Lendo antigos recortes do jornal O Estado de S. Paulo, encontrei três artigos que dialogam com o problema do quadrinho no Brasil de uma forma curiosa, embora um tanto trágica. O mais velho deles, publicado do Caderno 2 de 21 de maio de 1995, faz parte de uma grande reportagem sobre as histórias em quadrinhos que toma praticamente todo o caderno. Assinado por Jotabê Medeiros, o texto tem o revelador título "Brasileiros enfrentam amadorismo editorial" e ilustra essa constatação com depoimentos dos grandes Luiz Gê e Flávio Colin (1930-2002), ambos amargurados com a falta de estrutura do mercado brasileiro, que não dispunha – e ainda não dispõe – de editores competentes que deem condições aos artistas viverem das obras que deles publicam.
OK, isso é discutível. De fato, há artistas que sobrevivem de quadrinhos no País, mas são poucos e mal pagos, continuam na luta ou porque não sabem ou não querem fazer outra coisa: são mártires diletantes, à margem do mercado, recebendo irregularmente royalties ridículos ou produzindo suas próprias publicações, sem conseguir distribuir porque não há acesso ao serviço dominado por um monopólio predador.
O segundo recorte, datado de 2 de janeiro de 2016, traz o artigo "Um fantasma a menos", assinado por Guilherme Sobota, também publicado no Caderno 2, sobre o lançamento do livro O grifo de Abdera (que merece atenção) com direito a uma entrevista com o autor, um dos grandes nomes da literatura brasileira surgidos nos últimos anos, o paulistano Lourenço Mutarelli. Todos sabemos quem é Mutarelli: quadrinhista bem sucedido, autor de uma série de títulos cultuados pelos leitores, como a série de álbuns do detetive Diomedes. A certa altura, diz o autor: "O (quadrinhista) que eu era morreu. Não consigo mais fazer quadrinhos como fazia antes". E mais adiante "... é quase uma estupidez trabalhar 12 horas por dia, todos os dias, e não ter retorno. No auge, conseguia o dinheiro para pagar o aluguel". Ou seja, de Colin a Mutarelli, nada mudou.
Finalmente, o artigo "Brasileiros criam site de streaming de quadrinhos", assinado por Matheus Mans, publicado em 27 de julho de 2015 no caderno Economia. Trata do lançamento da plataforma Cosmic Reader, criada pelos cearenses Ramon Cavalcante e George Pedrosa. Inspirados no Netflix, que está desbancando a tv a cabo, a ideia é abandonar de vez o mercado real e focar no digital. E é aí que está o erro. Abandonar o mercado real é assumir que o produto fracassou definitivamente.
As histórias em quadrinhos são cria do formato real. Sua linguagem evoluiu a partir das limitações gráficas do produto impresso, que não tem eficiência no formato digital. O sucesso de um produto virtual só tem valor se a ele estiver associado um produto real, que é com o que se vai ganhar dinheiro de verdade. O talento do produto virtual é divulgar o autor e sua arte, com objetivo de se chegar ao mercado real onde se pode vender revistas, livros, álbuns, figurinhas, jogos, brinquedos, licenciamentos para produtos de consumo e adaptação para cinema e tv. Ainda que se esteja tentando muito, o quadrinho digital não mostra potência comercial para sustentar um mercado por si só.
A esperança no digital parece ser apenas mais um capítulo do engodo do quadrinho no Brasil, uma tragédia anunciada há décadas, porque somente o quadrinho que dá certo nas bancas é que vai dar certo no espaço digital.
Não será possível criar no País um mercado de quadrinhos saudável e vigoroso abdicando-se da banca e das livrarias. Não existe atalho. É preciso que artistas e editores enfrentem o criminoso monopólio da distribuição que aí está, pois, sem a vitória nessa frente, tudo o mais é inútil.
Somente amor e talento não bastam: continua sendo fundamental tratar o produto editorial em seu espaço comercial dominante, com competência e seriedade. Ou continuaremos vítimas do vaticínio de Jotabê Medeiros no longínquo 1995, com os quadrinhistas brasileiros para sempre enfrentando a maldição do amadorismo editorial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário