sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

De jogos e festas

De jogos e festas, José J. Veiga. 190 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2016.

Desde 2015, quando se comemorou o centenário do nascimento do fantasista goiano José J. Veiga (1915-1999), e o catálogo do autor passou a integrar o acervo da Companhia das Letras, que iniciou a republicação de suas obras em uma coleção dedicada ao autor. Foram publicados em 2015 a coletânea Os cavalinhos do Platiplanto e os romances A hora dos ruminantes e Sombras de reis barbudos. Depois de um pequeno hiato, a coleção seguiu em frente em 2016 com o lançamento da coletânea De jogos e festas, publicada originalmente em 1980. O acabamento segue o padrão da coleção, com a capa ilustrada por Deco Frakas, mas sem capas duras desta vez.
Trata-se de uma seleta com apenas três textos, sendo duas novelas e um conto, além de um posfácio assinado por José Castello, em que comenta curiosidades sobre o autor e sua obra, principalmente a amizade com o também escritor João Guimarães Rosa.
Em respeito a opinião do autor, o volume não tem prefácio – o que é explicado por Castello –, e entra de cara na novela que dá nome ao livro e toma quase a metade de suas páginas. Esta é uma história de contornos realistas, em torno do mistério da morte de Vicente, cuja solução passa a ser o obsessão de seu irmão mais novo, Mário, que retornou à cidade natal depois de um período de afastamento. Há uma série de detalhes que o autor tece em torno desse mistério e de suas consequências familiares e sociais, mistérios estes que vão alterando a percepção e o comportamento de Mário que, aos poucos, vai assumindo a personalidade do irmão para tentar entender os motivos e o causador de sua morte, envolvendo-se com seus amigos, e demais pessoas de sue passado. A narrativa tem momentos oníricos característicos das obras de Veiga, mas sem a proposital indefinição do tempo da ação: desta vez, quando é sonho, sabemos que é.
Bem no centro do livro, temos o conto curto "Quando a Terra era redonda", o texto mais fantástico do volume. É escrito em forma de um artigo, como se fosse um texto de estudo acadêmico. Nele, o estudioso comenta, em algum momento do futuro distante, sobre as característica do mundo no tempo em que a Terra era redonda, pois em sua época ela não é mais: tornou-se chata assim com o tudo o que antes era arredondado. Assim, discute como, no passado, deveria ser a percepção de um mundo redondo, algo quase incompreensível para os habitantes do futuro. O texto é divertidíssimo, e dialoga com o clássico da ficção científica Planolâdia, do escritor britânico Edwin A. Abbott (1838-1926).
A segunda metade do volume é ocupada pela novela "O trono no morro", uma espécie de versão veiguiana a Grande Sertão: Veredas, de seu grande amigo Guimarães Rosa. O início do texto tem um tom de fantasia medieval, que vai se justificar ao final da leitura. A história é sobre Quintino que, quando jovem, foi "recrutado" pelo bando de Gumercindo Frade, cangaceiro violento que o inicia na arte da bala. Quintino sonha em voltar a vida pacífica e previsível de agricultor da qual foi sequestrado, mas seu talento com as armas acaba por torná-lo uma referência no grupo cangaceiro. Até o dia em que, depois de uma tocaia à traição que dizimou o bando, Quintino consegue escapar e se torna um pacato comerciante numa cidadezinha esquecida. O rumo da história muda radicalmente, saindo das correrias e tiroteios para uma relação social estável com a comunidade, onde Quintino vai encontrar o amor e a realização pessoal, bem como as tragédias da vida ordinária, que são tão ou mais dolorosas que aquelas enfrentadas no cangaço. Resta a Quintino a fuga para dentro de si mesmo.
Veiga nunca decepciona seus leitores. Trata-se de um verdadeiro gigante da narrativa, que faz emergir o maravilhoso das situações mais corriqueiras. Porque, afinal, a vida é por si só um milagre e cada detalhe dela é, em si, um fato tão fantástico quanto improvável, conforme o ponto de vista. Ponto de vista este que Veiga, como um experiente fotógrafo, é mestre em focalizar.

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