sábado, 16 de dezembro de 2017

A era das revoluções

A era das revoluções: 1789 - 1848 (The age of revolution: Europe 1789 - 1848), Eric Hobsbawm. Tradução não creditada. Edição avaliada para ebook Kindle, Edição Le Livros, sem data.

O historiador britânico Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012) nasceu no Egito sob dominação britânica. Filho de judeus, formou-se em História em Cambridge, lutou na Segunda Guerra Mundial, foi militante político de esquerda e membro do Partido Comunista britânico.
Hobsbawm produziu uma extensa e vultosa obra, dentro da qual se destaca um ensaio sobre o desenvolvimento do sistema internacional ao longo dos séculos XIX e XX, estudo este publicado nos volumes A era das revoluções (1962), A era do capital (1975) e A era dos impérios (1987),  nos quais o autor expõe detalhes do processo de formação do sistema internacional moderno a partir do desenvolvimento do capitalismo, começando na Revolução Industrial britânica e na Revolução Francesa de 1789 – que ele chama de Dupla Revolução – até a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914. A esses títulos pode-se somar Era dos extremos: O breve século XX (1994), em que o autor avança até a queda do regime soviético em 1991. Este texto resenha o primeiro volume da série, A era das revoluções: 1798-1848.
O livro está dividido em dezesseis capítulos separados em dois tomos principais nomeados "Evolução" e "Os resultados", que desdobram cada aspecto da história e dos efeitos da dupla revolução não apenas na Europa, mas também nos demais continentes influenciados pelos impérios emergentes do século XIX.
O primeiro capítulo, "O mundo da década de 1780", monta o panorama do ambiente sociopolítico europeu em que as forças pré-revolucionárias estavam em ebulição, especialmente a Grã-Bretanha e a França, dominado pelas relações de produção medieval e governado por monarquias com grandes senhores de terra e uma população servil. Manifestavam-se, em 1789, as primeiras ações da revolução industrial, com pequenos industriais assalariando camponeses em cidades ainda tão pequenas que mal se destacavam da paisagem rural que as cercava, mas onde já surgia um forte senso de identidade cosmopolita. A máquina a vapor, inventada por James Watt, e outros avanços tecnológicos nos mais diversos campos, como o da olaria, da química e da impressão, aliados à forte influência da maçonaria iluminista, foram os alicerces das grandes mudanças que revolucionariam o mundo nos 50 anos seguintes.
O capítulo 2, "A revolução industrial", detalha a agitação que tomou de assalto a Inglaterra, quando a classe dos proprietários industriais se associou à liderança política e começou a mudar as relações sociais e de produção a seu favor, com as lei dos cercamentos que expulsava os camponeses das terras onde viviam há gerações não só para ali instalarem espaços para criação de ovelhas, mas, principalmente, para dispor de um contingente inesgotável de mão de obra barata para suas fábricas mecanizadas – incluindo as mulheres e as crianças – e leis de trabalho compulsório. Tais medidas aumentaram significativamente a produtividade e os lucros, bem como a dimensão das cidades, com um acentuado declínio da atividade agrícola que levou a busca por mercados internacionais, seja para obter matéria prima, especialmente carvão, ferro e algodão para a indústria têxtil em crescimento, mas também para vender o excedente da produção. Houve resistência, como o movimento ludita, que atacava as fábricas para destruir máquinas, mas foi impossível parar a marcha do progresso.
O capítulo 3 é dedicado à Revolução Francesa. Talvez por conta do tema momentoso, é a leitura mais intensa de todo o livro. Hobsbawm classifica o período em que a Revolução Francesa ocorreu como "Era da revolução democrática", por se identificar com outras revoluções contemporâneas que aconteceram  na Bélgica, Irlanda, Holanda, Inglaterra e outros países. Suas causas foram o excesso de pressão social, os problemas financeiros da monarquia francesa, a tentativa dos aristocratas em tomar o poder, e dos burgueses, associados aos trabalhadores e camponeses pobres, para destituir a monarquia e implementar um governo revolucionário republicano. Em 1789 foi promulgada a "Declaração dos direitos do homem e do cidadão", seguida pela Revolução Jacobina de 1890. Todas essas revoluções foram acompanhadas de muita violência e acabaram por deflagar uma guerra revolucionária em toda a Europa, na qual veio a se destacar o General Napoleão Bonaparte.
O capítulo 4, chamado "A guerra", trata justamente do período de intensos conflitos militares promovidos pelo Exército Revolucionário Jacobino sob comando de Bonaparte, força pouco treinada e de recursos escassos, mas muito motivada e idealista, que acabou por conquistar todo o continente levando a mensagem da revolução burguesa. O grande inimigo da França era a Inglaterra mas, devido a dificuldade de levar a ela seus exércitos, Bonaparte optou por uma estratégia de sufocamento comercial. Contudo, os jacobinos seriam derrotados na Rússia com grande perda de efetivos ("De 610 mil homens... 100 mil retornaram"), que se seguiu a derrota total da França Napoleônica frente aos britânicos.
"A paz" é título do capítulo 5, que analisa os anos que se seguiram à queda de Napoleão, com o surgimento de novas potências na Europa, como a Rússia, Grã-Bretanha, França, Áustria e Prússia, o desenvolvimento do mundo árabe sob comando de Mohammed Ali, a expansão dos EUA para o oeste e, sem qualquer resistência,  a expansão econômica britânica para o mundo todo a partir de um forte investimento em sua frota naval.
No capítulo seguinte, "As revoluções", Hobsbawm move seu olhar para outras regiões do mundo, observando os movimentos de independência na América Latina (Grande Colômbia, Peru, México e Brasil), algumas delas de inspiração revolucionária. Observa também a organização dos primeiros sindicatos classistas na Europa e o surgimento de uma classe operária como força política autoconsciente e independente.
O capítulo 7, chamado "O nacionalismo", fecha o primeiro tomo, tratando dos movimentos nacionalistas que se espalharam pela Europa, fruto do descontentamento dos pequenos proprietários, intelectuais e de uma recém-formada classe média, impulsionados pelo surgimento de jornais e livros publicados em suas próprias línguas, bem como e o reenraizamento de populações que antes haviam emigrado de suas terras nativas.
Em seguida, o autor passa a analisar os efeitos que dupla revolução causou nas instituições econômicas e culturais da sociedade europeia.
O capítulo 8 trata da  primeira dessas instituições , "A terra", que o autor introduz da seguinte maneira: "O impacto da revolução dupla sobre a propriedade e o aluguel da terra e sobre a agricultura foi o mais catastrófico fenômeno do período". Foram três as necessidades que se impuseram à revolução industrial quando se seus estágios iniciais: 1) Transformar a aterra em uma mercadoria; 2) Dar sua propriedade a homens empreendedores; e 3) Transformar os camponeses em mão de obra assalariada. Para isso, calém da já citada lei dos cercamentos, foram tomadas diversas providências, como leis que obrigavam os desterrados a vender sua mão de obra nas cidades, a venda das terras de propriedade da Igreja e a criação forçada de uma classe rural de empresários. Tais providências foram tomadas não apenas na Inglaterra, que sofreu seus efeitos em primeiro lugar, mas também nas colônias britânicas, como a Índia, que foi intencionalmente destituída da indústria artesanal que já possuía, em favor do modelo mecanizado britânico, que trouxe muito sofrimento e miséria ao povo indiano.
Em "Rumo a um mundo industrial" o autor mostra que "de todas as consequências econômicas da época da revolução dupla, a divisão entre os países 'adiantados' e os 'subdesenvolvidos' provou ser a mais profunda e duradoura". Por volta de 1840, só a Inglaterra era industrializada, com os EUA e a Alemanha no limiar. Os aspectos mais notáveis do crescimento industrial, também chamado de "progresso", foram o crescimento populacional e dos fluxos migratórios, o incremento da comunicação, com o surgimento de novas tecnologias, como o telégrafo, e do transporte, como ferrovias e estradas, assim como o explosivo crescimento do comércio, com mudanças sociais e econômicas rápidas e radicais, crescimento das cidades, dos parques industriais e do mercado financeiro.
O capítulo 10, "A carreira aberta ao talento", trata de um fenômeno derivado da dupla revolução, que foi permitir alguma mobilidade social a partir do domínio de habilidades específicas. "O principal resultado da Revolução na França foi o de pôr fim à sociedade aristocrática. Mas não significou o fim da influência aristocrática", diz o autor. Pois a burguesia assenhorou-se dos valores culturais da aristocracia, que se tornaram ainda mais dominantes com o avanço da revolução industrial através da ação dos jornais e da publicidade. Eram quatro os caminhos possíveis para o exercício do talento: os negócios, a educação (que inclui a ciência, a burocracia e o profissionalismo liberal), a política e a guerra.  Ou seja, uma pessoa de origem desfavorecida poderia ascender socialmente caso dominasse uma das habilidades valorizadas pela sociedade capitalista revolucionária. A criação na França dos exames seletivos, usados até os dias de hoje, tinha o objetivo claro de selecionar uma elite intelectual.  A famigerada família Rothschild é um exemplo de sucesso no setor de negócios, pois eram de origem judaica, um povo recorrentemente mantido à margem da sociedade. A propósito, os judeus foram os que melhor aproveitaram essa oportunidade, destacando-se também nas artes, na ciência e na política. A máxima de Hobsbawm é uma verdade válida até os nosso dias: "O homem que não tivesse demonstrado a habilidade de chegar a proprietário não era um homem completo e, portanto, dificilmente poderia ser um cidadão completo".
O capítulo 11 analisa "Os trabalhadores pobres". Ao indivíduo que não possuísse uma das virtudes valorizadas, restavam três alternativas: lutar para se tornar um burguês (o que era virtualmente impossível), aceitar ser explorado (que levava à depressão, doenças e alcoolismo em massa) e a rebelião (visto que o emprego não era muito melhor que a escravidão). A revolução trabalhista era, pois, uma alternativa quase que compulsória. Logo se formaram uma consciência de classe e uma ambição de classe.
Em "A ideologia religiosa", Hobsbawm observa a influência da revolução dupla sobre as religiões. Por muitos séculos, o cristianismo foi de tal forma dominante na Europa que o termo "cristão" era usado como sinônimo de "homem". A dupla revolução mudou o panorama social, descolando-o de seus aspectos religiosos, secularizando as massas, descristianizando os instruídos e estabelecendo uma moralidade anticristã, com o desenvolvimento de muitas seitas de caráter racionalista. Contudo foi o protestantismo, praticado desde o século XVI, o mais beneficiado devido à convergência de valores fundamentais com o capitalismo burguês. Também foram evidenciadas seitas de caráter integralista, que apresentavam aspectos extremistas como intransigência e histeria religiosas. Da mesma forma, houve um considerável avanço do islamismo no oriente. Em todas as regiões também se observou uma reaproximação entre Estado e Igreja, com a religião se tornando defensora do Estado que, por sua vez, instrumentaliza a religião como mais uma de suas ferramentas de dominação.
No capítulo 13, o autor faz o contraponto abordando "A ideologia secular", apoiada essencialmente nos significantes de "progresso", palavra tão poderosa que praticamente ninguém pode contradizer sem desmoralizar a si próprio. O progresso passa a ser visto como um aspecto na natureza humana, sem a qual a vida é impossível. Essa ideologia, filha do Iluminismo e do Racionalismo, abriu caminho para o Utilitarismo de Bentham e Mill, para o Liberalismo de Smith e Ricardo, e para o Socialismo de Marx e Engels. Pois o que diferencia o Liberalismo do Socialismo não são seus objetivos, que são os mesmos, mas os métodos para atingi-los; pois o primeiro vê a sociedade como um aglomerado de indivíduos autônomos, e o socialismo acredita que o homem é basicamente um ser comunitário. A Alemanha foi grande tributária do pensamento político desse período, onde surgiram os conceitos de Materialismo, Empirismo Filosófico e Filosofia Natural.
O capítulo seguinte debruça-se sobre "As artes", que floresceram como nunca sob influência da revolução dupla potencializada pelo nacionalismo. Os artistas se envolveram com as questões públicas, evidenciado o caráter político em suas obras. A música, a pintura e a literatura cresceram em importância, enquanto a arquitetura perdeu espaço para a engenharia, mais afeita aos valores da revolução industrial. A filosofia naturalista, que propunha a religação do homem a sua natureza, estabeleceu o paradigma do Romantismo, reação ao Classicismo que se desdobrou em praticamente todas as artes desse período. Os românticos viam o homem do campo como um exemplo de virtudes incontaminadas, a "alma do povo". Desenvolveram-se, pois, as grandes epopeias nacionais, os cancioneiros folclóricos, as coletâneas de histórias populares e o cordelismo, embora entre a burguesia o padrão de cultura fosse o do nobre inglês, fruto da supremacia da Grã-Bretanha naquele mundo sob influência da dupla revolução. É aparentemente aqui que se estabelece a profunda distinção entre a arte oficial e a arte popular, que até hoje ecoa o abismo criado pelo capitalismo entre os países centrais desenvolvidos e os periféricos subdesenvolvidos.
"A ciência" é o último aspecto analisado por Hobsbawm neste volume, apontando que o período foi berço de "novos pontos de partida radicais", principalmente no campo da matemática, da química, da física eletromagnética e da astronomia, que resultou no forte crescimento no número de cientistas e eruditos na Europa. Também foi nesse período que se desenvolveram os estudos da vida a partir de ciências inorgânicas, com o desenvolvimento de novas ciências, tais como Geologia, Sociologia, Psicologia, Ciências Biológicas, Filologia, Antropologia, Etnografia, Pré-História e a Paleontologia, entre outras, assim como nas descobertas da química orgânica, do evolucionismo histórico e da evolução das espécies. 
O capítulo 16 encerra este estudo com "Conclusão: Rumo a 1948". O autor define o período 1789-1848 como "o meio século mais revolucionário da história" e "uma época de superlativos", com o aumento do desenvolvimento técnico, industrial e científico, aumento populacional, da pobreza, concentração de renda com pouco desenvolvimento da estrutura política e social, e o surgimento da "classe média". A grande depressão da década de 1840, com quebra de safras, fome, miséria e grandes migrações em massa, somada ao aumento contínuo da tensão social levaria o mundo da dupla revolução à grande revolução em 1848.
Ler A era das revoluções: 1789 - 1848 não é tarefa fácil. Trata-se de um texto longo repleto de detalhes que precisam ser lidos com muita atenção, e revela ainda mais detalhes nas segunda e terceira leituras devido ao diálogo entre suas partes. Recomendo a leitura de uma edição oficial, preferencialmente impressa, pois a edição da Le Livros é a pior possível, com muitas gralhas, sem créditos e sem as notas de rodapé que também são muito importantes para a perfeita compreensão de todos os significados do texto. Louva-se o esforço do editor em acrescentar à edição a seção de mapas, contudo ela se torna pouco útil sem a presença dos demais conteúdos. Além do que a visualização dos mapas na pequena tela do Kindle não é favorável, como seria de se desejar.
Ainda assim, a leitura de A era das revoluções: 1789 - 1848 é uma experiência comparável apenas a de grandes clássicos da literatura. Ou seja, se não é obrigatório, deveria ser. Mesmo com todos os problemas desta edição, o resultado é uma série de revelações importantes sobre a natureza da sociedade moderna e do homem, que motiva fortemente o leitor para os demais volumes da série.

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