O karma de Gaargot, Sergio Macedo. 48 páginas, Editora Massao Ohno, São Paulo, 1973.
Volta e meia, o pesquisador de quadrinhos nacionais se depara com um nome surpreendente que, por razões imperdoáveis, não está na ponta da língua de todos os leitores. Às vezes é uma revista, que publicou obras de qualidade, mas teve uma distribuição limitada e poucos a conheceram; outras é uma hq, que apresentou um estilo inovador, mas, justamente por estar muito adiante de sua época, não galvanizou atenção; ou ainda um artista que, apesar de ter desenvolvido um trabalho meritório, caiu no esquecimento ao longo do tempo. Estes três aspectos podem ser observados simultaneamente em O karma de Gaargot, de autoria do mineiro Sergio Macedo, originalmente publicada em forma de seriado na revista Grilo nos anos 1970, e reunida em álbum em 1973 pelo importante editor independente Massao Ohno.
Primeiro, a revista. Massao Ohno deu à este álbum um tratamento sui-generis, com pranchas impressas em papéis diferentes e páginas de seda separando algumas delas, num acabamento luxuoso para os padrões editoriais da época. De muitas formas, o álbum remete ao igualmente transgressor e raro Saga de Xan, resenhado aqui.
Segundo, a obra em si. Trata-se de uma peça de ficção científica distópica sobre uma sociedade industrial dominada por um governo totalitário e totalmente dependente da tecnologia – que divide o mundo com seres híbridos de homens, animais e máquinas – quando surge um artefato desconhecido nos céus, chamado por eles de Aparição. Essa máquina indestrutível e inexpugnável é uma espécie de inteligência cósmica, que elege um único ser humano entre os oprimidos para ser transcendido. Enquanto esse homem passa pelas diversas etapas da evolução consciente e inconsciente, o governo tenta todas as formas de destruir a Aparição.
Trata-se, obviamente, de uma alegoria ao estado opressor em que o Brasil estava submetido a época da publicação e que duraria ainda muitos anos após sua conclusão. Mas é também um tratado filosófico sobre a relação com a natureza e o outro, sendo, dessa forma, uma das primeiras peças do quadrinho nacional a abordar a questão ambiental – ainda que de forma transversal – e a filosofar abertamente, algo que, anos depois, se tornara praticamente um gênero nos fanzines nacionais, batizado por seus praticantes como "quadrinho filosófico". Além disso, temos ali a estética extremamente autoral de Macedo como ilustrador, com desenhos que se desdobram em detalhes minuciosos e técnicas variadas, que passam pelo bico de pena, pincel e, especialmente, o pontilhismo, com resultados muito expressivos ainda que unicamente em preto em branco. Sem esquecer a linguagem repleta de licenças poéticas, como se fosse uma estado futuro do português.
E, finalmente, o autor. Sérgio Macedo é um caso singular nos quadrinhos nacionais. Sua obra tem aspectos extremamente ousados, afinada com as propostas político-sociais da época, quando a contracultura ainda estava muito fresca na mente dos artistas e do público. Reconhecemos mais os efeitos dessa escola na música, com o tropicalismo de Os Mutantes e Tom Zé, na poesia concretista de Augusto de Campos e Décio Pignatari, e no cinema de Glauber Rocha, por exemplo. Sérgio Macedo é o grande expoente desse momento cultural no quadrinho brasileiro, autor de um trabalho que, à época, só encontrava paralelo na arte de Philippe Druillet e Moebius, artistas europeus de vanguarda. Tanto é que, pouco depois de publicar este material, Macedo transferiu-se para a Europa e tornou-se colaborador contumaz na revista Metal Hurlant, fundada em 1975 por esses dois artistas ao lado do jornalista Jean-Pierre Dionnet, que viria a revolucionar a linguagem dos quadrinhos no mundo inteiro.
Macedo reside hoje no Taiti e continua a trabalhar para o mercado europeu, onde tem diversos álbuns publicados. Apesar de toda essa importância, o autor foi pouquíssimo publicado no Brasil. Além do O karma de Gaargot, Macedo teve publicado aqui apenas Xingu! (Devir, 2007), com uma história baseada nas experiências do autor que viveu algum tempo entre os índios kayapó. Na Europa, esse álbum recebeu o nome de Brazil! e faz parte de uma série de cinco títulos contando as aventuras do explorador Vic Voyage.
O karma de Gaargot é um trabalho que merece e precisa ser resgatado para as novas gerações, devido à importância histórica e estética que, a sua época, manteve o quadrinho brasileiro na ponta de lança do quadrinho mundial.
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