sábado, 9 de março de 2024

Resenha do Almanaque: A todo vapor

A todo vapor
, Enéias Tavares e Felipe Reis. Série de tv com oito episódios. Produção Cine Kings & Brasiliana Steampunk, 2020. 

Muitos autores do fandom brasileiro de fc&f já tiveram oportunidade de ver suas criações em live action, na verdade isso nem é tão incomum mas, geralmente, são filmes de curta ou longa metragem, e sabemos que, assim como a literatura, o cinema nacional tem dificuldades históricas em impor-se no mercado interno. Mas ainda pior é a situação da fc&f nos seriados de televisão, que raramente obtiveram espaço, exceto como alguma bizarrice nas novelas, geralmente de viés cômico. Mas há algum tempo se tem experimentado propostas mais dramáticas, como as séries Animal e 3%.
O sucesso desta última em especial animou o mercado nacional a se aventurar em mais produções no gênero, como O escolhido (2019, Netflix), Onisciente (2020, Netflix) Spectros (2020, Netflix), Desalma (2020, Globlo Play) e Cidade invisível (2021, Netflix). Contudo, todas estas produções guardam ainda uma respeitável distância dos autores do fandom. Mesmo O escolhido, que teve roteiros de Raphael Draccon e Carolina Munhóz – autores que de certa forma estão vinculados ao fandom –, foi adaptada de uma série mexicana chamada Niño Santo (2011), ou seja, não é uma história originalmente nacional e os autores brasileiros envolvidos são apenas um acidente. Por isso é que A todo o vapor (2020, Amazon Prime) merece este destaque. 
Trata-se de uma série de ficção científica bastante original pois se identifica com a estética steampunk, subgênero da ficção científica que pressupõe que, em algum momento no século XIX, ocorreu uma revolução científica que antecipou a era tecnológica ainda no período da máquina a vapor. O romance inaugural dessa linha foi A máquina diferencial (1990), de Bruce Sterling e Willian Gibson, no qual o computador mecânico idealizado por Charles Babbage teria sido efetivamente realizado, estabelecendo o florescer da revolução digital em plena Era Vitoriana. O estilo acabou por estabelecer todo um padrão estético que une o vestuário característico do final do XIX, com cartolas, fraques, bengalas, relógios de bolso, polainas, vestidos bufantes e espartilhos, convivendo com traquitanas tecnológicas com muitas engrenagens e parafusos a mostra. 
No rastro da moda, surgiram no Brasil uma série de grupos de fãs que, devidamente paramentados, se reuniam em eventos especiais para exaltar o steampunk como um estilo de vida. Com o movimento, vieram também os fanzines eletrônicos, sites, clubes e autores, dentre os quais Enéias Tavares, escritor gaúcho de Santa Maria que, em 2014, publicou pela Editora LeYa o romance A lição de anatomia do temível Dr. Louison, que apresenta uma história movimentada na qual personagens da literatura brasileira, como Simão Bacamarte, Solfieri, Isaias Caminha, Rita Baiana e Pombinha, têm de enfrentar muitos perigos para capturar um psicopata assassino. A ele, seguiu-se Juca Pirama: Marcado para morrer (Jambô, 2019) e Parthenon Místico (Darkside Books, 2020), todos ambientados no mesmo universo. O enredo de A todo vapor é baseado nessas histórias e se passa exatamente após os fatos narrados no segundo livro. O próprio Tavares se responsabiliza pelos roteiros. 
A primeira temporada de A todo vapor conta com oito episódios de vinte minutos cada. Ambientada em 1910, narra a história de um grupo peculiar de detetives do sobrenatural que vai à Vila Antiga dos Astrônomos, vilarejo imaginário localizado em algum lugar no interior do Brasil, investigar uma série de crimes inspirados nas cartas do tarô. O principal suspeito é um culto de matizes lovecraftianas liderado pelo malévolo Pamu. Entre os personagens, além do próprio Juca Pirama (interpretado pelo diretor da série, Felipe Reis), estão Capitu de Machado (Thais Barbeiro), Victória Acuã (Pamela Otero), Doutor Benignus (Luiz Carlos Bahia), Bento Alves (Claudio Bruno) e Sergio pompeu (Pedro Passari). O elenco ainda conta com Bruna Aiiso, Paulo Balteiro e Yoram Blaschkauer.
A produção é modesta e teve evidentes dificuldades técnicas. Muitas carcaças enferrujadas de trens antigos (alguns movidos a diesel), um balão de ar quente com queimadores moderníssimos e a cenografia em ruas e pousadas de algum vilarejo estilo colonial contemporâneo, deixaram a ambientação repleta de anacronismos. Os efeitos especiais não são muito convincentes e é intrigante o motivo de todos carregarem óculos de soldador se nunca ninguém os usa. Há um esforço evidente para ampliar a representatividade, com mulheres assumindo a linha de frente nas lutas e até cenas de beijo entre homens, contudo, não há um único negro no elenco. As inúmeras citações a personagens da literatura, incluindo uma breve aparição da "boneca" Emília, soam mais como uma homenagem à série de quadrinhos A liga extraordinária, de Alan Moore e Kevin O'Neill, declaradamente citada numa cena, do que a uma necessidade dramática, uma vez que os personagens, além dos nomes, não carregam nenhuma característica dos personagens originais.
Mas é muito divertido ver uma produção legítima do fandom finalmente chegar ao mercado de streaming. Mesmo com toda a improvisação, passa um sentimento delicioso de identificação nunca obtido pelos demais seriados aqui citados. Tomara que tenha continuidade e conquiste recursos financeiros suficientes para melhorar tecnicamente a produção. Mas espero que nunca percam a expontaneidade desta primeira temporada, que é seu maior trunfo.

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