Naquela época tínhamos um gato/Os saltitantes seres da Lua, Olyveira Daemon. 216 páginas. São Paulo: edição de autor, 2023. Ebook.
Afinal, quem é Olyveira Daemon?
Não há mistério. Trata-se da personalidade pós-lobotômica do ser fragmentário antigamente conhecido por Nelson de Oliveira, escritor mainstream, ou quase isso, que logrou ganhar o Prêmio Fundação Cultural da Bahia por sua primeira coletânea, Os saltitantes seres da Lua, publicada em 1997. E, como se não fosse suficiente, abiscoitou também o importante Prêmio Casas de Las Américas em 1998 pela coletânea Naquela época tínhamos um gato (escrita antes, publicada depois), ambas reunidas agora em uma única edição, "parcialmente revisada", como diz o próprio Olyveira na página de rosto da nova edição.
Quando ganhei uma cópia deste livro, o autor mandou jogar fora as edições anteriores. Talvez as revisões não tenham sido tão parciais assim. De qualquer forma, foi uma ótima iniciativa recuperar essas duas publicações que estavam esgotadas e eram difíceis de encontrar. Embora eu me recorde de ter lido Naquela época tínhamos um gato por volta de dez anos atrás, todos os contos, de ambos os títulos, me pareceram tão fresquinhos como se tivessem sido escritos agorinha mesmo.
Lembro que, na primeira leitura, já havia ali o indisfarçável experimentalismo com estilos de discurso e linguagem, que me causou mais estranhamento do que os enredos propriamente ditos. Desta vez, os experimentos estão ainda mais acentuados e levam o leitor desavisado ao quase desespero cognitivo. Sobrevivi porque já esperava por isso mas, mesmo assim, a leitura desta reedição é uma experiência estética incomum.
Olyveira Daemon não dá trégua ao leitor. De um texto em que todas as letras "i" são substituídas por "y" e as "c" por "k", segue-se outro escrito em portunhol, e outro no qual os pontos finais são trocados por barras verticais, sinais de parágrafo (§) e outros grafismos, ou em que as letras "o" viram círculos pretos, ou certas palavras são substituídas por falsos cognatos muito marotos, ou os nomes dos personagens antecedem suas falas como em um roteiro de teatro, e assim por diante. Quanto mais avança a leitura, mais profundas as ousadias.
Mas não só de experimentos de linguagem vive o heterônimo de Nelson de Oliveira. As histórias também são arrojadas, indo do realismo naturalista de "Éramos todos bandoleiros", e ">Os insetos , o silêncio", passando pelo absurdismo de "Kadáver kauteloso eskondido num baú" e "Encanador", pela fantasia de "A vysão vermelha de Vyctor, ao vento", pelo humor escrachado de "Qüiprocó na Sé", até pela ficção científica de "The body snatchers". Alguns são curtinhos, praticamente vinhetas de duas ou três páginas, outros são robustos, ocupando dezenas delas, formando uma seleta de trinta contos no total. Em alguns intervalos entre os contos, surgem comentários espirituosos do autor, chamados de "Notas-anedotas" que ajudam a contextualizar os textos quanto às propostas do autor. O volume é completado por um prefácio assinado pelo jornalista e também escritor André Cáceres.
A coletânea é empolgante quanto as perspectivas que propõe para a estética literária, especialmente com relação a ficção fantástica que tem na suspensão da descrença um fundamento considerado incontornável e que é extemamente vulnerável ao mais leve experimentalismo na linguagem.
Olyveira Daemon prova que a fcf brasileira engatinha no que se refere a ousadia formal, mas temo que os autores do gênero talvez não comprem a ideia com facilidade. Um dia, quem sabe?
Enquanto isso, festejamos o fato de existir um Olyveira Daemon para sacudir os protocolos embolorados da velha pulp fiction.
Enquanto isso, festejamos o fato de existir um Olyveira Daemon para sacudir os protocolos embolorados da velha pulp fiction.
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