segunda-feira, 9 de julho de 2018

Noite dentro da noite

Noite dentro da noite, Joca Reiners Terron. 464 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2017.

Há relações evidentes entre a ficção fantástica e o Surrealismo como proposta para o discurso artístico. O atrito entre o que é e o que não é, o real e o imaginário, o desperto e o onírico é o que constrói as narrativas, formando a substância do que poderia ser. Se o Surrealismo plástico lançou mão da combinação de imagens incompatíveis, a ficção fantástica cria interferências na realidade usando o sobrenatural, o metafísico e o absurdo, costurando bem seus contornos e disfarçando com retoques do que se convencionou chamar de "suspensão da incredibilidade". Conforme o conjunto, damos-lhe a classificação de fantasia, ficção científica ou horror.
No início do período pulp, ou seja, anos 1930, os três gêneros conviviam misturados e só separaram conforme os interesses comerciais predominaram no meio editorial dos EUA. Mas os autores não vinculados ao modelo anglo-americano continuaram a trabalhar a ficção fantástica sem sectarização, e esse tipo de tratamento, ainda que muito suavizado pelas propostas modernistas, também teve representantes na literatura brasileira. É dessa forma que podemos entender a literatura que Joca Reiners Terron traz à luz em Noite dentro da noite, vultoso romance publicado em 2017 pela editora Companhia das Letras, que foi razoavelmente comentado quando de seu lançamento, mas com pouca ou nenhuma repercussão dentro do fandom brasileiro de fc&f, o que é muito imerecido. Isso porque Terron nos apresenta um trabalho denso, repleto de perturbações e literariamente sofisticado, que se estabelece tanto na tradição do fantástico latino-americano quanto na literatura brasileira recente.
O romance conta a história de um jovem que, devido a um acidente, perde toda a memória. Pouco depois, vê-se levado abruptamente para uma terra estranha – a região do Pantanal mato grossense, na fronteira com o Paraguai –, onde vai passar a adolescência como um pária, perseguido barbaramente pelos colegas na escola e convicto de que sua mãe – a quem se refere como a Rata – e o pai, um gerente de banco severo e distante, não são seus pais verdadeiros. Mas as tragédias não se esgotam aí. Sua vida vai se misturar com a de personagens míticos e históricos, como o tradutor Curt Meyer-Clason – narrador de boa parte do que lemos –, o marinheiro e cientista nazista Kurt Meier – que, apesar do nome, não é a mesma pessoa –, o assassino imortal El Cazador Blanco, um submarino fantasma do Chaco paraguaio, uma entidade vegetal referida pelo impronunciável nome de Pyhareryepypepyhare – ou a flor-vampiro –, Elisabeth Nietzsche e seu marido Bernhard Förster – que realmente fundaram uma vila anti-semita no Paraguai, em 1887 – e uma infinidade de membros da família Reiners, personagens torturados, sempre à sombra da histórica nevasca que destruiu a economia do estado do Paraná em 1975. Até a a escritora Hilda Hilst faz uma pontinha.
A história ainda passa pela Segunda Grande Guerra, pela ditadura militar, pela guerrilha do Araguaia, e chega até o período da abertura política, incluindo um atentado a bomba num comício na Candelária, no Rio de Janeiro, que mata um promissor candidato a presidência da República que, alguns poderão dizer, faz deste um legítimo romance de história alternativa.
Terron também mistura referências autobiográficas com a mais transgressora ficção, sem poupar o leitor nas passagens de violência e horror explícitos, delírios de pesadelo regados a fortes doses de fenobarbital, longos passeios de carro por estradas de terra e uma narrativa não linear que salta como uma máquina do tempo enlouquecida, avançando e recuando sem aviso prévio, com histórias dentro de história num efeito rocambolesco que amplia ainda mais a inadequação melancólica do protagonista.
Não é possível dizer que Noite dentro da noite seja um livro de ficção fantástica. Também não é possível dizer taxativamente que não é. Talvez seja o mais bem acabado exemplo de surrealismo literário já cometido em Terra Brasilis. Isso fica para o leitor decidir.
Desorientados é como saímos desta leitura complexa e angustiante, que remete à Roberto Bolaño e David Foster Wallace. Não sei quanto aos demais leitores mas, por associação, arrisco dizer que é um livro muito bom e que uma leitura é recomendável. Provavelmente, mais de uma.

2 comentários:

  1. Tem o fato de ser em segunda pessoa também, né?
    Já li livros narrados assim, mas eram curtos. Juntando isso tudo que você comentou no texto, mais o ponto de vista narrativo e a extensão do romance [quase 500 pgs], esse livro me soa como uma música de rock progressivo de 12 minutos alternando entre compassos 7/4 e 3/8.
    É, acho que vou acabar lendo! Obrigado pela resenha.

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  2. Li dele “A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-neves” dele e gostei. Tenho tb o “Não Há Nada Lá” que não li ainda mas dizem ter uma influencia maior de FC, além de nitidamente pos-moderno e com novas formas, com páginas apagadas, símbolos etc.. (uma linguagem tb usada em livros como “Areia nos Dentes” do Antônio Xerxenesky).

    Mas ainda assim esse “Noite Dentro da Noite” parece ainda mais ousado e eu gosto disso na literatura. Se não qual motivo de escrever?

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