Um dos maiores fenômenos editoriais recentes é o romance nacional Barba ensopada de sangue, do jovem escritor paulista Daniel Galera, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013 e terceiro lugar no Prêmio Jabuti de Romance, no mesmo ano. O livro, de 424 páginas, foi lançado em 2012 pela editora Companhia das Letras, e já teve diversas reimpressões.
Apesar de ter nascido em São Paulo – em 1979 –, Galera passou a maior parte de sua vida em Porto Alegre, e é o panorama da região sul que predomina no livro, principalmente o litoral de Santa Catarina, mais exatamente a cidade de Garopaba.
Barba ensopada de sangue acompanha aproximadamente um ano na vida de um professor de educação física que, após o suicídio do pai, decide ir à pequena cidade turística catarinense investigar o desaparecimento misterioso de seu irascível avô, conhecido por todos como Gaudério, assassinado cerca de quarenta anos antes. A história toda o pai lhe contou poucos dias antes de se matar, quando também pediu ao filho que fizesse o favor de sacrificar a cadela que lhe fizera companhia durante os últimos anos. Mas ele acaba por adotar o animal, que o acompanha à Garopaba. A mudança é também uma forma de fugir ao relacionamento familiar difícil, seja com a mãe autoritária, seja com a ex-esposa infiel que, anos antes, o abandonou para viver com o seu irmão, inimigo juramentado desde então.
Depois de alugar um apartamento rente à praia e arrumar emprego numa academia de natação, o jovem começa a fazer perguntas sobre seu avô aos moradores da cidade. Eles desconversam, especialmente os mais velhos que reconhecem nele a imagem temida do velho Gaudério, com quem ele já sabia ser muito assemelhado. Ficamos sabendo que o protagonista sofre de um ligeiro problema de memória, que o impede de fixar a fisionomia das pessoas, mas não de se relacionar com várias mulheres, fazer alguns bons amigos e outros tantos inimigos, navegando assim nos segredos dessa comunidade simplória enquanto descobre as maravilhas naturais da região, que vai provar ser de importância insuspeita na solução dos mistérios de sua história familiar.
O romance, em suma, é retrato triste de uma geração fracassada e sem projeto de vida. A história contada por Galera é pouco importante diante do cenário de desolação da vida desses jovens, na qual a família e o amor são instituições falidas, restando apenas a solidão e o sexo.
A ausência absoluta de referências à ditadura numa história que aborda justamente um período em que o regime militar foi especialmente agressivo, destaca ainda mais a "herança maldita" desse período lamentável da história brasileira recente.
A leitura do romance é fácil, mas cheia de estilo. Galera desenvolveu um modelo autoral que, a exemplo de José Saramago, prescinde de alguns sinais ortográficos. Por exemplo, apesar de ser um livro com muitos diálogos, não há travessões. Outra curiosidade são as narrativas paralelas grafadas na forma de notas de pé de página: emails, cartas, mensagens de redes sociais etc, que funcionam como ilustrações e, embora interrompam, não chegam a prejudicar a leitura.
O romance já foi negociado com Inglaterra, EUA, Itália, Argentina, Portugal, Romênia e Holanda, o que acena que não deve tardar uma adaptação para o cinema.
Daniel Galera também é autor dos romances Dentes guardados – seu livro de estreia, publicado em 2001 –, Até o dia em que o cão morreu (2003), Mão de cavalo (2006), Cordilheira (2008) e o álbum em quadrinhos Cachalote (2010).
Apesar de não ser uma história vinculada à literatura especulativa, Barba ensopada de sangue tem muito com o que contribuir para autores, leitores e editores, pois apresenta um texto maduro e moderno, incomum no gênero. Mas é preciso que, antes, o fandom reconheça o prejuízo que leva por sustentar seu histórico sectarismo e passe também a observar, com atenção crítica, textos mainstream como este, sem o que continuará a margem da cultura brasileira e sem uma baliza válida a ser seguida, para além do recorrente conservadorismo medieval que a assola.
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