terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Resenha: Estação Perdido, China Miéville

Estação Perdido
(Perdido Street Station),  China Miéville. 608 páginas. Tradução de José Baltazar Pereira Júnior e Fábio Fernandes. São Paulo: Boitempo, 2016. 

Até a publicação deste romance, o escritor britânico China Miéville era pouco conhecido no Brasil, exceto por um restrito grupo de fãs de ficção científica internacional. Apenas dois de seus trabalhos haviam sido publicados anteriormente: King Rat (2008), Rei Rato no Brasil, saiu em 2011 pela editora Tarja, com praticamente nenhuma divulgação, e The city & the city (2009), no Brasil, A cidade e a cidade, saiu em 2014 pela editora Boitempo, conhecida pelo extenso catálogo de textos socialistas, que sofre de alguma antipatia entre os fãs brasileiros de ficção científica. Além do próprio Miéville, que é filiado ao Partido Comunista em seu país e trata de questões profundamente políticas em seus textos, e também não é aceito com muito entusiasmo por esse público, ainda que tenha recebido, justamente por A cidade e a cidade, os mais prestigiosos prêmios da literatura especulativa na Inglaterra e nos EUA. Os brasileiros sempre tiveram uma certa inclinação para serem mais reais que o rei. Se torceu o nariz, que pena para você.
Perdido Street Station (2000), Estação Perdido no Brasil, foi publicado em 2016 também pela Boitempo, e é o primeiro romance da trilogia Bas-Lag, que conta com as sequências The scar (2002)* e Iron Council (2004). Trata-se de um romance de fantasia, que muitos classificam como New Weird, um estilo narrativo que não observa os protocolos comerciais dos gêneros populares e os mistura de modo indissociável. Logo, alguns poderiam afirmar que é um romance de horror, ou até de ficção científica, e não estariam errados.
É difícil de resumir, mas vou tentar. Estação Perdido conta a história de Isaac, um cientista meio maluco, que tem teses um tanto exóticas e não é muito bem visto na universidade de Nova Crobuzon, magalópole onde diversas espécies inteligentes convivem em absoluta desarmonia urbana. As coisas começam a acontecer depois que  ele é procurado por Yagharek, um nobre do povo pássaro Garuda, que caiu em desgraça diante de sua comunidade e, como punição, teve as asas decepadas. Yagharek quer voltar a voar e, para isso, oferece todos os seus recursos, que não são poucos, para que Isaac encontre uma solução. Isaac inicia então uma meticulosa pesquisa em diversos campos, entre os quais a observação direta de seres voadores. Encomenda toda espécie de animais com asas, entre os quais se encontra uma bela lagarta que se recusa a comer os alimentos que lhe são oeferecidos. Isaac não sabe, mas esse pequeno animal é um macho de uma raríssima espécie de mariposa,contrabandeada de um laboratório do governo. Não é uma mariposa qualquer. Além de inteligente, é uma devoradora de mentes cuja posse é proibida. O problema já seria bem grande se esse exemplar fosse único na cidade. Mas ocorre que há mariposas fêmeas adultas em posse do chefão da máfia de Nova Crobuzon e, quando a mariposa macho de Issac atinge a fase voadora e escapa da gaiola onde era mantida, os problemas começam a se acumular. Juntas, as mariposas passam a se alimentar das mentes dos habitantes da cidade, deixando atrás de si uma longa fila de corpos vegetativos e, em breve, vão se reproduzir. Isaac terá de mover mundos e fundos para impedir que seus amigos (e o seu cliente garuda) sejam todos mortos, pelas mariposas, pela da polícia e pelos gangsters de cidade. 
É claro que este é apenas o plano geral da obra, de onde se destacam personagens profundos e interessantes pelos quais nos afeiçoamos, incluindo a própria nêmesis de Nova Crobuzon, as mortais e impiedosas mariposas. E quando achamos que nada maior poderia aparecer, surge o Tecelão, uma aranha interdimensional que está entre os seres mais espetaculares já criados na literatura fantástica. 
O texto de Miéville é avassalador desde os primeiros parágrafos. A sensação é de ser atropelado por um rolo compressor no olho de um tornado sensorial. Alguns capítulos são tão potentes que não dá para ler de uma vez só.
Tudo é espetacular e surpreendente em Estação Perdido: o estilo barroco, a narrativa veloz, personagens desprezíveis e ao mesmo tempo cativantes, seres extraordinários descritos em seus detalhes mais sórdidos, violência e paixão em doses generosas e muitas imagens tão espetaculares que parecem uma viagem de ácido. Praticamente todos os personagens mereciam histórias próprias, pois são muitos ricos em dilemas e contradições. O mundo de Estação Perdido é exuberante em nuances, culturas e civilizações, com tudo o que isso tem de bom e ruim. E o final é de acachapar. 
Talvez o nível de escatologia esteja um pouco acima do recomendado pela indústria cultural, mas não é nada que realmente embrulhe o estômago; é só o bastante para abrir nossas defesas. E ninguém sai de Estação Perdido sem deixar algo de si por lá.
Posso afirmar, sem medo de exagero, que é um  dos cinco melhores livros de fantasia já escritos. Não é um texto fácil mas cada página vale o esforço. 

* A cicatriz, publicado pela Boitempo em 2025, com tradução de José Baltazar Pereira Júnior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário