A mão que cria é o romance de estreia do escritor carioca Octavio Aragão, até então conhecido no ambiente restrito do fandom brasileiro por fundar e dirigir o projeto multimídia Intempol, um universo compartilhado por vários autores. Antes de A mão que cria, Aragão publicou cerca de meia dúzia de contos, de bons a muito bons, em fanzines e antologias. Quem acompanhou sua trajetória, recebeu o romance com uma expectativa positiva. Finalmente, uma editora de porte apresentava um livro inédito assumidamente de fc&f de autor brasileiro. Isso porque a editora Mercuryo, que já teve em seu catálogo best-sellers como a série Operação Cavalo de Troia, de J. J. Benitez, já havia flertado com a literatura fantástica quando publicou coleções extensas de novelizações de X- Files e Star trek, além da breve coleção de banca Conan: Espada e magia, com contos de Robert E. Howard, L. Sprague de Camp e Lyn Carter.
A mão que cria é arrojado na temática – não muito habitual na literatura brasileira – conhecida como ficção alternativa. Esse tipo de história constrói seus enredos utilizando personagens de outros autores, geralmente muito conhecidos e, preferencialmente, em domínio público. Muitos escritores importantes da fc&f internacional já usaram esse expediente, entre os quais o americano Philip José Farmer em The other log of Phileas Fogg, no qual reconta A volta ao mundo em 80 dias, de Júlio Verne, e o britânico Brian Aldiss em Frankenstein unbound, uma espécie de continuação delirante ao clássico de Mary Shelley.
O prefácio, assinado por Gerson Lodi-Ribeiro, conta rapidamente a história da ficção alternativa e sugere que este romance de Aragão seria o precursor do gênero no país. Passou perto. Alguns anos antes, mais exatamente em 1995, José J. Veiga e Jô Soares apropriaram-se do Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle em seus respectivos romances O relógio Belisário e O xangô de Baker Street. Contudo, A mão que cria não tem a mesma proposta daqueles autores. Enquanto Veiga e Soares tinham em mente a produção de uma obra original, com um toque sutil de ficção alternativa, Aragão mergulhou completamente na apropriação de personagens alheios: praticamente não há um único personagem original em toda a trama.
Em A mão que cria, o panorama mundial, especialmente o europeu, foi alterado para abrigar diversos personagens reais e literários emprestados de Júlio Verne e H. G. Wells. O próprio escritor francês torna-se ainda mais importante na medida em que, nos primórdios do século XX, é eleito presidente da França. Usando sua influência, Verne recruta todos os cientistas malucos que seu país pode pagar e lá instala o centro do mundo. O exercício de reconstrução histórica é minucioso e exaustivo, sendo o grande mérito do autor no trabalho.
Nesse ambiente, enfrentam-se dois antagonistas. Um deles, chamado Ariano, é uma versão livre do Caveira Vermelha, vilão das histórias em quadrinhos do Capitão América. Tão livre, aliás, que por muito tempo tive a impressão de que se tratava do monstro de Frankenstein. O outro é Lours, uma espécie de humano híbrido com golfinho, também inspirado em uma personagem das histórias em quadrinhos, possivelmente Aquaman ou Namor.
Gigantes entre os homens, Ariano e Lours competem pela liderança do mundo, apoiados por novas espécies inteligentes sobre a Terra: Ariano encontrou no meteoro caído em Tunguska em 1908, o elemento que precisava para criar sua própria raça de seguidores, os desmortos (inspirados nos zumbis do filme A noite dos mortos-vivos de George Romero), enquanto Lours comanda toda uma população de híbridos alterados geneticamente, como ele mesmo, a partir dos estudos de um certo Dr. Moreau (emprestado de A ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells).
O conflito entre Ariano e Lours inicia-se a partir de um triângulo amoroso apenas sugerido na trama, desdobra-se ao longo do século 20, atravessando duas guerras mundiais (ligeiramente diferentes por conta da presença das tecnologias imaginárias), culminando num confronto definitivo nos dias atuais. O romance é tão repleto de citações e homenagens que o autor decidiu inserir um apêndice relacionando boa parte delas.
O foco varia continuamente, sem fixar uma personagem condutora. As duas personagens principais cumprem apenas o papel de antagonistas uma da outra. Inumanas e sem qualidades morais, o leitor não consegue identificar-se com qualquer delas. Algumas personagens coadjuvantes demonstram empatia, mas surgem apenas para serem destroçadas poucas páginas adiante.
A narrativa usa períodos entrelaçados e sobrepostos, saltando do passado para o presente, depois para um passado ainda mais distante, para em seguida voltar tudo de novo, embaralhando a percepção do leitor, e parece ter confundindo também a da editora, que comprometeu o resultado final com gralhas de diagramação, revisão e continuidade.
Ainda que não seja de fato um romance longo, seu final parece chegar rápido demais e sem um grande clímax. O autor até reservou uma boa cena para ele, mas a sequência ininterrupta de ação intensa ao longo de todo o romance nivelou a narrativa num patamar tão elevado que não deixou margem para tal.*
Octavio Aragão é um contista talentoso e demonstrou isso mais de uma vez, porém, neste trabalho, uma narrativa convencional enfatizaria melhor o estranhamento e o vigor narrativo que A mão que cria inegavelmente tem. Até porque o romance, ainda que ágil e empolgante, já exige do leitor uma boa dose de cultura pop internacional e de conhecimento das raízes da literatura de fc&f, sem o que não percebe as inúmeras citações e homenagens que o autor plantou.
Contudo, penso que entendi a ideia geral: que é muito bom que o nosso mundo não tenha seguido o caminho que Octávio Aragão imaginou.
Contudo, penso que entendi a ideia geral: que é muito bom que o nosso mundo não tenha seguido o caminho que Octávio Aragão imaginou.
*Em 2018, o autor retornou ao universo de A mão que cria com o romance A mão que pune: 1890, pela Caligari, selo da Editora CJT, do Rio de Janeiro.
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