sábado, 11 de março de 2023

Território Lovecraft

Território Lovecraft
(Lovecraft country), Matt Ruff. Tradução de Thais Paiva, 354 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Há algum tempo, mais exatamente em 2017, o escritor e tradutor Fábio Fernandes, em seu podcast Terra Incógnita, publicou uma série de episódios sobre uma onda neolovecraftiana na fc&f americana, e um dos títulos que destacou foi justamente Lovecraft country. Foi a primeira vez em que ouvi falar do livro e de Matt Ruff, seu autor. Fernandes teceu efusivos elogios à obra e recomendou que os editores brasileiros dessem uma chance a ele.
É claro que não foi o singelo podcast que Fernandes, ainda que se considere a significativa influência de seu editor no fandom, que levou a editora Intrínseca a publicar o livro no Brasil. Isso só aconteceu quando a HBO Max anunciou a produção de uma série inspirada no livro, o que é um apelo irresistível aos editores brasileiros quando se trata de livros de fc&f. Por isso, não foi surpresa quando o livro apareceu nas lojas virtuais, em edição de luxo e capa dura. Não que o título não mereça: provavelmente foi o melhor livro de fc&f publicado no país em 2020 e certamente um dos cinco melhores da segunda década deste século.
O mais interessante é que não se trata de um livro lovecraftiano, como seria de se imaginar. Os escritores profissionais sabem muito bem que qualquer autor fã saberia imitar o estilo démodé de Lovecraft. Trata-se de um texto enxuto e potente, mas a leitura é sofrida por conta do tema; o estilo é bastante contemporâneo, ainda que toda a ação esteja localizada em algum momento dos anos 1950. Trata-se de um romance fix-up, formado por contos e novelas autônomos possivelmente publicados em separado, reunidos por um arco geral que lhes dá unidade dramática.
Conta a história de uma família de homens e mulheres pretos num Estados Unidos da América em que o racismo e a segregação racial são praticados com anuência do poder público. Um dos veteranos, chamado de George, mantém a publicação de uma espécie de fanzine turístico, o Guia de Viagem do Negro Precavido, para que as pessoas pretas possam transitar pelo país com alguma segurança. Para isso, viaja continuamente e enfrenta os perigos de caminhos ainda não experimentados, de modo a registrar os lugares em que o povo preto pode se alimentar e se hospedar sem o risco de ser assassinado. Oito história e um epílogo compõem o volume, cada uma focaliza um dos membro da família, embora os demais também participem com maior ou menor significado.
"Território Lovecraft" é a novela que abre o volume. Cumpre com louvor a apresentação dos personagens e do ambiente geral. Nela, acompanhamos Atticus, um jovem que retorna sua cidade natal e encontra Montrose, a quem chama de pai, desaparecido. Acompanhado de George e da jovem Letitia, embarcam no velho woody da família com destino ao condado de Ardhan, em pelo "Território Lovecraft", uma região perigosa para os negros. Lá, se depararam com Caleb Braithwhite, jovem branco muito misterioso, além de um grupo de homens brancos que praticam uma espécie de culto, a qual chamam de "Filosofia Natural", cujo ritual exige a participação de um dos nossos ousados viajantes e influirá no futuro de toda a família.
"A casa assombrada dos sonhos" focaliza as irmãs Letitia e Ruby, que compram por uma bagatela um antigo casarão no qual pretendem implantar uma pousada para negros. O problema é que o casarão está localizado em um bairro majoritariamente habitado por brancos racistas. E não só: a mansão era, no passado, residência de Hiran Winthrop, figurão da Filosofia Natural cujo fantasma nada amistoso assombra o lugar.
"O livro de Abdulah" é uma espetacular aventura ao estilo de Indiana Jones. Caleb Braithwhite está de posse do Livro dos Dias, que registra a vida dos membros da família durante o período da escravidão e é um documento importante para que eles possam obter uma polpuda indenização. Mas Caleb só o devolverá em troca do Livro dos Nomes, compêndio mágico que está escondido no subterrâneo do Museu de História Natural. Atticus, George, Montrose e alguns amigos embarcam nessa perigosa missão sobrenatural para garantir a devolução do tesouro roubado da família.
"Hyppolita perturba o universo" é a melhor história do volume, na minha opinião. E isso é um mérito enorme porque todas as histórias do livro são excelentes. Hippolita, a mãe de Letitia e Ruby, é uma mulher de vida agitada e de muita personalidade. É astrônoma, viaja sozinha e é colaboradora do Guia. Seu passatempo favorito é visitar observatórios astronômicos pelos EUA, principalmente aqueles em que não poderia entrar. E o observatório que ela quer invadir desta vez fica numa propriedade particular pertencente a Hiran Winthrop (sim, o fantasma da mansão de Letitia). Ela vai descobrir, da maneira mais surpreendente possível, que aquele não é um observatório como os demais, pois ele mostra as estrelas "bem" de perto.
"No ano-novo, Ruby acordou branca". Esta é a frase que abre o conto "Jekil em Hyde Park", no qual Ruby consegue realizar seu maior desejo, que é arrumar emprego numa loja de departamentos muito elegante. Mas ela só consegue isso graças a um feitiço que o sedutor Caleb Braithwhite lhe ensina.
"A casa Narrow" é uma história de viagem no tempo nada convencional, na qual Montrose é convencido por Braithwhite a recuperar cadernos antigos com anotações de Hiran Winthrop que aparentemente já foram destruídos. Para isso, ele terá de fazer uma pequena viagem a casa de um certo Sr. Narrow.
"Horace e o boneco do diabo" é de longe o texto mais assustador do volume, no qual Horace, o membro mais caçula da família, tem de enfrentar uma maldição mortal que Braithwhite lança sobre ele.
"A marca de Caim" apresenta o desfecho emocionante do combate entre os nossos protagonistas e o aparentemente invencível Braithwhite e seus asseclas, com muita ação, violência, tiroteios e magia negra, é claro.
Todo o texto está repleto de referências e citações ao universo nerd, a literatura fantástica e até aos jogos de RPG, que não são gratuitas nem derrubam a suspensão da incredibilidade como geralmente ocorre nesses casos. Pelo contrário, em Território Lovecraft, todas as citações são elementos fundamentais das histórias, que não poderiam ser contadas da mesma forma sem elas.
Comparando-se o texto original com a adaptação produzida pela HBO Max, é possível dizer que esta é bastante fiel ao romance mas está longe de ter a mesma qualidade. O livro de Ruff é muito superior à versão audiovisual, que tomou liberdades para outra conclusão, alterou personagens, fundiu histórias, ignorou outras, e inventou coisas que nem estão no livro. Algumas das melhores narrativas do original ficaram de fora, outras foram tão alteradas que mal é possível reconhecê-las, além de colocar o pobre Atticus numa situação ambígua e frágil que nada tem a ver com o personagem original. Sem falar na limagem das deliciosas citações, bem como da relevante questão metalinguística, proposta logo às primeiras páginas, sobre o modo contraditório como uma pessoa preta se relaciona com a ficção científica, gênero de tradição evidentemente racista.
Recomendo a leitura do texto original de Ruff. Quem só viu o seriado não recebeu o melhor de Território Lovecraft.

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