terça-feira, 27 de julho de 2010

Final de Lost

Há alguns dias, o meu amigo Ivan Carlo fez alguns comentários em seu blogue Ideias do Jeca Tatu, sobre o final do seriado Lost, que aconteceu há alguns meses e galvanizou o interesse da audiência no mundo inteiro. Nos fóruns de discussão na internet, rolavam dezenas de teorias sobre os significados dos detalhes dessa história, que foi uma das mais criativas que a televisão já contou.
Eu também pretendia falar a respeito aqui, mas quis dar algum distanciamento para que as pessoas não fossem surpreendidas por revelações inoportunas que eu fizesse. Acredito que isso já é possível mas, caso você ainda não tenha visto o final do seriado e não quiser ser surpreendido por alguma revelação que eu inadvertidamente venha a fazer adiante, pare de ler agora. Se não, siga em frente por sua conta e risco.
Produzido pela ABC nos Estados Unidos e exibido no Brasil pela AXN, Lost contou a história de um grupo de sobreviventes de um acidente aéreo numa paradisíaca ilha do Pacífico sul, um lugar onde se manifestam fenômenos incomuns ligados a natureza magnética da Terra, que interferem no continuum espaço-tempo e impedem que as equipes de resgate a alcancem. Além do mais, essa ilha sem nome é habitada por nativos muito agressivos, que já exterminaram outros grupos humanos que por lá desembarcaram.
O seriado teve uma produção de arte luxuosa e um enorme elenco de atores internacionais, entre os quais o brasileiro Rodrigo Santoro. O estilo narrativo também era incomum, abusando de flashbacks e flashfowards que causavam um nível de estranhamento raramente visto na televisão e mesmo no cinema.
Esperava-se que a sexta e última temporada desse foco a todos os enigmas mostrados desde os episódios iniciais. Tive receio que os roteiristas insistissem em fechar a trama, reduzindo a profundidade da história ao nível de uma medíocre aventura hollywoodiana. Por sorte, isso não aconteceu. O final foi tão aberto e subjetivo que permitiu aos expectadores interpretarem-no conforme suas próprias percepções, da mesma forma que o fizeram ao longo de todo o seriado. Vi pelo menos meia dúzia de interpretações diferentes para o final da história, todas válidas sobre determinados pontos de vista, o que prova que a indefinição dos autores foi intencional. Eu, é claro, também tenho a minha.
No final da quinta temporada, um evento de natureza cósmica, envolvendo a detonação de uma improvável bomba atômica na superfície da ilha, vinculou esta realidade com uma outra, alternativa, na qual a ilha desapareceu no oceano e o acidente aéreo que deu origem à história nunca aconteceu. Cada um dos personagens tem um duplo nessa realidade alternativa, com uma história de vida já diferente mesmo antes da época em que o acidente aconteceu na realidade da ilha.
A sexta temporada narra, com a inovação de flashs dessa realidade alternativa (chamados de flashsideways) mesclados à sequência dos fatos na ilha original, como aqueles duplos despertam para as duas realidades e "seguem adiante" depois que suas vidas na ilha são reveladas.
Alguns espectadores interpretaram que essa realidade alternativa seria uma espécie de purgatório, onde as almas dos mortos na ilha passariam por uma depuração e poderiam avançar para o próximo plano. Outros consideram que todos os personagens teriam morrido no acidente aéreo, e que a ilha seria o purgatório; os que nela morressem passariam então para a tal realidade alternativa, um plano superior mais ameno e perfeito, e seguiriam adiante sabe-se lá para onde.
Na minha opinião, prefiro não considerar qualquer leitura gnóstica da história. Desde o inicio, Lost me pareceu ser um seriado de ficção científica que não comportava leituras espiritualistas. Por isso, preferi outro tipo de interpretação.
Na minha visão, as duas realidades não são planos espirituais de um mesmo universo, não estão vinculados fisicamente e não têm qualquer relação cronológica. Ambas são reais e coexistem num multiverso de realidades alternativas possíveis, dentre as quais apenas uma deve se sustentar.
Da mesma forma que nós podemos ver a Lua por completo, mas não podemos visualizar o planeta onde vivemos, os personagens não podem ter uma visão geral da própria realidade. Mas por causa do vínculo entre as duas realidades, os duplos do universo alternativo conseguem, a certa altura, perceber integralmente as vidas de seus alter-egos na dramática realidade da ilha. E concluem que as vidas que lá tiveram são melhores do que as de sua própria realidade, que o universo em que a ilha continua é melhor do que aquele no qual vivem.
Todo esse plano parece ter sido engendrado por Jacob, um homem misterioso que vive na ilha há milhares de anos. Ele articulou, ao longo de dezenas ou talvez centenas de anos, uma intrincada cadeia de eventos cuidadosamente controlados envolvendo os dois universos, cuja interação resultaria no único e suficiente colapso quântico que garantiria a sobrevivência da ilha.
Uma das leituras possíveis do final redentor do seriado, seria que os duplos do universo alternativo, convencidos do valor de suas vidas no plano cósmico de Jacob, tenham escolhido migrar para o universo da ilha, passando por tudo o que já sabem que acontecerá lá. Eles são conduzidos por Jacob, na imagem de um dos personagens da história - cujo nome revelador é Christian Shephard - e acordam na ilha, logo depois do acidente, esquecidos de suas vidas alternativas, para viverem então a realidade que escolheram.
Apenas quatro dos acidentados na ilha, vão conseguir restaurar suas memórias do universo alternativo e, com isso, também a visão ampla de suas próprias vidas no universo da ilha: Juliet, obstetra que já vivia na ilha antes do acidente, e que acionou o artefato nuclear que vinculou as duas realidades; Desmond, que tem a inexplicável capacidade de sobreviver a campos magnéticos intensos e que é o personagem-chave na tarefa de vincular os dois universos; Jack, o cirurgião depressivo que primeiro aceita a tarefa de proteger a ilha e morre enfrentando a poderosa nêmesis de Jacob, o homem-fumaça; e Hurley, o esquizofrênico gentil que sucede Jack como protetor da ilha. No caso dos dois últimos, o modo como eles restauram suas memórias alternativas é bebendo a água especial, energizada pela natureza da ilha.
Cabe aqui lembrar que Desmond, depois de sobreviver a um grande acidente eletromagnético na segunda temporada, ganhou por algum tempo a capacidade de perceber flashs do futuro: eram as memórias de seu duplo alternativo já aflorando.
A história de Lost dialoga com várias outras peças do gênero fantástico, em especial com a saga A torre negra, de Stephen King, o romance O homem do castelo alto, de Philip K. Dick, e o romance O senhor das moscas, de Willian Golding, entre outros. A propósito, referências literárias é o que não falta em Lost.
Mesmo assim, independente da interpretação do final do seriado, muitos dos detalhes da história ficaram sem explicação convincente. Os autores afirmaram que a história da ilha não era prioridade na série, mas a história dos personagens. Por isso, muito do que não foi contado em Lost poderia voltar a pauta. Tenho certeza que os produtores retomarão Lost, seja em um longa de cinema, em alguma outra série ou mesmo em livros, e algumas dessas questões abertas talvez sejam então melhor apresentadas.
Mas, mesmo que não o façam, esses mistérios continuarão a fazer parte da mitologia do seriado. Da mesma forma que estou aqui rediscutido o assunto agora, vão alimentar conversas e debates ao longo do tempo, ampliando interpretações a cada vez que o seriado for reprisado na TV.

Um comentário:

  1. Muito interessante seu ponto de vista, Cerito e, realmente, ele responde a algumas das questões que ficaram em aberto. Acho que Lost foi algo revolucionário para a TV, representando para os seriados o que Watchmen representou para os quadrinhos em termos de inovação narrativa. Mas nenhuma das versões que encontrei até agora responde ao fato de que os outros eram super-poderosos na primeira temporada e se tornaram pessoas normais na segunda em diante. Parece que isso foi mesmo um vacilo dos roteiristas...

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