Dois anos, oito meses e 28 noites (Two years eight months and twenty-eight nights), Salman Rushdie. Tradução de Donaldson Garschagen. 336 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2016.
No século 12, tempo em que os mouros dominavam a península ibérica, viveu em Córdoba um filósofo chamado Ibn Rushd, que tinha ideias um tanto perturbadoras para uma sociedade teocrática dominada pelos conceitos de outro filósofo, o já falecido Gazhali de Tus. As ideias transgressoras de Rushd o levam ao exílio e à proibição de lecionar sua filosofia. Destituído de sua autoridade, o sábio passa a viver de pequenos negócios. É quando conhece uma bela jovenzinha chamada Dunia que bate a sua porta em busca de abrigo, e acaba por tornar-se sua amante e mãe de uma legião de filhos. Ocorre que essa jovem não era exatamente uma mulher, mas sim um djin, mais exatamente uma djínia (djin feminino) que, em períodos específicos, pode vir ao mundo dos homens. Dunia se encantou com o amor e tudo faz para experimentá-lo, apesar de sua condição de djin, em que o amor não tem lugar. Sua dedicação ao sábio caído torna-se uma ternura que irá atravessar os séculos e perdurar muito além de sua morte.
Oitocentos anos depois, os descendentes de Dunia e Rushd estão espalhados pelo mundo. A única característica que os identifica é a falta do lóbulo na orelha, coisa que quase ninguém percebe e é ignorada inclusive por eles mesmos. Mas, como sempre acontece nas história em que dois mundos se chocam, mais uma vez as brechas entre o Peristão – o mundo dos djins – e mundo dos homens voltam a se abrir, e coisas bizarras começam a acontecer por toda parte. A mais importante delas para o relato em questão é o que acontece com o já idoso jardineiro Geronimo Manezes que, depois de uma tempestade de três dias arrasar a cidade, percebe que seus pés não tocam mais o chão e, a cada dia, a distância entre eles e o solo aumenta um pouco mais. Mas não só: um bebê abandonado na sala da prefeita demonstra ter o poder de revelar a corrupção naqueles que a tocam, surgem uma infinidade de moléstias desconhecidas, pessoas desenvolvem superpoderes, outras ainda morrem esmagadas por um súbito aumento da força da gravidade sobre elas, e o mundo torna-se uma confusão ainda maior quando quatro poderosos djins das trevas, que causam perturbações até no Peristão, vêm ao mundo dos homens para exercitar suas maldades. Estas poderosas entidades não odeiam os humanos, na verdade não têm nenhum sentimento especial por nós além do desprezo, mas pretendem divertir-se um pouco por aqui. É quando Dunia retorna para despertar seus descendentes, cujos poderes adormecidos podem ajudar a salvar ambos os mundos da sanha dos gênios do mal. Quando encontra Geronimo, que é de fato um de seus descendentes, Dunia reconhece nele a mesma aparência do velho Ibn Rushd, por ele se apaixona e o leva para o Peristão, onde vai despertar sua natureza djin para a luta que seguirá.
Salman Rushdie é um prestigiado escritor indiano, nascido em 1947 em Bombaim e radicado na Inglaterra desde a adolescência. Formou-se em História em Cambridge, trabalhou como ator e tornou-se escritor em período integral em 1971. Ganhou prêmios importantes como o Booker Prize, o Booker of Booker e o Best of the Booker com o romance fantástico Os filhos da meia-noite (Midnight's children), que guarda muitas similaridades com Dois anos, oito meses e 28 noites. Mas seu romance mais conhecido é Os versos satânicos (The satanic verses), que lhe legou o prêmio Whitbread e uma sentença de morte pelo então líder espiritual do Irã, aiatolá Khomeini.
Dois anos, oito meses e 28 noites é uma fábula filosófica sobre o conflito das forças que regem o mundo, o embate das visões místico-religiosa e acadêmico-científica. O longo título faz referência ao clássico As mil e uma noites (que somam exatamente dois anos, oito meses e 28 noites) que, na mitologia do romance, é um período cíclico de transformações em que o véu que separa os dois mundos se rompe e a magia se manifesta também no mundo dos homens.
O texto de Rushdie é leve e contemporâneo, e sua formação multicultural dá à narrativa um colorido ímpar nas letras britânicas, com referências à várias culturas, especialmente da Índia, seu país da nascença, mas também às de outras regiões, incluindo a África e até o Brasil, que é citado algumas vezes no romance.
Ainda que haja condições para uma leitura aventuresca para esta história de amor e fúria, na maior parte do tempo, o autor trabalha questões profundas, não apenas sobre o conflito filosófico que fundamenta a narrativa, mas muitas outras como, por exemplo, sobre a polêmica que surgiu há alguns meses no ambiente literário, quando Kazui Ishiguro, também ele um escritor britânico, fez comentários aparentemente preconceituosos sobre o gênero da fantasia. Diz Rushdie na página 245:
"... contar uma coisa ocorrida antigamente é falar do presente. Narrar contos imaginários, fantasias, é também uma forma de contar uma história sobre a atualidade. Se isso não fosse verdade, contar histórias seria inútil, e em nossa vida cotidiana procuramos, ao máximo possível, evitar inutilidades. A pergunta que nos fazemos ao narrar nossa história é a seguinte: como foi que chegamos aqui, vindo de lá?".
Apesar da aparente similaridade, Dunia não é Jeanie (personagem de um popular seriado de tv dos anos 1960, interpretada por Barbara Eden). Apesar de igualmente apaixonada, Dunia não é serva de ninguém, ela é senhora, protagonista que define os rumos de sua própria história. Uma ideia bastante atual num mundo ainda dominado pelo machismo, que vê as mulheres como um acessório pouco mais que decorativo. Neste romance, as condições se invertem e a mulher enfrenta com ousadia os desafios da condição feminina, mesmo sendo uma djínia pois, mesmo no mundo dos djins, as coisas não são muito diferentes no fim das contas.
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