sexta-feira, 11 de março de 2011

Resenha: Erotosofia

Vou iniciar aqui a publicação de resenhas e artigos que saíram, há alguns anos, no Hiperespaço quando ainda era um fanzine publicado em papel, pois são textos que valem a pena serem relembrados.
Para começar, uma resenha do livro Erotosofia, quarto romance do escritor e cineasta português António de Macedo, publicado em 1998 pela Editorial Caminho, de Lisboa.
Macedo conta uma história vinculada ao universo de H. P. Lovecraft, notadamente aos Mitos de Cthulhu, com um texto elaborado, no estilo dos relatos oníricos do mestre do horror, como visto em A procura de Kadath, porém com uma poética mais eficaz, uma vez que originalmente desenvolvida em língua portuguesa. Uma boa dose de humor personaliza o texto, escapando meritoriamente do pastiche comum aos que arriscam imitar o cavalheiro de Providence.
O volume tem mais de 300 páginas e uma bonita capa com um detalhe da pintura "O julgamento de Páris", de Watteau.
O romance inicia de modo delicioso, tal como uma história da mitologia grega, com a cena tórrida de amor entre deuses que, por descuido da luxúria, acaba gerando potestades monstruosas. Daí, passa aos problemas dos administradores cosmogônicos – cada um mais estranho que o outro devido a suas existências em onze dimensões – dedicados a dificultar o avanço das hordas demoníacas quando em seus domínios surgem, do nada, dois seres humanos.
A história gira em torno dessas duas pessoas: Irene, uma jovem e mal-amada agente de seguros que é enviada às vésperas do Natal à pequena vila de Monte Maior para resolver um problema burocrático referente ao pagamento de um seguro, e Ricardo, respeitável professor de Monte Maior, estudioso de mitologia, que enfrenta estoicamente um casamento fracassado.
Ambos fumantes inveterados, acabam encontrando na infelicidade do outro o complemento para suas vidas vazias. Mas o que pode sugerir uma história rosa de amor, vira um pandemônio nas mãos de Macedo. A presença dos Mitos de Cthulhu é apenas um detalhe entre um emaranhado de situações surrealistas. Irene e Ricardo, na busca pela verdade sobre o desaparecimento e possível morte de um velho esquisito há exato um ano, acabam devorados por uma singularidade mágica que surge em todas as noites de Natal, no alto de uma colina assombrada: uma abertura em plena rocha que revela uma caverna repleta de objetos apenas sonhados pelos homens. Mas a abertura se fecha em 36 segundos, não permitindo ao visitante tempo maior que o necessário para apenas admirar o tesouro, o que ninguém consegue cumprir... nem mesmo nossos infelizes heróis.
Daí em diante, começa o torvelinho de acontecimentos que passam do absurdo ao cômico, do terror a ficção científica, quando Irene e Ricardo são levados a presença dos administradores cósmicos e, com isso, desestabilizam a estrutura do universo ao ponto de permitir a invasão da suprema ponte de comando por hordas de monstros, justamente quando os supremos administradores aguardam a geração de uma molécula perfeita... E como loucura pouca é bobagem, com todos os problemas que causaram, os heróis apaixonados voltam à Terra cada qual no corpo do pior inimigos do outro...
Macedo constrói toda essa cosmologia para contar sua história de amores e desamores, emulando humor e tragédia em doses perfeitas. Apresenta personagens marcantes e bem construídos que, ao final da história, nos convidam a releitura, só pelo prazer de desfrutar novamente de suas companhias. Acima de tudo, apresenta uma estrutura madura de fantasia portuguesa, moderna e tradicional ao mesmo tempo.
A ficção científica (e o horror e a fantasia) de cada povo têm que encontrar seu caminho particular. A fantasia de Macedo ecoa a antropofagia brasileira, devorando a influência estrangeira, digerindo-a e regurgitando uma arte repleta de personalidade lusitana. Erotosofia é o produto acabado da antropofagia portuguesa. Uma lição para todos nós, leitores e autores da arte fantástica em língua portuguesa.

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