A ira da águia, Humberto Loureiro. 350 páginas. Porto Alegre: Literalis Editora, 2006.
A ficção científica brasileira detém, com certo orgulho, alguns temas que lhe são muito caros e recorrentes, entre eles destaca-se o das guerras amazônicas, que trata da invasão da Amazônia brasileira por uma força estrangeira poderosa, com maior frequência vinda dos Estados Unidos da América.
Os brasileiros, de forma geral, enxergamos a Amazônia como um tipo de reserva estratégica, que deve ficar intocada até que nós mesmos tenhamos condições técnicas de explorá-la. Afinal, temos para isso os sagrados direitos assegurados pelas leis internacionais. Mas não nos incomodamos muito com os interesses autênticos das populações que lá vivem e, com nossa passividade histórica, obrigamos esses seres humanos a subsistirem pouco melhor que os animais selvagens, vivendo em meio a inúmeras carências de recursos financeiros, sociais e urbanísticos.
Enganamo-nos com os discursos ecológicos românticos de que saberemos conquistar esse "inferno verde" com mais inteligência do que fizemos com a parte já devidamente devastada do território nacional, que respeitaremos mais e melhor as populações indígenas e caboclas lá instaladas do que qualquer potência estrangeira, demonizadas como forças exclusivamente extrativistas. Mas é claro que não será assim. Sejam americanos, japoneses, alemães ou canadenses, não farão nem pior nem melhor que os brasileiros. Mas o mito existe e, como tal, é argumento ideal para as histórias da antecipação.
Humberto Loureiro, carioca, médico e engenheiro civil, estreou no mercado editorial com A ira da águia, romance ambicioso que conta como a maior força militar do planeta resolveu tomar, na marra, o controle político da Amazônia.
O primeiro capítulo segue à risca as orientações dos autores experientes, pois é a melhor parte de todo o romance. Principia em 2016, mas reconta, em retrospectiva, algumas décadas da história brasileira recente. Já com forte presença na Amazônia, especialmente ao longo do Rio Amazonas e seus afluentes, várias organizações particulares e governamentais dos EUA garantem que as empresas norte-americanas lucrem com a exploração ilegal das riquezas da região, mantendo ao lado deles a maioria dos habitantes ribeirinhos através da realização de atividades assistenciais de baixo custo. Quando a Marinha Brasileira retém dois barcos americanos e suas respectivas tripulações, por transporte de madeira ilegalmente extraída, o governo americano aproveita o fato para forçar um confronto político, acusando o Brasil de maus tratos à tripulação detida e exigindo a libertação imediata e incondicional das embarcações. Como o governo brasileiro, alegando soberania, não acata o ultimato, os EUA enviam uma força tarefa para libertar os detidos e assumir o controle em toda a região. Formada por um porta-aviões de última geração e um moderno cruzador de escolta, a força tarefa seria, em tese, mais do que suficiente para resolver a questão. Porém, algo inesperado acontece. Depois de afundar um navio-patrulha brasileiro que a interceptou, a frota americana desaparece misteriosamente, próximo à foz do Amazonas.
A CIA e todos os demais órgãos de inteligência militar americana não conseguem explicar como desapareceram o poderoso porta-aviões e sua escolta, pois nada pode ser comprovado através das imagens colhidas por satélite. O depoimento do capitão de um submarino nuclear americano que acompanhava em segredo a força tarefa só corrobora a falta de explicações, uma vez que a única embarcação claramente identificada nas proximidades fora uma pequena e mal armada fragata brasileira, que não disparara um único tiro durante o incidente. Aparentemente, as belonaves americanas explodiram expontaneamente.
O governo americano conclui, então, que outro país ajudou o Brasil com algum tipo de submarino moderníssimo e, com esse argumento, passa a pressionar a ONU para intervir na questão, enquanto usa outros subterfúgios para obter as informações que certamente estão faltando.
Ao longo das trezentos e cinquenta páginas do livro, a CIA vai aos poucos desvendando o mistério, com um agressivo esquema de espionagem apoiado em sequestros e assassinatos de oficiais da marinha brasileira, enquanto o governo americano manobra forças políticas e lobbys internacionais infiltrados no Legislativo brasileiro, de forma a desestabilizar o governo com uma crise política interna. O que eles vão descobrir muito depois é o que o leitor já sabe desde o início do livro: sob as barbas da espionagem americana, a Marinha Brasileira desenvolveu, em segredo, um poderoso indutor de ferrugem por rádio, que pode desintegrar qualquer equipamento metálico em segundos. E que a inexpressiva fragata brasileira utilizou essa arma para vencer o conflito de 2016 e pode usá-la novamente.
A graça da história está na forma como o autor antepõe as estratégias de espionagem americana e de dissimulação da Marinha Brasileira, num jogo de gato e rato, mas de um rato que ruge.
Não há personagens que conduzam a trama, que é contada através de flashs das reuniões do alto escalão dos governos americano e brasileiro: presidentes, generais e comandantes militares, ministros, chefes de departamento de inteligência, senadores, deputados etc. No meio disso tudo, há o pequeno drama do jovem cientista militar que descobriu o princípio físico com que a arma secreta brasileira funciona, seu relacionamento amoroso conturbado e a violência política que o atinge, mas esse drama recebe pouca atenção do autor.
Após a leitura do romance, fica uma impressão estranha: a de que todas as ações norte-americanas no mundo são movidas por interesses escusos e que toda contraviolência de suas vítimas é justificada. Ainda que, no livro, os líderes brasileiros tenham motivos nobres ao adotar métodos não ortodoxos para atingir seus objetivos, alguns deles são, no mínimo, antiéticos e isso soa como justificativa a certas atitudes de governos brasileiros recentes. O autor chega a defender líderes como Saddan Hussein e Slobodan Milosevich, que teriam sido vítimas da anti-propaganda americana mundial. Melhor seria se Loureiro tivesse evitado uma abordagem tão polarizada, sem meios tons. É um discurso perigoso, que não colabora para com a boa vontade entre os homens.
Afora esse pecado, o livro é interessante e bem redigido. As sequências de ação estão bem descritas, com detalhes nítidos das atitudes dos personagens e dos equipamentos utilizados, e bom domínio dos jargões militar e político. Um detalhe a mais para divertir o leitor são os nomes dos personagens: Donald Keegan, Célio Brandt, César Portela, Henry Flood, Thomas Bennett, Paul Hoover, John Carter, Norton Tavares de Mello, e por aí vai.
A edição da Literalis é caprichada, com acabamento de muito bom gosto e excelente trabalho de revisão. Vale a pena conferir este romance invulgar, talvez um dos poucos, senão único, exemplo de tecnotriller brasileiro.
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