Contos do Sul, Simone Saueressig. 96 páginas. Capa de Marciano Schmitz. Novo Hamburgo: edição da autora, 2012.
A escritora gaúcha Simone Saueressig é um nome significativo no fandom brasileiro de ficção fantástica. Autora premiada e experiente, Simone surgiu por volta de 1983 nas páginas do boletim do já extinto Clube de Ficção Científica Antares, de Porto Alegre. Logo profissionalizou-se como autora de livros de fantasia infanto-juvenis, tais como os romances O palácio de Ifê (1989) e A máquina fantabulástica (1997), publicados pelas prestigiosas editoras L&PM e Scipione, respectivamente.
Simone viveu na Espanha durante cinco anos e voltou ao Brasil em 1999, quando retomou suas carreiras de professora de dança flamenca e escritora. Logo nos primeiros tempos de sua volta, a dificuldade em restabelecer o contato com as antigas editoras levou a publicar ela mesma o livro Um vulto nas trevas (2004). Embora tenha depois reconquistado seu espaço no meio editorial, gostou da experiência de autopublicação e passou a se utilizar mais vezes desse expediente.
Contos do Sul é uma dessas iniciativas, coletânea com cinco contos de horror que usam como tema as lendas e mitologias gauchescas. O título do volume faz referência ao importante livro de Simões Lopes Neto, Lendas do Sul, publicado pela primeira vez em 1912. A própria Simone comenta a obra, neste trecho transcrito da apresentação do volume:
"Contos do Sul aborda quatro criaturas folclóricas: a Iara em sua forma original de ypupiara, o lobisomem, a mula-sem-cabeça e o Saci. A exceção é o Diabo, que não pode ser considerado folclore brasileiro, já que é universal na área de abrangência da cultura cristã, e não é tema da Lendas do Sul."
O primeiro texto é o excelente "A cisterna", uma história vigorosa e assustadora, que está entre as melhores peças do gênero já escritas por um autor brasileiro. Conta a aventura de um grupo de crianças por uma mata próxima de suas casas. Em algum lugar ali existe uma espécie de piscina artificial, larga e funda, onde alguma coisa estranha vive. Curiosas, as crianças sobem numa árvore para olhar o ser que se move sob as águas escuras, logo abaixo dos galhos. O pouco que se pode observar revela voluptuosos contornos femininos que fascinam os garotos. Mas tudo se complica de verdade quando a coisa começa a falar.
Em "O cemitérios dos cães", investigadores da polícia escavam um terreno próximo a um canil, e encontram pistas que comprometem seriamente a versão do proprietário para o desaparecimento de seu filho. Apesar de ser uma narrativa curta em que as cenas de horror são rápidas e imprecisas, trata-se de um conto de forte expressão emocional.
"O galpão" é a história com o diabo, citada por Simone na apresentação. O vínculo com a cultura sulista vem na forma de uma pequena cidade interiorana, tão pequena que nem cemitério tem. De vez em quanto, passa por ali um trem, conduzindo passageiros e, principalmente, levando os caixões com os mortos do lugar, para serem enterrados em uma outra cidade. O que é uma mão na roda para Klaus, que aproveita o fato de ser o encarregado de despachar os cadáveres para antes dilapidá-los de seus pertences sem que ninguém desconfie. Para passar o tempo, Klaus atrai crianças e vagabundos para o galpão onde são armazenados os cadáveres até a passagem do trem, e ali os assassina por pura diversão. Depois, desfaz-se dos corpo de suas vítimas nas fossas de um curtume desativado. Quando um desconhecido chega a cidade, Klaus logo sente o sangue ferver pela expectativa de mais uma noite de diversão macabra. E, para melhorar, o homem traz uma brilhante corrente de ouro no pescoço, o que vai unir o útil ao agradável.
É o texto mais moralista da coletânea, mas tem personagens muito bem delineados e uma ótima ambientação. Simone chegou a me mandar a foto de um desses tenebrosos buracos de curtume, coisa comum na região.
"O farol" vai para a beira do mar, onde o solitário faroleiro recebe a visita do chefe, que veio entregar suprimentos. Quando desaba um grande temporal, ambos têm que se abrigar no interior do farol. No meio da chuvarada, uma mulher bate à porta e o faroleiro a despacha bruscamente, o que intriga o seu superior. O faroleiro explica que ela é uma mulher meio doida quee pediu para se abrigar da chuva no galpão e ele deixou, mas o homem se indignou: devia ter deixado a infeliz entrar no farol com eles, que é mais protegido. Quando começa a soar uma zoada estranha do lado de fora, o homem não atende aos pedidos do faroleiro e abre a porta do farol para ver o que é, e o fim do mundo espalha-se sala adentro, escoiceando e queimando tudo. O que aconteceu, só saberemos dias depois, no hospital. Apesar de ser uma história de pouca tensão, os parágrafos que descrevem as cenas de confusão dentro da sala do farol são vívidas e impressionantes, e fazem valer a história.
O último conto da antologia é "O saci", conto "Destaque" do 3º Prêmio Habitasul Revelação Literária na Feira, de 2003, e publicado então no livro do evento. É o conto mais longo da coletânea, mas isso não significa muito porque os textos são todos mais ou menos do mesmo tamanho. Lembra as histórias de Ray Bradbury, com circos assombrados em que acontecem coisas estranhas, mas a poesia de Simone não é igual à do escritor norteamericano, além do que a ambientação bem desenvolvida, assim como a cultura gaudéria que encharca o texto, não permitem que se realize maiores comparações.
A história conta sobre um jovem, pré-adolescente que, ao visitar a feira de esquisitices de um circo itinerante, vê a oportunidade de ter sua iniciação sexual com a dançarina da trupe. Mas, para isso, ela exige que o menino traga o saci que, inadivertidamente, ele revelou que seu avô guarda aprisionado numa garrafa. Mesmo temendo a maior bronca de sua vida, o menino rouba a garrafa onde a coisa presa demonstra toda a sua fúria, e a leva para a garota, ávida por uma atração realmente incomparável para o circo. Nada mais direi, exceto que este saci tem muito pouco a ver com aquele que Monteiro Lobato tornou popular.
Contos do Sul tem formato de bolso e apenas 96 páginas, sendo um livro que se pode ler de um só fôlego. Mas as histórias são tão intensas e surpreendentes que acabamos lendo cada uma delas mais de uma vez, só pelo prazer reviver as histórias. Especialmente "A cisterna" e "O saci", que são peças de qualidade inegável, representantes de uma dark fantasy brasileira autêntica, que não abre mão de personagens bem estruturados e situações realmente assustadoras, e que não se deixa cair na caricatura e no estereótipo.
Simone sabe, como poucos, manipular as emoções do leitor e conduzir a tensão das histórias em direção ao melhor resultado dramático possível. É uma autora de posse de toda a sua competência técnica, que se movimenta com desenvoltura num gênero que lhe parece tão familiar quanto a própria cultura que herdou de seus antepassados. E faz parecer de tal forma natural que nos perguntamos: por quê há tão pouco disso na literatura nacional?
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