Quando se fala em literatura, em qualquer parte do mundo, o trabalho do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) é logo lembrado. Autor de alguns dos mais significativos textos da literatura ocidental, o também chamado Bardo fez sua fama com peças populares, cheias de ambição, traição e vingança. Toda a produção dramática angloamericana faz referência, em maior ou menor grau, à obra shakespeareana, e muitas outras culturas também, visto que todos consideram que Shakespeare simplesmente contou todas as histórias possíveis.
Há alguma polêmica sobre a real autoria do Bardo sobre suas obras. Muitos dizem que ele apenas deu dignidade artística a histórias que já circulavam em tradição oral, inclusive vindas de outras partes da Europa, mas isso não diminui a importância da obra, que influencia todas as artes dramáticas até os nossos dias.
Por isso, não é de surpreender que a Nemo, selo editorial do Grupo Autêntica que ao longo dos últimos dois anos construiu um invejável catálogo de história em quadrinhos de luxo, tenha investido na coleção Shakespeare em Quadrinhos, com adaptações de boa qualidade feitas por artistas brasileiros.
A coleção conta com cinco títulos publicados: Romeu e Julieta, Otelo, Sonhos de uma noite de verão, A tempestade e Macbeth, dos quais os dois últimos me chegaram às mãos, juntamente com Hamlet, que parece não fazer parte da coleção oficial.
A tempestade conta a história de Próspero, Duque de Milão, que junto com sua filha Miranda foi exilado numa ilha depois de ser traído por seu irmão, que usurpou suas propriedades. Sendo versado nas artes ocultas, Próspero conseguiu cooptar o serviço das criaturas mágicas que ali habitavam, tais como o monstruoso Caliban, e Ariel, o espírito do vento que fora aprisionado na ilha pela bruxa Sicorax. Depois de anos de exílio, Próspero usa os poderes de Ariel para fazer naufragar um navio e trazer à terra os seus tripulantes, justamente aqueles que haviam conspirado contra ele no passado. Ao lado de Sonhos de uma noite de verão, A tempestade é considerado um dos textos mais fantasiosos do Bardo e ecos de seu enredo podem ser percebidos, por exemplo, no popular seriado de televisão Lost. A adaptação ficou a cargo do roteirista Lillo Parra e do ilustrador Jefferson Costa, que foram extremamente felizes em suas escolhas. O texto enxuto e coloquial lê-se com prazer, e os desenhos têm um estilo moderno e despojado, com muito movimento e um colorido intenso que remete à natureza exuberante da ilha. Este é o segundo trabalho de Parra para a Nemo, uma vez que ele também fez o roteiro da adaptação de Sonhos de uma noite de verão, publicado na mesma coleção. Jefferson Costa é um velho conhecido dos leitores, tendo participado de coletivos importantes como os álbuns Quebra Queixo Technorama, Front e Bang Bang.
O segundo álbum é Macbeth, herói de guerra que recebe de antigas bruxas a profecia que um dia se tornará rei. Ao relatar o acontecido à sua ambiciosa esposa, Macbeth é incitado por ela a dar uma "ajudinha" ao destino, assassinando o rei e seus descendentes. O plano dá certo, mas a culpa por essa e outras traições necessárias à manutenção do poder vai, aos poucos, minando a moral e a sanidade do casal. Este trabalho tem o ótimo texto de Marcela Godoy, escritora experiente, autora dos romances Relato da queda de um demônio e Liah e o relógio. Como roteirista de quadrinhos, Marcela tem no currículo os álbuns Fractal e A dama do Martinelli, bem como a adaptação de Romeu e Julieta, também publicada na coleção Shakespeare em Quadrinhos. Os desenhos, um pouco mais realistas e comedidos que no álbum anterior, mas ainda assim cheios de estilo, são de Rafael Vasconcellos, um jovem artista do Espírito Santo, também é conhecido como Abel na minissérie Ditadura no ar. As cores são neutras e sóbrias, contribuindo com o clima dramático da história.
Fecha o conjunto, a tragédia incestuosa Hamlet, que relata a decadência moral da família real dinamarquesa depois que o rei é assassinado pelo próprio irmão, que lhe usurpa o trono e a rainha. Hamlet, o príncipe herdeiro do falecido rei, recebe do fantasma de seu pai a revelação do crime do tio e, a partir disso, elabora um plano de vingança contra ele e sua mãe, caindo num estado de compulsão monomaníaca que o torna no novo alvo do usurpador. Esta história tem algumas das frases mais famosas da obra shakespeareana, como "Há algo de podre no reino da Dinamarca" e "Ser ou não ser, eis a questão". O roteiro é assinado pelo próprio editor da Nemo, Wellington Srbek, quadrinhista experiente e premiado que optou por manter no texto um estilo similar ao da obra original, com uma sintaxe floreada que infelizmente interfere demais na fluidez narrativa. Os desenhos são do ilustrador editorial Alex Shibad, num estilo natural e minimalista, remetendo à cenografia de uma montagem teatral que, somado ao texto rebuscado, faz os personagens parecerem sobreinterpretar. Se tal textura foi decisão consciente dos autores para emular a experiência dramatúrgica, o resultado foi atingido, mas a leitura não é fácil. Embora mantenha os mesmos contornos gráficos, este álbum não se assume como parte da coleção Shakespeare em Quadrinhos.
Assim, a Nemo facilita, ao público dos quadrinhos, acessibilidade aos textos shakespeareanos, iluminando o seu valor, o que talvez motive os leitores à busca pelos textos originais que também devem ser conhecidos, uma vez que a leitura da adaptação não substitui, de forma alguma, a experiência com o texto original. Esperamos que seja bem sucedida.
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