Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros, Aníbal Bragança e Márcia Abreu, orgs. 664 páginas. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
Em 1944, o escritor argentino Jorge Luiz Borges publicou na antologia Ficções o conto "A biblioteca de Babel". Nessa fantástica biblioteca imaginária, os pesquisadores encontram, perfeitamente alinhados em estantes idênticas e intermináveis, um exemplar de cada livro possível de ser escrito com as combinações dos dígitos dos quais dispomos para registrar nossas ideias. Ou seja, entre muitas obras ilegíveis também estariam ali todos os livros do mundo, de todos os tempos e culturas. Entre muitas leituras possíveis, Borges sublimou ali um intenso maravilhamento frente ao mercado livreiro e à imponderabilidade de suas gigantescas tiragens e variedade.
No romance Poeira: Demônios e maldições, de Nelson de Oliveira, publicado em 2010 pela editora Língua Geral e vencedor do prêmio Casa de Las Americas, um bibliotecário surta quando livros começam a brotar por todos os lados, numa volúpia que inviabiliza a sua devida classificação.
Ambas são ficções recheadas de espanto perante a importância do livro para a civilização. O fabuloso é a argamassa da ficção fantástica, está sempre lá. Por isso, quando se quer ser surpreendido, nada melhor que abrir um livro de ficção.
Mas isso também pode acontecer com um texto de não-ficção acadêmico?
Pode. Um exemplo disso é a antologia de ensaios Impresso no Brasil: Dois séculos de livros brasileiros, organizada por Aníbal Bragança e Márcia Abreu, publicada em 2010 pela Editora UNESP e Fundação Biblioteca Nacional, comemorando os 200 anos da instalação da Impressão Régia no Brasil. Em 2011, este trabalho editorial foi agraciado pela Câmara Brasileira do Livro com o Prêmio Jabuti, na categoria Comunicação.
Geralmente, as publicações acadêmicas têm um viés tão específico e rigorosamente formatado aos padrões escolásticos que pouco ou nenhum prazer dão ao leitor leigo. São compêndios de conceitos científicos, com uma linguagem difícil e jargões impenetráveis. Contudo, enquanto conta a história da indústria editorial brasileira, a leitura desta antologia revela, como em Borges e Oliveira, um ambiente deliciosamente espetacular, nas franjas do fantástico e do mitológico.
Os organizadores têm ampla autoridade do assunto. Aníbal Bragança é português, mas tem toda a sua atividade acadêmica no Brasil. É Doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo, docente da Universidade Federal Fluminense, Coordenador-Geral de Pesquisa e Editoração da Fundação Biblioteca Nacional. É autor de Livraria ideal: Do cordel à bibliofilia (Com-Arte/Edusp, 2009), entre outros livros.
Márcia Abreu é professora do Departamento de Teoria Literária do IEL–UNICAMP, com doutorado em Teoria e História Literária na mesma Universidade, e pós-doutorado em História Cultural na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É autora dos livros Histórias de cordéis e folhetos (Mercado de Letras/ALB, 1999), Os caminhos dos livros (Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2003) e Cultura letrada: Literatura e leitura (UNESP, 2006), entre outros.
Impresso no Brasil tem a introdução do imortal da Academia Brasileira de Letras, José Mindlin (1914-2010), e em suas 664 páginas reúne 35 ensaios de autores diferentes, divididos em duas partes. A primeira, chamada "Uma nova história editorial brasileira: editores, tipógrafos e livreiros" trata da história das editoras no país. É a parte mais volumosa do livro, composta por 22 ensaios. O primeiro é de autoria do próprio Aníbal Bragança, que vai buscar os precursores da tipografia no Brasil, António Isidoro da Fonseca e Frei José Mariano da Conceição Veloso, ainda no século 18, e os motivos pelo qual seu trabalho foi interrompido por um decreto do Rei de Portugal que, por longo tempo, interditou o funcionamento de qualquer tipografia na colônia, até a instalação da Família Real aqui em 1808 e a criação da Impressão Régia.
Em seguida, Márcia Abreu trata dos primeiros livros impressos no Brasil, sendo que a estudiosa identifica O diabo coxo: Verdades sonhadas e novelas da outra vida (1707), do escritor francês Alain-René Lesage, como o primeiro deles, traduzido em 1810.
Nos capítulos seguintes, a história do livro brasileiro desdobra-se nos ensaios de um grupo selecionadíssimo de pesquisadores acadêmicos. Eliana de Freitas Dutra aborda a Editora Garnier, Alessandra El Far comenta a moda das edições baratas do fim do século 19, Marcia de Paula Gregorio Razzini insere na história as publicações didáticas que caracterizaram o início da indústria livreira paulista.
O ensaio mais empolgante do volume é o de Cilza Bignotto, "Monteiro Lobato: Editor revolucionário?", que conta como esse conhecido intelectual das letras montou a primeira rede distribuidora de livros no país.
Outra personalidade importante da nossa indústria livreira tratada neste trabalho é Ênio Silveira, da Editora Civilização Brasileira, cuja característica revolucionária, ao contrário de Lobato, não é questionada pelos ensaístas Guilherme Cunha Lima e Ana Sofia Mariz.
Já o ensaio de Gabriella Pellegrino Soares é inteiramente dedicado aos irmãos Weiszflog, fundadores da Editora Melhoramentos. Editoras que também mereceram atenção em ensaios específicos foram Companhia Editora Nacional (por Maria Rita de Almeida Toledo), Editora Abril (por Mateus Henrique de Faria Pereira) e Companhia das Letras (por Teodoro Koracakis). Outras tantas foram abordadas de forma mais genérica, em ensaios dedicados às editoras pequenas e médias (por Marília de Araújo Barcellos), editoras universitárias (por José Castilho Marques Neto e Flávia Garcia Rosa) e editoras regionais em Pernambuco (Denis Antônio de Mendonça Bernardes), Paraíba (Socorro de Fátima Pacífico Barbosa), Bahia (Luis Guilherme Pontes Tavares e Flávia Garcia Rosa) e Rio Grande do Sul (Elisabeth W. Rochadel Torresini).
Há ainda ensaios sobre a visualidade e tipologia dos livros nos séculos 19 e 20 (Isabel Cristina Alvez da Silva Frade), sobre a censura aos livros durante a ditadura militar (Sandra Reimão) e sobre a evolução do mercado editorial entre 1995 e 2006 (Fábio Sá Earp e George Kornis).
Dois ensaios destacam-se fechando esta primeira parte, por abordarem assuntos um tanto mais coloridos: Antonio Hohlfeldt trata das publicações dedicadas às crianças, citando O Tico-Tico, Sesinho, Suplemento Juvenil e Edição Maravilhosa, além de autores como Lobato, Viriato Corrêa, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Ziraldo e Maurício de Sousa, entre outros. O ensaio de Silvia H. S. Borelli é especialmente dedicado a analisar o fenômeno Harry Potter, série de livros infanto-juvenis de autoria da escritora britânica J. K. Rowling, a partir do seu desempenho no mercado europeu, com amplo espaço argumentativo conduzido por Humberto Eco, ferrenho defensor da série.
A segunda parte, intitulada "Cultura letrada no Brasil: autores, leitores e leituras" faz um levantamento histórico e geográfico das bibliotecas, salas de leitura, comunidades de leitores, organizações de autores, e trata também da obra de alguns deles.
Minas Gerais recebe a atenção nos ensaios de Luiz Carlos Villalta e Christianni Cardoso Morais, sobre as bibliotecas privadas, e de Francisca Izabel de Oliveira Galvão sobre as histórias de Lili. Marisa Midori Deaecto faz um levantamento das instituições de leitura em São Paulo, Sandra Jatahy Pesavento investiga a vida literária em Porto Alegre, enquanto Felipe Matos faz o mesmo em Florianópolis, e Maria Luiza Ugarte Pinheiro, em Manaus. A Coleção Eurico Facó recebe a atenção de Giselle Martins Venancio, e Marcello Moreira estuda a nacionalização das letras da América portuguesa.
Os trechos mais emocionantes, contudo, estão nos ensaios de Lúcia Maria Bastos P. Neves e Tania Maria Bessone da Cruz Ferreira, sobre o direito autoral no Brasil do século 19, que é muito revelador sobre a tradição nacional de não respeitar esse princípio jurídico.
João Paulo Coelho de Souza Rodrigues recupera a história da Academia Brasileira de Letras, e Ana Maria de Oliveira Galvão trata do sempre bem vindo tema da literatura de cordel.
Fecham o volume os ensaios de Maria Tereza Santos Cunha, sobre a literatura erótica de Corin Tellado e Carlos Zéfiro, enquanto Richard Romancini avalia a obra de Paulo Coelho e seus predecessores.
Ficou faltando, entretanto, um capítulo que avaliasse o impacto das novíssimas tecnologias, especialmente as publicações virtuais, na arte literária, na indústria editorial e no hábito da leitura, visto que esta é certamente a mais significativa revolução editorial no país desde a instalação da Impressão Régia em 1808.
Mesmo sendo um estudo robusto e minucioso, Impresso no Brasil: Dois Séculos de Livros Brasileiros é uma leitura agradável e surpreendentemente leve, com temas variados que atraem a atenção de uma vasta gama de leitores, não apenas acadêmicos, mas de todos aqueles que trabalham com os livros, seja em bibliotecas, livrarias, editoras, comunidades de leitura e até mesmo do público leigo apaixonado pelos livros e por sua história. Provavelmente porque os próprios autores também sejam apaixonados por esses objetos prosaicos considerados por muitos como tecnologicamente ultrapassados, mas que, um por um, compõe uma Babel nacional que nem mesmo uma fabulação de Borges ou de Oliveira poderia retratar completamente.
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