sábado, 8 de fevereiro de 2014

Resenha: Medo, mil anos de calafrios


Surgiu nas redes sociais uma corrente na qual os missivistas desafiam-se para relacionar os dez livros mais importantes de suas vidas. A brincadeira, além de divertida, é ótima pra sugerir leituras e dar uma insuspeita profundidade às relações que, nessa mídia, não passam do superficial. É interessante observar como títulos simples, alguns até relegados ao esquecimento, foram determinantes na construção cultural de indivíduos que hoje são formadores de opinião no ambiente literário. Por isso, sempre fui entusiasmado pela literatura infanto-juvenil, que é aquela que, geralmente, inicia o jovem no prazer da leitura.

Pessoalmente, iniciei por romances de aventura e ficção científica – que, ainda hoje, ocupam um espaço importante nas minhas leituras –, e só bem mais tarde fui conhecer o terror através dos contos de Edgar Allan Poe (1809-1849). Mas muitos podem iniciar com esse gênero e Medo: Histórias de terror (Mille ans de frissons) é um livro adequado para maravilhar o leitor em formação, sem deixar de apresentar atrativos também para o leitor maduro. Trata-se de uma antologia de contos de horror escritos por autores do século 19 selecionados por Hélène Montarde, publicada pela Editora Schwarcz através do selo Companhia das Letrinhas.
Como se trata de uma edição original francesa, o volume destaca os autores dessa língua, entre os quais aparecem apenas dois estrangeiros: Poe e os irmãos Grimm, dos EUA e Alemanha, respectivamente. Mas isso não significa que a seleção não seja representativa, pelo contrário.
Dividida em cinco partes, cada uma está dedicada a um tema distinto. A antologia inicia com "Histórias inverossímeis", que trata de fantasmas, aparições e espectros. Abre a seleção "O pé da múmia", de Theóphile Gautier (1811-1872). Trata-se de uma história que une misticismo e egiptologia na aventura fantástica de um homem depois que compra um incomum peso de papéis num antiquário. Este conto, em especial, foi resumido para facilitar o entendimento pelos leitores jovens.
O segundo texto, bem mais sombrio, é "Visão de Carlos XI", um dos primeiros escritos por Prosper Mérimée (1803-1870), que relata a visão de um tétrico tribunal do passado durante uma noite assombrada em um castelo em Estocolmo.
"Aparição" é o primeiro de cinco contos de Guy da Maupassant (1850-1903) selecionados nesta antologia, autor que dedicou boa parte de sua carreira ao gênero fantástico. Na técnica de uma história dentro de outra, o conto fala sobre um jovem corajoso que, para ajudar um amigo, encara o fantasma de sua falecida esposa. O texto seguinte, "A mão" – também de Maupassant –, é sobre a investigação de um crime impossível, no qual um homem foi, aparentemente, assassinado por um dos seus, digamos, troféus de caça.
Além dos contos assinados, a antologia inclui textos colhidos da tradição oral, adaptados aqui pela escritora infanto-juvenil Geneviève Noël. Nesta primeira parte temos dois desses relatos: o conhecido conto "A noite no castelo mal-assombrado", no qual um homem enfrenta, com coragem e inteligência, os fantasmas de um castelo abandonado; e "A dama da neve", conto japonês sobre um homem imprudente que, atraído por uma linda mulher, se perde na floresta durante uma tempestade de neve.
A segunda parte da seleção, "Com mil demônios", elenca contos com o diabo. Gautier volta com "Dois atores para um papel", no qual um ator de talento que interpreta Mefistófeles, tem um encontro com o próprio, que o desafia a fazer melhor. A seguir temos "Inverossímil", único texto de Alexandre Dumas (1802-1870) nesta antologia, com a história de um médico apaixonado por sua cliente que retorna da morte para uma noite de amor com ela. Gérard de Nerval (1809-1855) assina "O monstro verde", sobre um policial corajoso que enfrenta um ataque fantasmagórico, mas não escapa de suas sinistras consequências. "O violino, o baralho e o saco" é uma adaptação de um conto dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), uma das muitas versões do viajante valente que enfrenta fantasmas em um castelo, como no já citado "A noite no castelo mal-assombrado".
A terceira parte, "Silêncio mortal", apresenta duas histórias sobre cemitérios. "A morta", de Maupassant, conta sobre uma mulher que é vitimada por um mal desconhecido. O viúvo, desconsolado, passa a noite junto ao túmulo da amada e, a certa altura, se vê rodeado de fantasmas e descobre que há segredos que talvez seja melhor nunca saber. O conto seguinte, "A morte de Olivier Bécaille", de Émile Zola (1840-1902) – um dos melhores da antologia –, narra o drama angustiante de um homem acometido por uma crise de catalepsia, que o leva a testemunhar seu próprio velório e enterro.
"Bicho de sete cabeças", a quarta parte, agrupa história com animais. A primeira delas é a conhecida "O gato preto", de Edgar Allan Poe, sobre um homem que assassina sua esposa e é acusado pelo fantasma de um gato que também matou. "O lobo e o violinista" é a adaptação de outro relato popular sobre um músico descuidado que decide atravessar a floresta à noite e é perseguido por um lobo. O bicho ataca novamente em "O lobo", de Maupassant, sobre dois irmãos valentes que aceitam o desafio de caçar um animal que parece ter poderes sobrenaturais. "O olho da serpente fantástica" é adaptação da lenda de um homem que enfrenta e mata uma cobra gigantesca e se apropria de seu olho – uma enorme pedra preciosa –, uma vitória que ele não poderá comemorar.
A parte final, "Descida aos infernos", reúne histórias sobre os reino dos mortos. Poe retorna com o sensacional "A máscara da morte vermelha", clássico da horror gótico que conta a história de um rei e sua corte que de encerram num castelo para sobreviver a um surto de peste mortal. Segue-se de "Sobre a água", mais um texto de Maupassant, um conto delicado sobre um barqueiro que fica preso no meio do rio durante uma assombrosa noite de neblina. "O segredo do cadafalso", único texto de Phillipe Auguste Mathias de Villiers de L'Isle-Adam (1838-1889) presente nesta antologia, é um exemplo do que podemos chamar de proto-ficção científica. Conta sobre um cientista que, ao saber que um de seus colegas de academia será guilhotinado, propõe a ele que seja cobaia de uma experiência mórbida em troca de eternizar-lhe o nome como baluarte da ciência.
Fecha a seleta "A ceia dos enforcados", mais um texto de Gérard de Nerval que, apesar do clima de horror, trata-se de uma peça de humor negro.
Como se vê, há uma grande variedade de temas e cenários, que revelam o estilo do narrativa que era popular nos século 19, na qual a figura da morte, ou do morto, é explorada como único elemento de suspense, sendo que muitas dessas histórias sequer são sobrenaturais. Os monstros não assumem um caráter tão ameaçador quanto o próprio homem, algoz muito mais cruel e efetivo, e o clima de horror é obtido mais pelo estilo da narrativa do que pelo temor do desconhecido. O leitor jovem talvez se impressione com alguns destes relatos e até experimente aquele arrepio na espinha típico, que provavelmente irá levá-lo a buscar, depois, por outros trabalhos do gênero. Mas ao leitor experiente interessa muito mais a arqueologia literária realizada pela organizadora Hélène Montarde, principalmente quanto aos textos mais obscuros da seleção. Além de que cada conto vem acompanhado de um breve comentário sobre o autor e a obra, com informações interessantes sobre suas publicações originais, além das ótimas ilustrações de Gwen Keraval, Anaïs Massini, Guillaume Renos e Olivier Balez, que também assina a bela capa.
O volume, de 240 páginas, tem tradução de Julia da Rosa Simões e uma excelente revisão, que segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Um livro que, sem dúvida, eu recomendaria para iniciar o jovem leitor no fascinante universo da literatura.

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