e antropológicos, algo que nem sempre é percebido como especulação científica porque não se tratam de ciências duras. Muito mais que discos voadores, interessa aqui a exploração de corpos brasileiros como atração turística. Ficção? Nem tanto. Basta lembrar das crianças prostituídas por todo o país. Se ainda não temos caçadas humanas como atrações turísticas no Brasil, não falta muito para isso. Também a maneira debochada e cruel com que o poder público trata o eleitor, algo que não está nada distante da realidade. E, enfim, a maneira natural com que os sertanejos lidam com a tecnologia, todos muito a vontade com seus aparelhos celulares, ainda que um tanto ultrapassados em comparação com os dispositivos futuristas usados pelos estrangeiros.
Também é preciso reconhecer que não há coitadismo no tratamento dado ao sertanejo. O habitante de Bacurau é – como diria Euclides da Cunha – "antes de tudo, um forte". Como os seguidores de Antônio Conselheiro em Canudos, os bacurauenses podem ser simplórios, mas tolos certamente não são.