segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O rei de amarelo, Robert W. Chambers

O rei de amarelo (The king in yellow), Robert W. Chambers. Tradução de Edmundo Barreiros, comentários de Carlos Orsi. 256 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

A história da ficção fantástica começou com a literatura gótica, passou pelo decadentismo e pelo romantismo, e só se tornou o que é hoje depois da crise econômica de 1929, que favoreceu o desenvolvimento explosivo das publicações pulp nos EUA, publicações estas que já existiam de forma incipiente desde o final do século 19. Devido ao seu caráter algo alienante (que permitia aos que sofriam com as agruras da vida algumas horas de distanciamento) e aos processos de repodução mais acessíveis, as revistas pulp tornaram-se o principal espaço de entretenimento aos que não tinham dinheiro para obter acesso à cultura, frequentar cinemas elegantes ou comprar um rádio. Os editores desses periódicos criaram e promoveram diversas estratégias para otimizar as vendas; uma delas foi criar protocolos de produção para cada gênero, de modo a promover nichos de mercado e fidelizar os consumidores. Temas, abordagens, conteúdos, tudo era cuidadosamente manipulado para que as vendas fossem as melhores possíveis. Assim, surgiram aquilo que hoje chamamos de gêneros fantásticos: a fantasia, a ficção cinetífica e o terror, que se somaram ao faroeste, que já era bastante popular. Mais tarde viriam ainda as aventuras de guerra e de espionagem, mas isso é uma outra história.
O caso é que, devido a essa operação comercial muito bem elaborada, um certo tipo de literatura acabou por desaparecer do mercado, embora continuasse a ser praticada em ambientes não "civilizados" pela literatura pulpesca. Uma literatura que não respeita os protocolos comerciais e mistura os gêneros ao ponto de não ser possível determinar a qual deles o texto pertence. Foi dessa literatura "selvagem" que se originou toda a literatura de gênero como a conhecemos hoje. 
Escritores identificados com uma das primeiras publicações do gênero, a Weird Tales – lançada em 1923 nos EUA –, foram os construtores das bases da fc&f contemporânea, como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard, Clark Ashton Smith, entre outros. Mas eles não inventaram a roda. Antes deles, autores como Edgard Alan Poe, Ambrose Bierce, M. R. James, Lord Dunsany, Jan Potocki, Evgeni Zamiátin, entre outros, já enveredavam por esses caminhos obscuros. A maior parte é bastante conhecida e respeitada, mas há muitos que ainda não tiveram suas contribuições devidamente valorizadas. É o caso de Robert W. Chambers (1865-1933), escritor americano que escreveu dezenas de novelas populares, sendo O rei de amarelo uma de suas primeiras obras, publicada originalmente em 1895. O livro reúne vários contos mais ou menos amarrados por citações e referências interligadas à ideia de uma peça, chamada justamente "O rei de amarelo", cuja leitura leva à loucura. 
A edição da Intrínseca, publicada em 2014, traz nove contos mais um conjunto de dez poemas em prosa, e a excelente introdução de Carlos Orsi que acrescenta comentários e referências ao longo de todos os textos, apontando vínculos nem sempre tão evidentes como, por exemplo, a recorrência de nomes de personagens e cenários – que o comentador indica como sintoma de uma realidade paralela na própria mitologia da obra. 
Alguns dos contos têm o raro talento de nos fazer ter pesadelos, como "O reparador de reputações", "O emblema amarelo", "A máscara", No pátio do dragão" e "A demoyselle d'Ys". Outros são terror em estado primitivo, como "A rua da primeira bomba" um pungente drama de guerra que, a certa altura, torna-se um pesadelo. E ainda, textos de caráter realista, como "A rua dos quatro ventos", "A rua de Nossa Senhora dos Campos" e "Rua Barrée", cuja relação com o conceito de "O Rei de Amarelo" é bastante transversal.
O que causa tanto interesse nessa obra de Chambers é o conceito de universo compartilhado em torno de um livro amaldiçoado que, no caso, é uma peça de teatro. Em 1970, o escritor americano James Blish publicou uma versão pessoal para a peça maldita, ainda não traduzida para o português: apesar de Chambers estar em domínio público, Blish não está. 
Lovecraft, que cita Chambers em seu famoso ensaio O horror sobrenatural na literatura, emprestou do autor, com o "Necronomicon"  livro de segredos arcanos escrito por um místico árabe –, a ideia de um livro cuja leitura enlouquece, bem como a de uma mitologia antiga que ecoa no presente. Outro mestre do horror que confessou ser influenciado por Chambers foi Stephen King, e encontramos em A torre negra referências evidentes como, por exemplo, o Rei Rubro. 
O New Weird, movimento criado em 1990 por escritores como China Miéville, Paul Di Filippo e Jeff VanderMeer, entre outros, recuperaram o estilo Weird com algum sucesso, mas são rejeitados por muitos dos leitores formados pela leitura pulpesca, uma vez que suas histórias não obedecem os protocolos aos quais estes estão habituados e ainda vêm carregadas de questões políticas incômodas. 
Apesar de não estarem vinculados ao New Weird (encerrado nos primeiros anos do século 21), outros autores conseguem trabalhar de forma bastante similar ao estilo de Chambers, como a escritora russa Liudmila Petruchevskaia e o novaiorquino David Foster Wallace, entre outros. No Brasil, os casos mais bem sucedidos são os contos de Murilo Rubião e o romance Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron.  
A Editora Avec anunciou, há poucos meses, a publicação de uma outra antologia, Carcosa: Contos do Rei de Amarelo, republicando alguns dos textos de Chambers vistos na edição da Intrínseca, ao lado de contos de Poe, Bierce e Lovecraft.
A leitura de Chambers hoje se reveste de significado na medida que aponta para soluções narrativas não alinhadas aos protocolos de gênero criados pela industria editorial, servindo pois como boa influência para fugir das cansativas e previsíveis estratégias literárias ensinadas nos cursos e oficinas de literatura criativa que pululam por aí. 

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