O mercado internacional de literatura fantástica é uma bem-vinda novidade no Brasil. Como colônia cultural, o País sempre recebeu os produtos dessa indústria de forma irregular, em descompasso com os mercados estrangeiros melhor estabelecidos. Os romances chegavam por aqui com décadas de atraso, se chegavam, de forma que não se notavam suas peculiaridades sazonais de modo tão evidente quanto hoje.
Diferente da tradição local, em que o sucesso editorial depende apenas do carisma da pessoa do autor, a indústria editorial internacional pulsa ao ritmo dos bestsellers.
Quando o grande sucesso mundial era uma história de fantasia infantil (a série Harry Potter), surgiram dezenas de versões genéricas de maior ou menor qualidade. Nenhuma delas ombreou esse campeão de vendas, mas faturaram bem ou, pelo menos, o suficiente para justificar os investimentos das editoras. Em seguida, testemunhamos, já em primeira mão, o fenômeno da chiclit vampírica (a saga Crepúsculo), que detonou uma nova onda de lançamentos similares que, depois de algum tempo, acabou derivando para a chiclit erótica, afastando-se do mercado de fc&f.
O que se percebe é que existe uma corrida constante em busca do novo fenômeno comercial das livrarias. Atualmente, experimentamos o frenesi editorial pela ficção dita distópica, colocada em foco a partir do sucesso da série Jogos vorazes.
Cabe aqui um parêntesis. Apesar do sucesso de Jogos vorazes, o termo "ficção científica", gênero ao qual o romance inegavelmente pertence, foi desprezado em favor de "ficção distópica", que tem textura de novidade, "só que não", como dizem os jovens. Desde as suas origens, a ficção científica é movida pela tensão entre os polos utopia-distopia; este é o motor do gênero. Praticamente toda a produção do gênero pode ser dividida entre esses dois polos, com um avassalador predomínio da distopia, é claro, que é muito mais dramática e divertida. Dessa forma, que me perdoem os fãs, não vou evitar aqui o termo ficção científica, porque isso não faz nenhum sentido. Queiram ou não, ficção distópica nada mais é que um modo esnobe de dizer ficção científica. Fecha parêntesis.
Aos poucos, surgem no Brasil mais e mais títulos explorando a ficção científica, que andava em crise desde os anos 1980. Em 2012, a fc mostrou sinais de recuperação e voltou a crescer em 2013, assumindo a segunda posição na tríade 'fantasia-fc-horror'. Dentre os muitos romances surgidos no nicho, destaco Tabuleiro dos deuses, lançamento da Editora Companhia das Letras através do selo Paralela, primeiro volume da série A era de X, de autoria da norte-americana Richelle Mead, bastante conhecida entre os fãs de horror pela extensiva e bem sucedida série Academia dos vampiros. Temos aqui um bom exemplo de uma seguidora que superou a referência original.
A história de Tabuleiro dos deuses gira em torno da investigação de uma série de assassinatos de características ritualistas que assolam a República da América do Norte Unida (RANU), estado fechado e supertecnológico, ilha de progresso e conforto em meio ao caos econômico e climático que se abateu sobre o mundo. O governo da RANU praticamente aboliu a criminalidade a partir do controle genético e da implementação de um estado policial extremamente controlador. Contudo, ao perceber-se incapaz de identificar os criminosos, o governo decide convocar um de seus cidadão mais inteligentes, Justin March, que há quatro anos fora expulso do país por motivos misteriosos. Desde então, Justin reside no Panamá, lugar decadente e violento como é, enfim, qualquer lugar fora da RANU.
Para repatriá-lo, é convocada a pretoriana Mae Koskinen, supersoldado federal que, equipada com o mais avançado conjunto de recursos biotecnológicos de combate, é praticamente uma arma viva, característica que faz os pretorianos temidos por todos os cidadãos do mundo. Apesar dos implantes e do rigoroso treinamento, Mae está psicologicamente abalada pela morte de seu antigo amante, o que a torna especialmente vulnerável aos encantos de Justin, um canalha viciado em entorpecentes lícitos e ilícitos, com o histórico de manipular as pessoas para obter o que deseja.
Contudo, o que ninguém sabe é que Justin não é apenas inteligente, observador e desprezível. Ele está em contato direto com entidades sobrenaturais, os Corvos, seres incorpóreos que com ele dialogam mentalmente todo o tempo. E que a relação entre Justin e Mae vai muito além do amor – que logo vira ódio – e do sexo. Mae é uma espécie de gatilho que pode desencadear os eventos que permitirão que antigas divindades retomem o senhorio do planeta. Isso seria apenas uma singela história de fadas se a RANU não tivesse uma rigorosa política de repressão religiosa, que não permite que qualquer filosofia gnóstica prospere, controle este que cabia justamente a Justin executar.
Aos poucos, a autora vai revelando as peças que permitem ao leitor ter uma percepção maior desse mundo do futuro, assolado pela desigualdade social e pela carência de recursos, do misterioso histórico de Justin e da importância de Mae dentro desse intrincado plano cósmico.
Como se percebe por este rápido esboço, Tabuleiro dos deuses é muito mais sofisticado que Jogos vorazes, com um conjunto de personagens extremamente bem construídos, ambíguos e imprevisíveis, um ambiente mais rico e plausível, além de uma especulação procedente que une o impacto das tecnologias frente a uma discussão teológica relevante, a partir de um interessante blend de fantasia, cyberpunk e pós-humanismo, repercutindo a ficção científica pós-moderna tão pouco publicada por aqui, com generosas doses de sensualidade sem descambar para o apelativo.
Tabuleiro dos deuses é um livro que agrada ao leitor exigente que busca uma fc emocionalmente invasiva, de traços arrojados e texto maduro, que não opta pelo óbvio e ou pelo convencional. Altamente recomendável.
Cesar, você me convenceu. Já pedi o livro na Livraria Cultura.
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