Há alguns anos tivemos no Brasil um plebiscito para definir o sistema de governo que regeria o País a partir de então. Nem é preciso dizer que o presidencialismo ganhou de lavada, porque, afinal, a maior parte da população nunca conheceu outro regime senão este – e a ditadura militar, que foi bem ruim mas era a mesma coisa no fim das contas. Durante a campanha, muita gente ridicularizou os defensores da monarquia, que eram de fato bem poucos. Mas, apesar de todas as agruras que caracterizaram o período monárquico brasileiro, ainda há um grande respeito e carinho pelas figuras de nosso imperadores e até pelos regentes que assumiram o governo na ausência deles. Existe, entre os brasileiros, um indisfarçável romantismo a respeito da imagem da da realeza e da família real. Quando queremos elevar alguém a um nível de excelência incomparável, o chamamos de rei ou rainha, como acontece com Pelé, Roberto Carlos, Xuxa e outras personalidades populares.
Ou seja, mesmo que a decisão do plebiscito tenha ratificado o presidencialismo em vigor, ainda há um sentimento de culpa no ar pela forma como aconteceu a instalação desse sistema, na base de um golpe de estado, com diversos sinais de oportunismo próprio da política nacional que segue até hoje mais ou menos da mesma forma.
A professora Lilia Moritz Schwarcz, titular do departamento de Antropologia da USP, tem abordado o período monárquico brasileiro em livros de grande repercussão, entre os quais estão o álbum D. João Carioca: A corte portuguesa chega ao Brasil (1808-1821), ilustrada pelo cartunista paulistano Spacca, e o livro As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca dos trópicos, ganhador do Prêmio Jabuti em 1999. Esta foi justamente a base sobre a qual o já citado ilustrador trabalhou, entre 2009 e 20013, para construir o relato As barbas do Imperador: D. Pedro II, A história de um monarca em quadrinhos, recentemente publicado pela editora Quadrinhos na Cia.
Trata-se de um trabalho vultoso de pesquisa e arte que retrata, em 144 páginas lindamente coloridas, a história do Brasil a partir da vida de D. Pedro II, desde o seu nascimento, em 1825, até a morte, em 1891. Entre outros fatos interessantes, o álbum conta como o infante imperador teve sua maioridade antecipada para assumir suas funções políticas, o casamento com Dona Teresa Cristina, o interesse por cultura e ciência que o acompanharia por toda a vida, a maneira como o povo se identificava com o imperador nas festas e comemorações populares, a prolongada guerra com o Paraguai que deixou o reino empobrecido e no qual germinou a semente do republicanismo, as viagens pelo mundo, suas discretas aventuras amorosas e, quando enfim acabou com o escravismo, a inevitável queda do regime, a deportação da família real na calada da noite e a morte do imperador no exílio, enterrado em Paris com honras de chefe de estado, para a ira dos políticos golpistas.
A história é contada principalmente através de recordatórios, de forma que o efeito sequencial típico dos quadrinhos não chega a ser experimentado pelo leitor. Contudo, a narração é acessível, suave e, em muitos momentos, emotiva, que torna agradável a leitura. A autora teve o cuidado de não fazer proselitismo da monarquia, detalhando as mazelas que os brasileiros enfrentaram naqueles tempos, mas não deixou de tratar D. Pedro II com reverência, reconhecendo nele uma figura significativa no cenário histórico e exaltando, de forma sutil, seus dotes intelectuais, simplicidade e amor pelo País, qualidades geralmente ausentes nos governantes brasileiros que lhe sucederam até os dias de hoje.
As ilustrações caricaturais de Spacca não desrespeitam os personagens históricos apresentados, muitas delas baseadas em ilustrações e pinturas famosas que são devidamente creditadas e comentadas no capítulo "Da arte aos quadrinhos", um dos muitos anexos publicados no final do volume, com direito a making of dos personagens, quadro cronológico dos fatos históricos, biografias das personalidades citadas ao longo da narrativa, e breves ensaios sobre a Guerra do Paraguai, a escravidão e a arte da fotografia, um dos principais interesses do monarca, que nos deixou como herança um farto acervo documental.
As barbas do Imperador é um trabalho significativo no cenário do quadrinho brasileiro e, ao lado de outras obras históricas como Santô, Debret e D. João Carioca, todas ilustradas por Spacca, constrói um panorama honesto e emocionante da história brasileira.
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