A ficção científica não convive mais com uma de suas autoras mais ilustres. No dia 17 de novembro de 2013 morreu Doris Lessing, escritora e poetisa britânica cuja obra foi reconhecida com o Prêmio Nobel em 2007.
Tive um caso de amor profundo com Doris Lessing no início dos anos 1990. Comecei com Shikasta, primeiro de cinco volumes da série de ficção científica Canopus in Argos: Archives, que conta, através de uma mosaico de pequenas narrativas nem sempre fáceis de interpretar, a tragédia humana sob o olhar de um grupo de observadores alienígenas que, ao longo da história, aqui realizam experimentos nem sempre benfazejos. Através desse olhar "externo", a autora desnuda detalhes perturbadores da natureza humana e sua doentia relação com a natureza e com seus semelhantes, de uma forma que somente ela poderia realmente fazer.
Doris Lessing, batizada Doris May Tayler, nasceu em 29 de outubro de 1919 em Kermanshah, no Curdistão iraniano, que então era parte da Pérsia. Sua naturalidade britânica foi herança dos pais, Alfred e Emily Tayler, nascidos na Inglaterra. Quando Doris estava com seis anos, a família mudou-se para a Rodésia do Sul, atual Zimbábue, indo morar na fazenda de milho e tabaco adquirida por seu pai. Ela frequentou uma escola de freiras que abandonou aos 13 anos, completando os estudos como autoditada. Interessada em literatura, começou a escrever aos 15 anos, mas as coisas não foram muito bem na fazenda e a vida difícil levou a jovem até a se prostituir para sustentar a mãe.
Entre 1939 e 1943, Doris foi casada com Frank Charles Wisdom, a quem deu um casal de filhos, criados pelo pai. Foi mais uma vez casada, entre 1945 e 1949, com Gottfried Lessing, alemão comunista que, mais tarde, viria a ser embaixador da RDA em Uganda. Doris teve mais um filho, Peter, que levou consigo para a Londres, onde iniciaria sua carreira como escritora. Seu primeiro livro foi The grass is singing, publicado em 1949.
Suas públicas opiniões políticas contra o apartheid e a favor do feminismo e do desarmamento nuclear a tornariam uma personalidade conhecida, a ponto de ser banida da África do Sul e da Rodésia. Doris recusou o título de Dama, mas aceitou diversos outros méritos do Governo britânico, e em 2007, aos 87 anos, tornou-se a pessoa mais idosa a receber um Prêmio Nobel de Literatura.
Apesar de ser autora de muitos romances importantes, tais como The golden notebook (1962), Briefing for a descent into hell (1971) e The good terrorist (1985), que tratam de temas espinhosos como política, psicologia e feminismo – termo que ela rejeitava veementemente –, aqueles que Lessing dizia mais apreciar eram justamente os seus textos de ficção científica, gênero que ela classificou como a "melhor ficção social dos nossos tempos". São eles: Shikasta (1979), The marriages between Zones Three, Four and Five (1980), The sirian experiments (1980), The making of the representative for Planet 8 (1982), The sentimental agents in the Volyen Empire (1983), nos quais a autora desenvolve uma cosmologia inspirada no sufismo para mergulhar na natureza humana e sua relação com o universo. Além destes livros, Lessing tem pelo menos mais um romance que flerta com o gênero, Memoirs of a survivor (1974), no qual uma senhora observa o progressivo esvaziamento de sua cidade a partir da janela do apartamento, trabalho que se instala nas franjas da escatologia, ao lado de "The Ones Who Walk Away from Omelas", de Ursula K. Le Guin, Earth abides, de George R. Stewart, e The road, de Cormac McCarty.
Nem seria preciso dizer que a crítica mainstream detesta a ficção científica de Doris Lessing, pois deixou isso bem claro em diversas resenhas. Contudo, neste aspecto, ela não está sozinha. Com raríssimas exceções, a crítica especializada no gênero também não elogia o trabalho da autora, que considera desconexo e demasiadamente depressivo, características evitadas pelas revistas pulp que estabeleceram os protocolos de um gênero geralmente mais interessado em entreter consumidores.
Doris viria a lamentar o Nobel que recebeu, por ele ter causado uma tal demanda por entrevistas e aparições públicas que literalmente a impediram de continuar escrevendo.
Seu último livro, Alfred and Emily, foi publicado em 2008.
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