Geração Subzero: 20 autores congelados pela crítica mas adorados pelos leitores, Felipe Pena, org. 320 páginas. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Geração Subzero foi certamente o livro de ficção fantástica brasileira mais comentado em 2012. Desde muito antes de seu lançamento, já era assunto nas redes sociais e, quando do lançamento, rapidamente ganhou resenhas em publicações importantes que a ficção de gênero raramente atinge.
Toda essa atenção foi fruto das inteligentes provocações implícitas em seu título, que faz referência explícita à prestigiosa antologia mainstream Geração Zero Zero: Fricções em rede (2011, Língua Geral), organizada por Nelson de Oliveira, e também porque exagera nas tintas de um suposto confronto entre os autores de gênero e a crítica literária.
O tom provocativo continua forte na longa introdução do volume, assinada pelo organizador, Felipe Pena, que é jornalista, escritor, professor e doutor em Literatura pela PUC, com pós-doutorado pela Universidade de Paris. Um currículo acima de qualquer suspeita, portanto. Essa introdução revela alguns dos objetivos de Pena quanto ao público que ele busca para o livro. O discurso soa como uma pregação, não para os convertidos, mas para o público leigo e, especialmente, para os intelectuais das letras. Isso fica claro porque Pena retoma assuntos superados há anos no fandom, como se os autores de fc&f ainda estivessem preocupados com as antipatias do mainstream tanto quanto já o foram no passado. Até mesmo um manifesto faz parte dessa apresentação, o "Manifesto Silvestre", que propõe elevar o entretenimento à categoria de arte. O conflito entre a literatura de gênero e o mainstream realmente foi pauta entre os autores-fãs nos anos 1990, mas a própria evolução do mercado editorial tratou de reduzi-la à devida estatura.
Mas é na leitura dos contos que se percebe a seriedade do trabalho de Pena. A antologia publica vinte contos, cujos critérios de seleção foram bastante científicos, como é de se esperar de um doutor em literatura. Nada do "gostei- não-gostei" e dos bairrismos comuns nesse tipo de dinâmica. Pena não é um iniciado nos corredores do fandom e conseguiu escapar muito bem deles. Seus critérios, que partiram principalmente da presença dos autores nos ambientes frequentados pelos leitores de gênero e a receptividade que cada um dele goza dentro dessas comunidades, conseguiram ser bastante precisos quanto ao instantâneo do estado da arte da ficção de gênero praticada hoje no Brasil. Não é um portfólio para inglês ver, nem uma antologia revolucionária. É um retrato, um recorte como dizem os acadêmicos, do panorama médio da fc&f nacional neste início de século.
Um antologista geralmente busca a excelência, reunir num único volume os melhores textos de uma escola ou de um gênero. Mas Pena não estava interessado nisso. Então, o livro passeia por vários gêneros, indo do mistério à ficção científica, reunindo autores de vários estilos e competências.
Não vou abordar conto a conto porque isso tornaria a leitura enfadonha, mas alguns deles merecem ser comentados.
A primeira metade da antologia é mediana, mas salta aos olhos o conto "O índio do abismo sou eu", de Luiz Bras, heterônimo do experiente escritor Nelson de Oliveira acima citado que, dessa forma, subscreve a proposta de Pena. Bras tem desenvolvido sua carreira exclusivamente no gênero da ficção científica, abordando temas atuais com um estilo maduro e consistente, qualidades presentes também neste texto que conta a história de uma mulher que sofre de uma doença terminal incurável. Congelada até a cura ser descoberta, quando volta a consciência, muito anos no futuro, ela é sequestrada por um grupo de ativistas políticos que pretende retirar dela todos os órgãos para suprir transplantes em pessoas carentes. A narrativa salta continuamente entre o tempo objetivo natural e um tempo subjetivo virtual, que acontece apenas na mente da protagonista.
A segunda parte da antologia sobe bastante de qualidade, principalmente a partir de "Entrevista com o saci", de Martha Argel, autora da segunda geração da ficção científica brasileira, nos anos 1990, que depois enveredou pela literatura de horror, na qual obteve sucesso e reconhecimento. Martha é cientista, doutora em ornitologia com muitos trabalhos acadêmicos publicados, além de diversos romances e coletâneas de horror. O conto, cujo título homenageia a escritora americana Anne Rice, fala sobre uma psicóloga de um asilo que conhece um velhinho solitário cheio de histórias revoltantes para contar.
Janda Montenegro é uma jovem autora carioca, formada em Letras pela UFRJ, que também tem alguns livros publicados. Sua contribuição para a antologia foi "Outras onomatopeias", conto absurdista situado nas franjas da ficção fantástica. A história, rápida e pungente, conta o drama improvável que um escriturário medíocre passa ao ser abordado por uma estranha "blitz" nas ruas do Rio de Janeiro. O final esconte uma piadinha, mas ela é tão cruel que evoca tons de humor muito obscuros.
Delfim, que além de escritor é editor e jornalista especializado em quadrinhos, assina "O escritório de design publicitário", um conto na linha absurdista de Murilo Rubião, que fala a respeito de um jovem que vê sua vida irremediavelmente comprometida por causa de seu estranho emprego novo.
"A lua é uma flor sem pétalas", de Cirilo Lemos, autor do romance O alienado, é um conto de ficção científica cyberpunk que, com muita ação e violência, conta uma história de guerra entre gangues de uma superfavela futurista.
Além dos autores já citados, o livro também apresenta textos de André Vianco, Eduardo Sphor, Thalita Rebouças, Carolina Munhóz, Eric Novello, Raphael Draccon, Ana Cristina Rodrigues, Juva Batella, Estevão Ribeiro, Pedro Drummond, Luis Eduardo Matta, Sérgio Pereira Couto, Julio Rocha, Helena Gomes e Vera Carvalho Assumpção, alguns deles verdadeiros pesos pesados da literatura de gênero, que, não raro, figuram nas listas dos mais vendidos. Muitos deles são experientes na literatura de gênero, especialmente no campo infanto-juvenil, aos quais o organizador também gosta de definir com a máxima “Escrever fácil é muito difícil”. Certamente que cada um deles têm, em seus repértórios, contos bem superiores aos vistos nesta antologia mas, como já foi comentado aqui, não era esse o objetivo do organizador. Cabe também lembrar que todos os autores cederam os direitos de seus contos em favor da ONG Ler é Dez, Leia Favela.
Contudo, Geração Subzero ainda esconde uma última pérola. Trata-se do conto "A invenção do cânone", do próprio Felipe Pena, publicado no corpo da apresentação do livro como uma espécie de ilustração. Trata-se de uma ficção absurdista que mostra o diálogo entre um casal de intelectuais numa casa de chás em Paris. Divertidíssimo e repleto de significados.
Geração Subzero poderia ser melhor, é claro. Mas não é esse o mérito do trabalho de Pena. A partir de um olhar suficientemente distanciado e amplo, Pena consegui apresentar um panorama realista das virtudes e pecados da ficção de gênero praticada no Brasil. Para o bem ou para o mal, é o que somos. E contra isso não há como argumentar.
domingo, 30 de abril de 2023
sábado, 29 de abril de 2023
Lançamento: Onde não mais
Onde não mais é uma antologia de ficção fantástica organizada por Bruno Neppo, Francisco Barbosa e T. S. Dantas para a editora Histórias Incompletas. Traz sete contos inéditos dentro dos temas gênero e diversidade, religião e política, racismo e monopólio tecnológico, assinados por Gerson Lodi-Ribeiro, Darlon Carlos, Luiz Felipe Sá, Marcelo Oliveira e pelos prórios organizadores.
O volume tem 278 páginas e está disponível unicamente em edição digital, aqui.
O volume tem 278 páginas e está disponível unicamente em edição digital, aqui.
Lançamento: Língua Nativa
Finalmente, 2023 começou para a ficção fantástica no Brasil. Depois de meses de predomínio das campanhas de financiamento direto, enfim começaram a pipocar os primeiros lançamentos convencionais.
A editora Aleph anunciou há pouco a pré-venda de Língua nativa, romance de ficção científica de autoria da escritora americana Suzette Haden Elgin (1936-2015), sendo este o seu primeiro trabalho traduzido aqui. Professora da Universidade de San Diego e pesquisadora em linguística experimental, Elgin levou para este romance toda a sua experiência acadêmica.
Publicado originalmente em 1984, conta a história de mulheres oprimidas num futuro em que o machismo e a misoginia são exacerbados a um nível nunca visto e, para escaparem da opressão, criam toda uma nova língua.
Diz o texto de divulgação: "Em 1991, o direito feminino ao voto e à participação política são sumariamente revogados. Em 2205, são consideradas úteis apenas as mulheres que podem servir aos homens em cargos específicos e a eles subordinados. Contudo, a economia mundial depende de um número reduzido de mulheres linguistas, que atuam como tradutoras em negociações entre povos alienígenas e corporações familiares da Terra. Quando perdem sua utilidade, elas são enviadas para as Casas Estéreis, onde apenas aguardam a morte. Mas um pequeno grupo de mulheres vem desenvolvendo clandestinamente uma linguagem própria para resistir à opressão masculina. É nesse cenário que a linguista Nazareth Chornyak chega à Casa Estéril de sua Família. Dona de talentos únicos, ela pode ser peça-chave de um movimento audacioso: desafiar o poder dos homens e dar início à revolução."
Língua nativa tem 440 páginas, tradução de Jana Bianchi e está disponível no site da editora, aqui.
A editora Aleph anunciou há pouco a pré-venda de Língua nativa, romance de ficção científica de autoria da escritora americana Suzette Haden Elgin (1936-2015), sendo este o seu primeiro trabalho traduzido aqui. Professora da Universidade de San Diego e pesquisadora em linguística experimental, Elgin levou para este romance toda a sua experiência acadêmica.
Publicado originalmente em 1984, conta a história de mulheres oprimidas num futuro em que o machismo e a misoginia são exacerbados a um nível nunca visto e, para escaparem da opressão, criam toda uma nova língua.
Diz o texto de divulgação: "Em 1991, o direito feminino ao voto e à participação política são sumariamente revogados. Em 2205, são consideradas úteis apenas as mulheres que podem servir aos homens em cargos específicos e a eles subordinados. Contudo, a economia mundial depende de um número reduzido de mulheres linguistas, que atuam como tradutoras em negociações entre povos alienígenas e corporações familiares da Terra. Quando perdem sua utilidade, elas são enviadas para as Casas Estéreis, onde apenas aguardam a morte. Mas um pequeno grupo de mulheres vem desenvolvendo clandestinamente uma linguagem própria para resistir à opressão masculina. É nesse cenário que a linguista Nazareth Chornyak chega à Casa Estéril de sua Família. Dona de talentos únicos, ela pode ser peça-chave de um movimento audacioso: desafiar o poder dos homens e dar início à revolução."
Língua nativa tem 440 páginas, tradução de Jana Bianchi e está disponível no site da editora, aqui.
sexta-feira, 28 de abril de 2023
Relançamento: Naquela época tínhamos um gato + Os saltitantes seres da Lua
Duas coletâneas raras, originalmente publicadas entre 1997 e 1998, retornam revisadas e reunidas integralmente num único volume, agora subscritas e editadas por Olyveira Daemon.
Também conhecido como Nelson de Oliveira e Luiz Brás, entre outros heterônimos, Olyveira Daemon é escritor, ensaísta, antologista e coordenador de oficinas de criação literária; venceu duas vezes o Prêmio Casa de las Américas (1995 e 2011), um deles justamente por Naquela época tínhamos um gato (o outro foi pelo romance Poeira: demônios e maldições). Já Os saltitantes seres da Lua foi agraciado com Prêmio Fundação Cultural da Bahia.
As coletâneas foram publicadas antes do autor declarar sua opção pela ficção científica, mas já se observava nelas o irresistível pendão para o fantástico.
O volume teria 216 páginas se fosse impresso, mas está sendo ofertado unicamente em formato virtual, aqui. Certamente um investimento que vale muito a pena.
O volume teria 216 páginas se fosse impresso, mas está sendo ofertado unicamente em formato virtual, aqui. Certamente um investimento que vale muito a pena.
Lançamento: Vozes intergalácticas
Acaba de ser publicada a antologia internacional Vozes intergalácticas, com dezenove contos de ficção científica vindos de Brasil, Portugal, Suíça e França, organizados por Lu Evans para o selo Nebula da plataforma UICLAP.
Apresenta textos de autores conhecidos no fandom como João Barreiros, Simone Saueressig, Roberto de Sousa Causo, Ana Lucia Merege, Tibor Moricz e Octávio Aragão, e novos nomes como Eloïz Vall, Nuno Almeida, Liana Zilber Vivekananda, Lívia Borges, Marcia Medeiros, Rodrigo Ortiz Vinholo, Nuno Ferreira, Sandra Menezes, Romy Schinzare, A. M. Catarino, Gilson Cunha, Anthony Boulanger e da própria organizadora. O prefácio é assinado pelo escritor colombiano Jhon Sanchéz.
A edição impressa tem 274 páginas e pode ser adquirida aqui, mas a versão digital está disponível gratuitamente aqui. Recomendo agilidade aos interessados, pois essa gratuidade pode ser temporária. Aproveite.
Apresenta textos de autores conhecidos no fandom como João Barreiros, Simone Saueressig, Roberto de Sousa Causo, Ana Lucia Merege, Tibor Moricz e Octávio Aragão, e novos nomes como Eloïz Vall, Nuno Almeida, Liana Zilber Vivekananda, Lívia Borges, Marcia Medeiros, Rodrigo Ortiz Vinholo, Nuno Ferreira, Sandra Menezes, Romy Schinzare, A. M. Catarino, Gilson Cunha, Anthony Boulanger e da própria organizadora. O prefácio é assinado pelo escritor colombiano Jhon Sanchéz.
A edição impressa tem 274 páginas e pode ser adquirida aqui, mas a versão digital está disponível gratuitamente aqui. Recomendo agilidade aos interessados, pois essa gratuidade pode ser temporária. Aproveite.
quinta-feira, 27 de abril de 2023
Lançamento: Arca de Clay
Seguindo em sua evidente missão de publicar no Brasil a obra completa da grande dama da ficção científica mundial, a multipremiada escritora americana Octavia Butler, a editora Morro Branco anunciou o lançamento de Arca de Clay, terceiro volume da série O padronista, antecedido por Semente originária (2021) e Elos da mente (2022), uma saga afrofuturista no qual um projeto de reprodução seletiva pretende criar uma raça com poderes mentais superiores.
Diz o texto de divulgação de Arca de Clay: "Blake Maslin está viajando com suas filhas gêmeas adolescentes quando o carro deles sofre uma emboscada. Pai e filhas são levados a uma comunidade isolada, que parece se afastar da escassez de recursos e da violência que assolam o restante do mundo. Lá, os três cativos descobrem que a Terra foi invadida por um micro-organismo alienígena. A entidade mortal ataca como um vírus, mas os sobreviventes da doença se ligam geneticamente a ela, desenvolvendo poderes e desejos não naturais — e uma compulsão incontrolável de espalhar o contágio. Se Blake e suas filhas não escaparem, serão infectados com um vírus que os matará ou os transformará em párias cuja própria existência é uma ameaça ao mundo ao seu redor."
O volume tem 272 páginas e tradução de Heci Regina Candiani, já está disponível nas livrarias. Os primeiros capítulos do livro podem ser lidos gratuitamente aqui.
Diz o texto de divulgação de Arca de Clay: "Blake Maslin está viajando com suas filhas gêmeas adolescentes quando o carro deles sofre uma emboscada. Pai e filhas são levados a uma comunidade isolada, que parece se afastar da escassez de recursos e da violência que assolam o restante do mundo. Lá, os três cativos descobrem que a Terra foi invadida por um micro-organismo alienígena. A entidade mortal ataca como um vírus, mas os sobreviventes da doença se ligam geneticamente a ela, desenvolvendo poderes e desejos não naturais — e uma compulsão incontrolável de espalhar o contágio. Se Blake e suas filhas não escaparem, serão infectados com um vírus que os matará ou os transformará em párias cuja própria existência é uma ameaça ao mundo ao seu redor."
O volume tem 272 páginas e tradução de Heci Regina Candiani, já está disponível nas livrarias. Os primeiros capítulos do livro podem ser lidos gratuitamente aqui.
quarta-feira, 26 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: Estranhas invenções
Estranhas invenções, Ademir Pascale, org. 120 páginas. Petrópolis: Ornitorrinco, 2012.
Antologias temáticas continuam em alta na ficção fantástica brasileira. Isso se explica por conta da crescente demanda por espaço editorial para autores novos e pelo favorável esquema comercial que gerencia esse tipo de publicação. Uma vez que reúne um grupo grande de autores, uma antologia pode contar com muito mais gente no lançamento, e possibilita ações regionais de cada autor, favorecendo uma distribuição mais abrangente. Contudo, percebe-se que há uma certa urgência na montagem e lançamento dos livros, que nem sempre cumprem os objetivos propostos.
Estranhas invenções é um desses casos. A antologia apresenta-se como uma seleção de textos curtos de ficção fantástica – com um pendão óbvio mas não obrigatório para a ficção científica – em homenagem o famoso artista, engenheiro e inventor Leonardo Da Vinci (1452-1519). A produção gráfica, creditada a Marcelo Biguetti, remete a esse objetivo, com ilustrações e citações do sábio florentino espalhadas pelas páginas, criando um clima perfeito para histórias ao estilo steampunk. Mas Da Vinci é sequer citado nos dez textos selecionados; nenhuma das histórias se passa em sua época ou faz referência a qualquer de seus espetaculares inventos, incluindo os textos assinados pelo próprio Biguetti e pelo organizador Ademir Pascale. A homenagem teve aqui um papel apenas decorativo.
"Tempus fugit", de Tibor Moricz, abre a antologia com uma história sobre viagens no tempo, que vem a ser o tema mais recorrente da antologia. Conta os momentos finais de dois cientistas que, depois de aterrorizar a sociedade com seus métodos pouco ortodoxos de pesquisa, têm o laboratório atacado por uma turba furiosa. Para escapar da morte certa, decidem fugir pela própria máquina do tempo que acabaram de inventar mas, na pressa, saltam exatamente para onde nunca deveriam ir.
Em "A ponte para o infinito", Daniel Borba – que também assina o prefácio do livro – conta sobre como um jovem decide realizar o sonho de sua falecida namorada projetando uma máquina de teletransporte para viajar até às estrelas, mas que o arremessa de volta ao passado.
Ana Lucia Merege foi a única autora a situar sua história no passado; não no Renascimento de Da Vinci, mas na época vitoriana. Em "A incrível máquina de Micawber", um grupo de intelectuais do século 19 comparece ao laboratório de um inventor excêntrico para testemunhar os milagres de uma máquina para bisbilhotar os sonhos alheios. O texto tem um caráter levemente cômico e bons diálogos, sendo um dos melhores textos do conjunto.
Só não é melhor que "A temporalamina", de Miguel Carqueija, que retoma o conceito do efeito borboleta à luz do seu habitual estilo farsesco. Um cientista, inspirado pela morte da esposa irascível mas que ele amava, inventa uma beberragem que o permite voltar no tempo para salvá-la. A história é narrada por um amigo do inventor, que o visita esporadicamente e, em cada um dos encontros, se depara com uma realidade mais espantosa que a anterior.
Cesar Alcázar participa com "Na solidão de Phobos", uma história sofisticada em que um homem isolado numa estação espacial vicia-se numa espécie de gravador de sonhos, ao ponto de não saber mais a diferença entre sonhos, gravações e a realidade, uma situação de grande risco para quem está tão longe de casa.
"O terceiro nível", de Maurício Montenegro, também faz uso de um dispositivo similar para contar a história de um cientista que, ao ser entrevistado num programa de tv, sente um mal súbito que o leva a questionar os contornos de sua própria identidade na medida que ela vai sendo sobreposta pela de um criminoso de outra realidade.
Alícia Azevedo, em "Anastasis", inventa uma máquina de ressurreição de animais de estimação, que traz fortuna aos seus criadores, mas imperfeições do processo acabam causando mais dor do que alegria.
"Apenas um botão" é o conto assinado pelo organizador, Ademir Pascale, sobre um garoto problemático, porém genial, que cria um computador com o qual pretende reconfigurar suas próprias memórias, mas os resultados são trágicos.
O experiente autor de hard fiction Jorge Luiz Calife comparece com "Uma questão de tempo", situado no mesmo universo da trilogia Padrões de contato. Luciana Vilares vai à Austrália entrevistar um cientista que afirma ter inventado uma máquina do tempo. É claro que a intrépida jornalista quer experimentar o aparelho e acaba se envolvendo numa aventura selvagem. A história tem a qualidade habitual do autor, mas por conta de alguns detalhes de seu desfecho, soa equivocada dentro do universo da Tríade.
Fechando a antologia, "A fuga", de Marcello Biguetti, conta em tom debochado os passos de um homem infantilizado rumo a uma improvável e certamente imerecida divindade.
Como se percebe, montar uma antologia temática é uma missão complicada quando se depende unicamente de textos inéditos. Mesmo neste caso, em que temos a participação de autores experientes, ninguém arriscou ir além do óbvio e os textos acabaram falando das mesmas coisas, sendo que alguns chegam a ser incomodamente similares entre si. Talvez o prazo estabelecido para a seleção dos contos tenha sido demasiadamente estreito, ou o conceito da obra não foi compreendido plenamente pelos autores. De qualquer forma, o avaliação geral de Estranhas invenções é que, além de ter perdido a grande oportunidade de falar de Da Vinci, a antologia também não satisfaz as expectativas de um leitor que busca pelo estranhamento prometido no título.
Antologias temáticas continuam em alta na ficção fantástica brasileira. Isso se explica por conta da crescente demanda por espaço editorial para autores novos e pelo favorável esquema comercial que gerencia esse tipo de publicação. Uma vez que reúne um grupo grande de autores, uma antologia pode contar com muito mais gente no lançamento, e possibilita ações regionais de cada autor, favorecendo uma distribuição mais abrangente. Contudo, percebe-se que há uma certa urgência na montagem e lançamento dos livros, que nem sempre cumprem os objetivos propostos.
Estranhas invenções é um desses casos. A antologia apresenta-se como uma seleção de textos curtos de ficção fantástica – com um pendão óbvio mas não obrigatório para a ficção científica – em homenagem o famoso artista, engenheiro e inventor Leonardo Da Vinci (1452-1519). A produção gráfica, creditada a Marcelo Biguetti, remete a esse objetivo, com ilustrações e citações do sábio florentino espalhadas pelas páginas, criando um clima perfeito para histórias ao estilo steampunk. Mas Da Vinci é sequer citado nos dez textos selecionados; nenhuma das histórias se passa em sua época ou faz referência a qualquer de seus espetaculares inventos, incluindo os textos assinados pelo próprio Biguetti e pelo organizador Ademir Pascale. A homenagem teve aqui um papel apenas decorativo.
"Tempus fugit", de Tibor Moricz, abre a antologia com uma história sobre viagens no tempo, que vem a ser o tema mais recorrente da antologia. Conta os momentos finais de dois cientistas que, depois de aterrorizar a sociedade com seus métodos pouco ortodoxos de pesquisa, têm o laboratório atacado por uma turba furiosa. Para escapar da morte certa, decidem fugir pela própria máquina do tempo que acabaram de inventar mas, na pressa, saltam exatamente para onde nunca deveriam ir.
Em "A ponte para o infinito", Daniel Borba – que também assina o prefácio do livro – conta sobre como um jovem decide realizar o sonho de sua falecida namorada projetando uma máquina de teletransporte para viajar até às estrelas, mas que o arremessa de volta ao passado.
Ana Lucia Merege foi a única autora a situar sua história no passado; não no Renascimento de Da Vinci, mas na época vitoriana. Em "A incrível máquina de Micawber", um grupo de intelectuais do século 19 comparece ao laboratório de um inventor excêntrico para testemunhar os milagres de uma máquina para bisbilhotar os sonhos alheios. O texto tem um caráter levemente cômico e bons diálogos, sendo um dos melhores textos do conjunto.
Só não é melhor que "A temporalamina", de Miguel Carqueija, que retoma o conceito do efeito borboleta à luz do seu habitual estilo farsesco. Um cientista, inspirado pela morte da esposa irascível mas que ele amava, inventa uma beberragem que o permite voltar no tempo para salvá-la. A história é narrada por um amigo do inventor, que o visita esporadicamente e, em cada um dos encontros, se depara com uma realidade mais espantosa que a anterior.
Cesar Alcázar participa com "Na solidão de Phobos", uma história sofisticada em que um homem isolado numa estação espacial vicia-se numa espécie de gravador de sonhos, ao ponto de não saber mais a diferença entre sonhos, gravações e a realidade, uma situação de grande risco para quem está tão longe de casa.
"O terceiro nível", de Maurício Montenegro, também faz uso de um dispositivo similar para contar a história de um cientista que, ao ser entrevistado num programa de tv, sente um mal súbito que o leva a questionar os contornos de sua própria identidade na medida que ela vai sendo sobreposta pela de um criminoso de outra realidade.
Alícia Azevedo, em "Anastasis", inventa uma máquina de ressurreição de animais de estimação, que traz fortuna aos seus criadores, mas imperfeições do processo acabam causando mais dor do que alegria.
"Apenas um botão" é o conto assinado pelo organizador, Ademir Pascale, sobre um garoto problemático, porém genial, que cria um computador com o qual pretende reconfigurar suas próprias memórias, mas os resultados são trágicos.
O experiente autor de hard fiction Jorge Luiz Calife comparece com "Uma questão de tempo", situado no mesmo universo da trilogia Padrões de contato. Luciana Vilares vai à Austrália entrevistar um cientista que afirma ter inventado uma máquina do tempo. É claro que a intrépida jornalista quer experimentar o aparelho e acaba se envolvendo numa aventura selvagem. A história tem a qualidade habitual do autor, mas por conta de alguns detalhes de seu desfecho, soa equivocada dentro do universo da Tríade.
Fechando a antologia, "A fuga", de Marcello Biguetti, conta em tom debochado os passos de um homem infantilizado rumo a uma improvável e certamente imerecida divindade.
Como se percebe, montar uma antologia temática é uma missão complicada quando se depende unicamente de textos inéditos. Mesmo neste caso, em que temos a participação de autores experientes, ninguém arriscou ir além do óbvio e os textos acabaram falando das mesmas coisas, sendo que alguns chegam a ser incomodamente similares entre si. Talvez o prazo estabelecido para a seleção dos contos tenha sido demasiadamente estreito, ou o conceito da obra não foi compreendido plenamente pelos autores. De qualquer forma, o avaliação geral de Estranhas invenções é que, além de ter perdido a grande oportunidade de falar de Da Vinci, a antologia também não satisfaz as expectativas de um leitor que busca pelo estranhamento prometido no título.
terça-feira, 25 de abril de 2023
Lançamento: O resgate sobre trilhos
A. Z. Cordenonsi tem desenvolvido uma interessante carreira no âmbito da literatura fantástica, especificamente no subgênero do steampunk, cenário geralmenre retrofuturista no qual tecnologias modernas surgiram muito antes na história.
De muitos modos, o steampunk está na gênese da ficção científica, em obras de escritores como Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H. G. Wells e seus contemporâneos, que não ficam tão distantes das aventuras de Sherlock Holmes – escritas por Arthur Conan Doyle –, personagem irresistível a todo escritor da ficção fantástica, ainda que não o seja na origem. Tanto é que falar sobre a juventude de Sherlock não está entre os temas mais originais, o que de forma alguma incomoda seus fãs que têm verdadeiro culto a tudo o que foi escrito sobre o personagem, e ainda mais pelo que não foi.
Por isso, é perfeitamente legítimo que Cordenonsi invista na série Sherlock e os aventureiros, publicada pela editora Avec, uma divertida brincadeira com o mestre dos detetives ao lado de personagens históricos e ficcionais. A série já apresentou três volumes: O mistério dos planos roubados (2017), O problema dos cálculos maquinares (2019) e O caso da conspiração biológica (2020). Agora está em lançamento o quarto episódio, O resgate sobre trilhos.
Diz o texto de divulgação: "O cerco começa a fechar-se quando o Barão da Silésia resolve colocar o terrorista Fantômas no encalço de Sherlock Holmes, Irene Lupin e Nikola Tesla. Enquanto os jovens aventureiros descobrem mais sobre o seu misterioso inimigo e seus objetivos sinistros, Arsène
Lupin atravessa o Canal da Mancha disposto a levar a filha para a França. Enquanto investigam o interesse do Barão em um garoto singular do Wapping, uma armadilha mortal é preparada para Sherlock e seus amigos. E no trem real que circula pela Grande Londres, a jovem Maria Skłodowska é coagida a ajudar o Barão sob a ameaça da navalha de Fantômas."
Este novo episódio tem 192 páginas que, assim como os volumes anteriores, pode ser adquirido no saite da editora, aqui.
Por isso, é perfeitamente legítimo que Cordenonsi invista na série Sherlock e os aventureiros, publicada pela editora Avec, uma divertida brincadeira com o mestre dos detetives ao lado de personagens históricos e ficcionais. A série já apresentou três volumes: O mistério dos planos roubados (2017), O problema dos cálculos maquinares (2019) e O caso da conspiração biológica (2020). Agora está em lançamento o quarto episódio, O resgate sobre trilhos.
Diz o texto de divulgação: "O cerco começa a fechar-se quando o Barão da Silésia resolve colocar o terrorista Fantômas no encalço de Sherlock Holmes, Irene Lupin e Nikola Tesla. Enquanto os jovens aventureiros descobrem mais sobre o seu misterioso inimigo e seus objetivos sinistros, Arsène
Lupin atravessa o Canal da Mancha disposto a levar a filha para a França. Enquanto investigam o interesse do Barão em um garoto singular do Wapping, uma armadilha mortal é preparada para Sherlock e seus amigos. E no trem real que circula pela Grande Londres, a jovem Maria Skłodowska é coagida a ajudar o Barão sob a ameaça da navalha de Fantômas."
Este novo episódio tem 192 páginas que, assim como os volumes anteriores, pode ser adquirido no saite da editora, aqui.
segunda-feira, 24 de abril de 2023
Lançamento: Irmãs da revolução
No próximo dia 27 de abril, quinta feira, a partir da 19 horas, na Livraria Martins Fontes (Av. Paulista, 509, São Paulo) acontece o lançamento do livro Irmãs da revolução: Antologia de ficção especulativa feminista, organizado por Ann e Jeff VanderMeer, publicado no Brasil pela Editora Aleph.
O livro tem trinta autoras de diversas nacionalidades, entre as quais alguns nomes conhecidos dos leitores brasileiros, tais como Nnedi Okorafor, James Tiptree Jr., Angela Carter, Octavia E. Butler e Ursula K. Le Guin, além de um conto de Aline Valek, exclusivo da edição brasileira.
O evento promoverá uma conversa com Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, organizadoras do clube de leitura Leia Mulheres, sobre os contos publicados na antologia e o futuro da ficção especulativa.
Mais informações sobre o volume podem ser obtidas no saite da editora, aqui.
O evento promoverá uma conversa com Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, organizadoras do clube de leitura Leia Mulheres, sobre os contos publicados na antologia e o futuro da ficção especulativa.
Mais informações sobre o volume podem ser obtidas no saite da editora, aqui.
sábado, 22 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: Contos do Sul, Simone Saueressig
Contos do Sul, Simone Saueressig. 96 páginas. Capa de Marciano Schmitz. Novo Hamburgo: edição da autora, 2012.
A escritora gaúcha Simone Saueressig é um nome significativo no fandom brasileiro de ficção fantástica. Autora premiada e experiente, Simone surgiu por volta de 1983 nas páginas do boletim do já extinto Clube de Ficção Científica Antares, de Porto Alegre. Logo profissionalizou-se como autora de livros de fantasia infanto-juvenis, tais como os romances O palácio de Ifê (1989) e A máquina fantabulástica (1997), publicados pelas prestigiosas editoras L&PM e Scipione, respectivamente.
Simone viveu na Espanha durante cinco anos e voltou ao Brasil em 1999, quando retomou suas carreiras de professora de dança flamenca e escritora. Logo nos primeiros tempos de sua volta, a dificuldade em restabelecer o contato com as antigas editoras levou a publicar ela mesma o livro Um vulto nas trevas (2004). Embora tenha depois reconquistado seu espaço no meio editorial, gostou da experiência de autopublicação e passou a se utilizar mais vezes desse expediente.
Contos do Sul é uma dessas iniciativas, coletânea com cinco contos de horror que usam como tema as lendas e mitologias gauchescas. O título do volume faz referência ao importante livro de Simões Lopes Neto, Lendas do Sul, publicado pela primeira vez em 1912. A própria Simone comenta a obra, neste trecho transcrito da apresentação do volume:
"Contos do Sul aborda quatro criaturas folclóricas: a Iara em sua forma original de ypupiara, o lobisomem, a mula-sem-cabeça e o Saci. A exceção é o Diabo, que não pode ser considerado folclore brasileiro, já que é universal na área de abrangência da cultura cristã, e não é tema da Lendas do Sul."
O primeiro texto é o excelente "A cisterna", uma história vigorosa e assustadora, que está entre as melhores peças do gênero já escritas por um autor brasileiro. Conta a aventura de um grupo de crianças por uma mata próxima de suas casas. Em algum lugar ali existe uma espécie de piscina artificial, larga e funda, onde alguma coisa estranha vive. Curiosas, as crianças sobem numa árvore para olhar o ser que se move sob as águas escuras, logo abaixo dos galhos. O pouco que se pode observar revela voluptuosos contornos femininos que fascinam os garotos. Mas tudo se complica de verdade quando a coisa começa a falar.
Em "O cemitérios dos cães", investigadores da polícia escavam um terreno próximo a um canil, e encontram pistas que comprometem seriamente a versão do proprietário para o desaparecimento de seu filho. Apesar de ser uma narrativa curta em que as cenas de horror são rápidas e imprecisas, trata-se de um conto de forte expressão emocional.
"O galpão" é a história com o diabo, citada por Simone na apresentação. O vínculo com a cultura sulista vem na forma de uma pequena cidade interiorana, tão pequena que nem cemitério tem. De vez em quanto, passa por ali um trem, conduzindo passageiros e, principalmente, levando os caixões com os mortos do lugar, para serem enterrados em uma outra cidade. O que é uma mão na roda para Klaus, que aproveita o fato de ser o encarregado de despachar os cadáveres para antes dilapidá-los de seus pertences sem que ninguém desconfie. Para passar o tempo, Klaus atrai crianças e vagabundos para o galpão onde são armazenados os cadáveres até a passagem do trem, e ali os assassina por pura diversão. Depois, desfaz-se dos corpo de suas vítimas nas fossas de um curtume desativado. Quando um desconhecido chega a cidade, Klaus logo sente o sangue ferver pela expectativa de mais uma noite de diversão macabra. E, para melhorar, o homem traz uma brilhante corrente de ouro no pescoço, o que vai unir o útil ao agradável.
É o texto mais moralista da coletânea, mas tem personagens muito bem delineados e uma ótima ambientação. Simone chegou a me mandar a foto de um desses tenebrosos buracos de curtume, coisa comum na região.
"O farol" vai para a beira do mar, onde o solitário faroleiro recebe a visita do chefe, que veio entregar suprimentos. Quando desaba um grande temporal, ambos têm que se abrigar no interior do farol. No meio da chuvarada, uma mulher bate à porta e o faroleiro a despacha bruscamente, o que intriga o seu superior. O faroleiro explica que ela é uma mulher meio doida quee pediu para se abrigar da chuva no galpão e ele deixou, mas o homem se indignou: devia ter deixado a infeliz entrar no farol com eles, que é mais protegido. Quando começa a soar uma zoada estranha do lado de fora, o homem não atende aos pedidos do faroleiro e abre a porta do farol para ver o que é, e o fim do mundo espalha-se sala adentro, escoiceando e queimando tudo. O que aconteceu, só saberemos dias depois, no hospital. Apesar de ser uma história de pouca tensão, os parágrafos que descrevem as cenas de confusão dentro da sala do farol são vívidas e impressionantes, e fazem valer a história.
O último conto da antologia é "O saci", conto "Destaque" do 3º Prêmio Habitasul Revelação Literária na Feira, de 2003, e publicado então no livro do evento. É o conto mais longo da coletânea, mas isso não significa muito porque os textos são todos mais ou menos do mesmo tamanho. Lembra as histórias de Ray Bradbury, com circos assombrados em que acontecem coisas estranhas, mas a poesia de Simone não é igual à do escritor norteamericano, além do que a ambientação bem desenvolvida, assim como a cultura gaudéria que encharca o texto, não permitem que se realize maiores comparações.
A história conta sobre um jovem, pré-adolescente que, ao visitar a feira de esquisitices de um circo itinerante, vê a oportunidade de ter sua iniciação sexual com a dançarina da trupe. Mas, para isso, ela exige que o menino traga o saci que, inadivertidamente, ele revelou que seu avô guarda aprisionado numa garrafa. Mesmo temendo a maior bronca de sua vida, o menino rouba a garrafa onde a coisa presa demonstra toda a sua fúria, e a leva para a garota, ávida por uma atração realmente incomparável para o circo. Nada mais direi, exceto que este saci tem muito pouco a ver com aquele que Monteiro Lobato tornou popular.
Contos do Sul tem formato de bolso e apenas 96 páginas, sendo um livro que se pode ler de um só fôlego. Mas as histórias são tão intensas e surpreendentes que acabamos lendo cada uma delas mais de uma vez, só pelo prazer reviver as histórias. Especialmente "A cisterna" e "O saci", que são peças de qualidade inegável, representantes de uma dark fantasy brasileira autêntica, que não abre mão de personagens bem estruturados e situações realmente assustadoras, e que não se deixa cair na caricatura e no estereótipo.
Simone sabe, como poucos, manipular as emoções do leitor e conduzir a tensão das histórias em direção ao melhor resultado dramático possível. É uma autora de posse de toda a sua competência técnica, que se movimenta com desenvoltura num gênero que lhe parece tão familiar quanto a própria cultura que herdou de seus antepassados. E faz parecer de tal forma natural que nos perguntamos: por quê há tão pouco disso na literatura nacional?
A escritora gaúcha Simone Saueressig é um nome significativo no fandom brasileiro de ficção fantástica. Autora premiada e experiente, Simone surgiu por volta de 1983 nas páginas do boletim do já extinto Clube de Ficção Científica Antares, de Porto Alegre. Logo profissionalizou-se como autora de livros de fantasia infanto-juvenis, tais como os romances O palácio de Ifê (1989) e A máquina fantabulástica (1997), publicados pelas prestigiosas editoras L&PM e Scipione, respectivamente.
Simone viveu na Espanha durante cinco anos e voltou ao Brasil em 1999, quando retomou suas carreiras de professora de dança flamenca e escritora. Logo nos primeiros tempos de sua volta, a dificuldade em restabelecer o contato com as antigas editoras levou a publicar ela mesma o livro Um vulto nas trevas (2004). Embora tenha depois reconquistado seu espaço no meio editorial, gostou da experiência de autopublicação e passou a se utilizar mais vezes desse expediente.
Contos do Sul é uma dessas iniciativas, coletânea com cinco contos de horror que usam como tema as lendas e mitologias gauchescas. O título do volume faz referência ao importante livro de Simões Lopes Neto, Lendas do Sul, publicado pela primeira vez em 1912. A própria Simone comenta a obra, neste trecho transcrito da apresentação do volume:
"Contos do Sul aborda quatro criaturas folclóricas: a Iara em sua forma original de ypupiara, o lobisomem, a mula-sem-cabeça e o Saci. A exceção é o Diabo, que não pode ser considerado folclore brasileiro, já que é universal na área de abrangência da cultura cristã, e não é tema da Lendas do Sul."
O primeiro texto é o excelente "A cisterna", uma história vigorosa e assustadora, que está entre as melhores peças do gênero já escritas por um autor brasileiro. Conta a aventura de um grupo de crianças por uma mata próxima de suas casas. Em algum lugar ali existe uma espécie de piscina artificial, larga e funda, onde alguma coisa estranha vive. Curiosas, as crianças sobem numa árvore para olhar o ser que se move sob as águas escuras, logo abaixo dos galhos. O pouco que se pode observar revela voluptuosos contornos femininos que fascinam os garotos. Mas tudo se complica de verdade quando a coisa começa a falar.
Em "O cemitérios dos cães", investigadores da polícia escavam um terreno próximo a um canil, e encontram pistas que comprometem seriamente a versão do proprietário para o desaparecimento de seu filho. Apesar de ser uma narrativa curta em que as cenas de horror são rápidas e imprecisas, trata-se de um conto de forte expressão emocional.
"O galpão" é a história com o diabo, citada por Simone na apresentação. O vínculo com a cultura sulista vem na forma de uma pequena cidade interiorana, tão pequena que nem cemitério tem. De vez em quanto, passa por ali um trem, conduzindo passageiros e, principalmente, levando os caixões com os mortos do lugar, para serem enterrados em uma outra cidade. O que é uma mão na roda para Klaus, que aproveita o fato de ser o encarregado de despachar os cadáveres para antes dilapidá-los de seus pertences sem que ninguém desconfie. Para passar o tempo, Klaus atrai crianças e vagabundos para o galpão onde são armazenados os cadáveres até a passagem do trem, e ali os assassina por pura diversão. Depois, desfaz-se dos corpo de suas vítimas nas fossas de um curtume desativado. Quando um desconhecido chega a cidade, Klaus logo sente o sangue ferver pela expectativa de mais uma noite de diversão macabra. E, para melhorar, o homem traz uma brilhante corrente de ouro no pescoço, o que vai unir o útil ao agradável.
É o texto mais moralista da coletânea, mas tem personagens muito bem delineados e uma ótima ambientação. Simone chegou a me mandar a foto de um desses tenebrosos buracos de curtume, coisa comum na região.
"O farol" vai para a beira do mar, onde o solitário faroleiro recebe a visita do chefe, que veio entregar suprimentos. Quando desaba um grande temporal, ambos têm que se abrigar no interior do farol. No meio da chuvarada, uma mulher bate à porta e o faroleiro a despacha bruscamente, o que intriga o seu superior. O faroleiro explica que ela é uma mulher meio doida quee pediu para se abrigar da chuva no galpão e ele deixou, mas o homem se indignou: devia ter deixado a infeliz entrar no farol com eles, que é mais protegido. Quando começa a soar uma zoada estranha do lado de fora, o homem não atende aos pedidos do faroleiro e abre a porta do farol para ver o que é, e o fim do mundo espalha-se sala adentro, escoiceando e queimando tudo. O que aconteceu, só saberemos dias depois, no hospital. Apesar de ser uma história de pouca tensão, os parágrafos que descrevem as cenas de confusão dentro da sala do farol são vívidas e impressionantes, e fazem valer a história.
O último conto da antologia é "O saci", conto "Destaque" do 3º Prêmio Habitasul Revelação Literária na Feira, de 2003, e publicado então no livro do evento. É o conto mais longo da coletânea, mas isso não significa muito porque os textos são todos mais ou menos do mesmo tamanho. Lembra as histórias de Ray Bradbury, com circos assombrados em que acontecem coisas estranhas, mas a poesia de Simone não é igual à do escritor norteamericano, além do que a ambientação bem desenvolvida, assim como a cultura gaudéria que encharca o texto, não permitem que se realize maiores comparações.
A história conta sobre um jovem, pré-adolescente que, ao visitar a feira de esquisitices de um circo itinerante, vê a oportunidade de ter sua iniciação sexual com a dançarina da trupe. Mas, para isso, ela exige que o menino traga o saci que, inadivertidamente, ele revelou que seu avô guarda aprisionado numa garrafa. Mesmo temendo a maior bronca de sua vida, o menino rouba a garrafa onde a coisa presa demonstra toda a sua fúria, e a leva para a garota, ávida por uma atração realmente incomparável para o circo. Nada mais direi, exceto que este saci tem muito pouco a ver com aquele que Monteiro Lobato tornou popular.
Contos do Sul tem formato de bolso e apenas 96 páginas, sendo um livro que se pode ler de um só fôlego. Mas as histórias são tão intensas e surpreendentes que acabamos lendo cada uma delas mais de uma vez, só pelo prazer reviver as histórias. Especialmente "A cisterna" e "O saci", que são peças de qualidade inegável, representantes de uma dark fantasy brasileira autêntica, que não abre mão de personagens bem estruturados e situações realmente assustadoras, e que não se deixa cair na caricatura e no estereótipo.
Simone sabe, como poucos, manipular as emoções do leitor e conduzir a tensão das histórias em direção ao melhor resultado dramático possível. É uma autora de posse de toda a sua competência técnica, que se movimenta com desenvoltura num gênero que lhe parece tão familiar quanto a própria cultura que herdou de seus antepassados. E faz parecer de tal forma natural que nos perguntamos: por quê há tão pouco disso na literatura nacional?
sexta-feira, 21 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: Além do deserto, Érica Bombardi
Além do deserto, Érica Bombardi. 272 páginas. Capa de Vitor Gorino. Campinas: edição da autora, 2012.
Em junho de 2009, recebi de Érica Bombardi, que então era apenas uma colega de uma lista de discussão literária, um pedido incomum: se eu poderia ler o romance de fantasia que ela havia escrito e fazer observações a respeito para que ela o aperfeiçoasse. Como já havia feito isso para outros autores amigos, aceitei. Logo recebi pelo correio um calhamaço com o manuscrito de um romance chamado Fatum, título que eu confesso não ter gostado muito – e o disse logo para a autora. Tomei o original e, com um lápis à mão, fui lendo, assinalando e escrevendo meus comentários nas laterais das páginas e em emails que trocávamos periodicamente. Algumas semanas depois, devolvi o manuscrito a autora com um longo comentário final. Na época, Érica trabalhava numa editora e eu imaginei que o livro dela seria publicado pela mesma, por isso foi uma surpresa quando vi o seu nome na relação dos selecionado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – Proac 2011, com um texto que tinha justamente o nome do primeiro capítulo de Fatum. "Deve ser o próprio", pensei. E era mesmo. Foi uma sensação agradável ver um texto que eu criticara recebendo o financiamento de um concorrido programa cultural. Mais uma vez, pensei comigo mesmo: "agora ela vai achar fácil uma boa editora para publicar o livro". Mas Érica tinha outros planos.
Além do Deserto foi publicado pela própria autora, que fundou uma empresa especialmente para fazê-lo. Com a experiência que havia adquirido em anos de trabalho na editora, Érica queria colocar em prática sua própria política editorial. Em poucos meses, o volume estava pronto, sendo que foi o primeiro livro de 2012 que me chegou às mãos.
Além do Deserto é o início de Fatum, série de alta fantasia sobre um mundo compartilhado por homens e seres mágicos. Neste primeiro romance, o mundo de Fatum está agonizante, arrazado pela guerra entre os homens e as fadas. Tornado num extenso deserto, os sobreviventes desse mundo outrora belo e vigoroso agora habitam os últimos oásis, em torno dos quais ergueram pequenas cidades muradas que também estão em um lento processo de esgotamento. A guerra acabou, mas o sangue dos mortos ainda recobre vastas regiões e demônios poderosos empreendem ataques às cidades, causando muitas baixas.
Mas algo não parece certo nessa tragédia planetária. A guerra foi brutal e efetiva demais. As Sombras, um grande mal desconhecido, é o verdadeiro responsável por toda a destruição e ainda se esconde, a espera do momento certo para o golpe final. Contra ele, só uma pessoa pode ter chance, Thera, uma jovem revoltada que não se interessa pelo destino de Fatum e só se pensa em achar o irmãozinho perdido. Mas ela será levada a agir por um improvável grupo de humanos e fadas, que acreditam ser ainda possível salvar o seu mundo. Na busca por revelação e esperança, eles são peões nos jogo do maléfico inimigo oculto, que vai manipular os heróis para garantir sua vitória final, que a cada momento parece mais e mais inevitável.
A guerra entre homens e seres mágicos é recorrente nos textos de autores-fãs que, cegos pelo brilho de suas obras de culto, não se abrem para melhores possibilidades criativas. Mas o tema já rendeu histórias surpreendentes nas mãos de profissionais como Bruce Sterling, Glen Cook e João Manuel Barreiros. Érica também encontrou aqui um viés diferenciado e conseguiu construir uma narrativa inusitada que, na maior parte do tempo, escapa das convenções do gênero, embora eventualmente deslise para o usual, o que é natural num trabalho de estreia. Mas o romance revela uma rica palheta de ideias interessantes a serem exploradas, uma fauna variada de animais exóticos e entidades mágicas, uma história milenar a ser resgatada, além de vilões deliciosamente detestáveis, como devem ser em toda boa história de fadas.
O financiamento do Proac não veio por acidente, foi mérito da autora e depõe ao seu favor. A seriedade e o carinho com que Érica tratou a criação e publicação do livro, impresso em papel reciclado e uma linda ilustração nas capas internas, também merece o respeito dos leitores, que podem esperar por mais nos futuros trabalhos da autora, que certamente virão.
Em junho de 2009, recebi de Érica Bombardi, que então era apenas uma colega de uma lista de discussão literária, um pedido incomum: se eu poderia ler o romance de fantasia que ela havia escrito e fazer observações a respeito para que ela o aperfeiçoasse. Como já havia feito isso para outros autores amigos, aceitei. Logo recebi pelo correio um calhamaço com o manuscrito de um romance chamado Fatum, título que eu confesso não ter gostado muito – e o disse logo para a autora. Tomei o original e, com um lápis à mão, fui lendo, assinalando e escrevendo meus comentários nas laterais das páginas e em emails que trocávamos periodicamente. Algumas semanas depois, devolvi o manuscrito a autora com um longo comentário final. Na época, Érica trabalhava numa editora e eu imaginei que o livro dela seria publicado pela mesma, por isso foi uma surpresa quando vi o seu nome na relação dos selecionado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – Proac 2011, com um texto que tinha justamente o nome do primeiro capítulo de Fatum. "Deve ser o próprio", pensei. E era mesmo. Foi uma sensação agradável ver um texto que eu criticara recebendo o financiamento de um concorrido programa cultural. Mais uma vez, pensei comigo mesmo: "agora ela vai achar fácil uma boa editora para publicar o livro". Mas Érica tinha outros planos.
Além do Deserto foi publicado pela própria autora, que fundou uma empresa especialmente para fazê-lo. Com a experiência que havia adquirido em anos de trabalho na editora, Érica queria colocar em prática sua própria política editorial. Em poucos meses, o volume estava pronto, sendo que foi o primeiro livro de 2012 que me chegou às mãos.
Além do Deserto é o início de Fatum, série de alta fantasia sobre um mundo compartilhado por homens e seres mágicos. Neste primeiro romance, o mundo de Fatum está agonizante, arrazado pela guerra entre os homens e as fadas. Tornado num extenso deserto, os sobreviventes desse mundo outrora belo e vigoroso agora habitam os últimos oásis, em torno dos quais ergueram pequenas cidades muradas que também estão em um lento processo de esgotamento. A guerra acabou, mas o sangue dos mortos ainda recobre vastas regiões e demônios poderosos empreendem ataques às cidades, causando muitas baixas.
Mas algo não parece certo nessa tragédia planetária. A guerra foi brutal e efetiva demais. As Sombras, um grande mal desconhecido, é o verdadeiro responsável por toda a destruição e ainda se esconde, a espera do momento certo para o golpe final. Contra ele, só uma pessoa pode ter chance, Thera, uma jovem revoltada que não se interessa pelo destino de Fatum e só se pensa em achar o irmãozinho perdido. Mas ela será levada a agir por um improvável grupo de humanos e fadas, que acreditam ser ainda possível salvar o seu mundo. Na busca por revelação e esperança, eles são peões nos jogo do maléfico inimigo oculto, que vai manipular os heróis para garantir sua vitória final, que a cada momento parece mais e mais inevitável.
A guerra entre homens e seres mágicos é recorrente nos textos de autores-fãs que, cegos pelo brilho de suas obras de culto, não se abrem para melhores possibilidades criativas. Mas o tema já rendeu histórias surpreendentes nas mãos de profissionais como Bruce Sterling, Glen Cook e João Manuel Barreiros. Érica também encontrou aqui um viés diferenciado e conseguiu construir uma narrativa inusitada que, na maior parte do tempo, escapa das convenções do gênero, embora eventualmente deslise para o usual, o que é natural num trabalho de estreia. Mas o romance revela uma rica palheta de ideias interessantes a serem exploradas, uma fauna variada de animais exóticos e entidades mágicas, uma história milenar a ser resgatada, além de vilões deliciosamente detestáveis, como devem ser em toda boa história de fadas.
O financiamento do Proac não veio por acidente, foi mérito da autora e depõe ao seu favor. A seriedade e o carinho com que Érica tratou a criação e publicação do livro, impresso em papel reciclado e uma linda ilustração nas capas internas, também merece o respeito dos leitores, que podem esperar por mais nos futuros trabalhos da autora, que certamente virão.
quinta-feira, 20 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: A Companhia Negra, Glen Cook
A Companhia Negra (The Black Company), Glen Cook. 308 páginas. Tradução de Edmo Suassuna. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Quem viveu os primeiros anos do segundo fandom brasileiro de ficção fantástica, entre nos anos 1980 e 1990, sabe que, naqueles tempos, o que mais havia para ler era ficção científica. O acesso ao gênero era garantido por diversas coleções de grandes editoras, como a José Olimpio, Nova Fronteira, Brasiliense, Hemus e Record, sem falar naquelas que vinham importadas de Portugal, com a nata da Golden Age e da New Wave estrangeiras.
A efervescente atividade dos fanzines e a chegada da edição brasileira do periódico Isaac Asimov Magazine, em 1990, parecia acenar com o estabelecimento definitivo do gênero. Nessa época, os leitores tiveram acesso ao que de melhor se fazia no Brasil e no mundo em matéria de fc. Também havia uma boa e constante oferta de horror, principalmente dos medalhões do gênero, mas a fantasia... ah, a fantasia.
Quem viveu os primeiros anos do segundo fandom brasileiro de ficção fantástica, entre nos anos 1980 e 1990, sabe que, naqueles tempos, o que mais havia para ler era ficção científica. O acesso ao gênero era garantido por diversas coleções de grandes editoras, como a José Olimpio, Nova Fronteira, Brasiliense, Hemus e Record, sem falar naquelas que vinham importadas de Portugal, com a nata da Golden Age e da New Wave estrangeiras.
A efervescente atividade dos fanzines e a chegada da edição brasileira do periódico Isaac Asimov Magazine, em 1990, parecia acenar com o estabelecimento definitivo do gênero. Nessa época, os leitores tiveram acesso ao que de melhor se fazia no Brasil e no mundo em matéria de fc. Também havia uma boa e constante oferta de horror, principalmente dos medalhões do gênero, mas a fantasia... ah, a fantasia.
A não ser pelos clássicos e uma poucas edições de Marion Zimmer Bradley – bestseller à época –, nada mais havia para ler. Tolkien conhecia apenas uma edição mal distribuída de O senhor dos anéis – pirata, dizem as más línguas. O próprio C. S. Lewis, autor de referência na alta fantasia, era mais conhecido dos leitores brasileiros por seus romances de ficção científica, gênero que também caracterizava o único livro que o escritor novaiorquino Glen Cook tinha publicado por aqui: Os herdeiros da Babilônia (The heirs of Babylon, Global), uma surpreendente história de guerra naval pós-holocausto, com o realismo cruel de quem tem experiência no serviço militar – Cook serviu a Marinha.
A Companhia Negra, de longe seu trabalho mais importante, foi originalmente publicado nos EUA em 1984 mas, por ser fantasia, foi preciso que os editores brasileiros esgotassem todas as demais possibilidades até que alguém arriscasse uma chance para esse grande contador de histórias praticamente desconhecido no Brasil.
A Companhia Negra, de longe seu trabalho mais importante, foi originalmente publicado nos EUA em 1984 mas, por ser fantasia, foi preciso que os editores brasileiros esgotassem todas as demais possibilidades até que alguém arriscasse uma chance para esse grande contador de histórias praticamente desconhecido no Brasil.
É o primeiro romance de uma série que já conta com pelo menos dez volumes publicados. Trata-se de um relato, em forma de um comjunto de crônicas, escrito por Chagas, codinome do médico da Companhia Negra, um tradicional e respeitado grupo de mercenários que aluga seus serviços especializados a governos de um mundo tão fantástico quanto violento, continuamente mergulhado em guerras entre seus governantes que, geralmente, são muito mais do que homens.
Uma das coisas que mais impressiona ao se iniciar a leitura de A Companha Negra é que a história não tem um início tradicional. Nada de gnomos risonhos a tomar chá enquanto explicam como seu mundo funciona. Por exemplo, veja a seguir os primeiros parágrafos do volume:
"Houve prodígios e maravilhas suficientes, é o que o Caolho diz. Temos de culpar a nós mesmos por interpretá-los mal. A definição do Caolho não prejudica nem um pouco sua admirável capacidade de olhar para trás.
Relâmpagos num céu limpo atingiram a Colina Necropolitana. Um dos raios acertou a placa de bronze que selava a tumba dos forvalakas, obliterando metade do feitiço de confinamento. Choveu pedras. Estátuas sangraram. Sacerdotes de vários templos relataram vítimas de sacrifício sem corações ou fígados. Uma dessas vítimas escapou depois de ter as tripas abertas, e não foi recapturada. Na Caserna da Forquilha, onde as Coortes Urbanas estavam aquarteladas, a imagem de Teux se virou completamente para trás. Por nove noites seguidas, dez abutres negros circularam o Bastião. Então um deles expulsou a águia que vivia no topo da Torre de Papel."
A narrativa segue nesse mesmo tom, contando uma batalha feroz na qual a Companhia Negra tenta defender, sem muito sucesso, os muros do castelo de seu atual contratante do ataque de uma fera monstruosa, sendo que boa parte da Companhia não sobrevive ao primeiro capítulo.
Entre o sangue e a morte que cercam o cronista, ficamos sabendo que seu mundo está passando por um tipo de revolução, um levante popular conhecido como Rosa Branca, que luta contra o domínio da Dama, soberana que está muito interessada em contratar os serviços da Companhia e, para isso, move seus peões num jogo quase sempre desonroso.
A Dama é uma bruxa com milhares de anos de idade, que tem aos seu serviço um grupo de generais lendários conhecidos como Tomados, magos impiedosos, cada um deles mestre em algum tipo de incomum habilidade sobrenatural. Não que a magia seja exclusiva desses monstros, longe disso. Ela está enraizada nas relações cotidianas desse mundo. Todo o exército que se preze mantém diversos bruxos em suas fileiras, e a Companhia Negra não é diferente. Boa parte das batalhas são travadas – e decididas – pelas força das artes arcanas. Mas um bruxo também pode ser morto, daí o uso ainda bastante útil dos guerreiros e suas espadas. Além das batalhas, o mundo da Companhia Negra está coalhado de monstros poderosos e assustadores, que matam e devoram. Ninguém é completamente confiável e até os protagonistas são arrogantes e traiçoeiros.
De tudo isso, só vamos ter uma noção mais ou menos clara para além de dois terços do romance, porque nada é explicado previamente. O leitor, da mesma forma que o narrador e seus companheiros de armas, na maior parte do tempo não fazem a menor ideia do que está acontecendo e só tentam manter-se vivos e de pé. O cronista não pode contar nada além do que aquilo que vê, o que deixa o leitor perdido no meio de intrigas incompreensíveis e batalhas que não parecem fazer nenhum sentido.
A narrativa é ágil e feroz, montada a partir de episódios frouxamente amarrados entre si. O texto é ríspido, sincopado e desconfortável, o que contribui para uma intensa sensação desamparo, sem espaço para a poesia que geralmente predomina o gênero.
Contrariando os protocolos, Cook lança mão de um grande contingente de personagens populares, gente comum que se vê envolvida pela violência e tem que dar um jeito de sobreviver. Os problemas dos reis, rainhas, príncipes e princesas não são o foco da atenção do autor, que os deixa de lado, recolhidos atrás das paredes de pedra de suas torres.
Como já foi dito, a série conta com dez sequências, sendo que as duas primeiras foram traduzidas pela Record em 2013 e 2014, respectivamente: Sombras eternas (Shadows linger, 1984), A Rosa Branca (The White Rose, 1985), The silver spike (1989), Shadow games (1989), Dreams of steel (1990), Bleak seasons (1996), She is the darkness (1997), Water sleeps (1999), Soldiers live (2000), Port of shadows (2018) e anunciada A pitiless rain, ainda não publicada.
Uma das coisas que mais impressiona ao se iniciar a leitura de A Companha Negra é que a história não tem um início tradicional. Nada de gnomos risonhos a tomar chá enquanto explicam como seu mundo funciona. Por exemplo, veja a seguir os primeiros parágrafos do volume:
"Houve prodígios e maravilhas suficientes, é o que o Caolho diz. Temos de culpar a nós mesmos por interpretá-los mal. A definição do Caolho não prejudica nem um pouco sua admirável capacidade de olhar para trás.
Relâmpagos num céu limpo atingiram a Colina Necropolitana. Um dos raios acertou a placa de bronze que selava a tumba dos forvalakas, obliterando metade do feitiço de confinamento. Choveu pedras. Estátuas sangraram. Sacerdotes de vários templos relataram vítimas de sacrifício sem corações ou fígados. Uma dessas vítimas escapou depois de ter as tripas abertas, e não foi recapturada. Na Caserna da Forquilha, onde as Coortes Urbanas estavam aquarteladas, a imagem de Teux se virou completamente para trás. Por nove noites seguidas, dez abutres negros circularam o Bastião. Então um deles expulsou a águia que vivia no topo da Torre de Papel."
A narrativa segue nesse mesmo tom, contando uma batalha feroz na qual a Companhia Negra tenta defender, sem muito sucesso, os muros do castelo de seu atual contratante do ataque de uma fera monstruosa, sendo que boa parte da Companhia não sobrevive ao primeiro capítulo.
Entre o sangue e a morte que cercam o cronista, ficamos sabendo que seu mundo está passando por um tipo de revolução, um levante popular conhecido como Rosa Branca, que luta contra o domínio da Dama, soberana que está muito interessada em contratar os serviços da Companhia e, para isso, move seus peões num jogo quase sempre desonroso.
A Dama é uma bruxa com milhares de anos de idade, que tem aos seu serviço um grupo de generais lendários conhecidos como Tomados, magos impiedosos, cada um deles mestre em algum tipo de incomum habilidade sobrenatural. Não que a magia seja exclusiva desses monstros, longe disso. Ela está enraizada nas relações cotidianas desse mundo. Todo o exército que se preze mantém diversos bruxos em suas fileiras, e a Companhia Negra não é diferente. Boa parte das batalhas são travadas – e decididas – pelas força das artes arcanas. Mas um bruxo também pode ser morto, daí o uso ainda bastante útil dos guerreiros e suas espadas. Além das batalhas, o mundo da Companhia Negra está coalhado de monstros poderosos e assustadores, que matam e devoram. Ninguém é completamente confiável e até os protagonistas são arrogantes e traiçoeiros.
De tudo isso, só vamos ter uma noção mais ou menos clara para além de dois terços do romance, porque nada é explicado previamente. O leitor, da mesma forma que o narrador e seus companheiros de armas, na maior parte do tempo não fazem a menor ideia do que está acontecendo e só tentam manter-se vivos e de pé. O cronista não pode contar nada além do que aquilo que vê, o que deixa o leitor perdido no meio de intrigas incompreensíveis e batalhas que não parecem fazer nenhum sentido.
A narrativa é ágil e feroz, montada a partir de episódios frouxamente amarrados entre si. O texto é ríspido, sincopado e desconfortável, o que contribui para uma intensa sensação desamparo, sem espaço para a poesia que geralmente predomina o gênero.
Contrariando os protocolos, Cook lança mão de um grande contingente de personagens populares, gente comum que se vê envolvida pela violência e tem que dar um jeito de sobreviver. Os problemas dos reis, rainhas, príncipes e princesas não são o foco da atenção do autor, que os deixa de lado, recolhidos atrás das paredes de pedra de suas torres.
Como já foi dito, a série conta com dez sequências, sendo que as duas primeiras foram traduzidas pela Record em 2013 e 2014, respectivamente: Sombras eternas (Shadows linger, 1984), A Rosa Branca (The White Rose, 1985), The silver spike (1989), Shadow games (1989), Dreams of steel (1990), Bleak seasons (1996), She is the darkness (1997), Water sleeps (1999), Soldiers live (2000), Port of shadows (2018) e anunciada A pitiless rain, ainda não publicada.
Além de A Companhia Negra, Glen Cook escreveu muitos outros livros igualmente inéditos no Brasil, como os das séries Garrett p.i., Dread Empire, Instrumentalities of the night, Starfishers e Darkwar, além de diversos romances independentes, dos quais conhecemos apenas o já citado Os herdeiros da Babilônia que, de qualquer forma, merecia uma republicação.
Glen Cook é um grande escritor e deveria receber mais atenção dos editores e dos leitores. E, sendo seu livro mais significativo, A Companhia Negra é obrigatório para todos que querem conhecer, como diz o personagem de Laurence Fishburne em Matrix, "até onde vai a toca do coelho".
Glen Cook é um grande escritor e deveria receber mais atenção dos editores e dos leitores. E, sendo seu livro mais significativo, A Companhia Negra é obrigatório para todos que querem conhecer, como diz o personagem de Laurence Fishburne em Matrix, "até onde vai a toca do coelho".
terça-feira, 18 de abril de 2023
Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias
Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias, Marco Rigobelli, org. 176 páginas. São Paulo: Draco, 2014.
Ficções fantásticas com temas esportivos não são comuns sequer nos mercados mais fortes do gênero, nem mesmo em outras artes além da literatura. Quadrinhos e cinema têm poucos exemplos, embora haja mais oferta de esportes fantásticos nos jogos eletrônicos, por motivos evidentes. Mas é curioso que exista tão pouco na literatura de ficção fantástica, quando é patente que é nela que o pioneirismo é geralmente praticado em todos os temas.
No Brasil, até o final do século passado, só existia uma única antologia de contos fantásticos sobre esportes, o livro Outras copas, outros mundos, organizado por Marcello Simão Branco e publicado pela editora-fã Ano-Luz em 1998. Mais que uma seleta de contos esportivos, esse livro propunha que todos os contos tratassem especificamente de futebol, o esporte mais apreciado pelos brasileiros que, curiosamente, não tinha nenhum texto no gênero, nem aqui nem em qualquer outra parte do mundo. A experiência foi academicamente muito bem-sucedida, e dela emergiu ainda o importante projeto Intempol de Octávio Aragão, derivado de um dos textos publicados ali. Mas foi um péssimo agouro para o desempenho do esporte: naquele ano, o Brasil perdeu o Copa do Mundo na França num jogo algo vexatório contra a poderosa seleção francesa comandada por Zinedine Zidane, com os craques Ronaldo Fenômeno em pânico no campo, e Edmundo no banco.
Talvez motivada pela nova edição brasileira da Copa do Mundo, a editora-fã paulista Draco decidiu retomar a ideia e apresentou em 2014 uma remontagem da antologia de 1998 sob o título Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias, organizada por Marco Rigobelli, republicando alguns dos textos vistos naquela, somados a inéditos, num total de dez contos, incluindo um do próprio organizador.
Dos autores republicados, Gerson Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi comparecem respectivamente com "Pátria de chuteiras" e "Sob o signo de Xoth", justamente os textos presentes na antologia de 1998. O primeiro narra a final de uma copa do mundo na realidade alternativa favorita do autor, na qual a república de Palmares, treinada por um ex-craque da seleção brasileira, disputa com o Brasil não apenas aquele campeonato, mas a hegemonia do esporte. Já o excelente texto de Orsi envereda pelo horror, política e corrupção na fictícia cidade de Açaraí. Fábio Fernandes, que também participou da antologia de 1998, aparece com o inédito "2010: O ano em que faremos contrato", um texto curto na forma de uma entrevista com um boleiro que participou de uma partida entre atletas terrestres e alienígenas na qual o que realmente estava em jogo era o intercâmbio de tecnologia. Esse conto acabou sendo profético, pois a seleção terrestre levou o sonoro chocolate de treze a zero. Voltaremos a isso mais adiante.
Os demais autores comparecem com contos inéditos. Em "Boost", de Vinicius Lisboa, o futebol do futuro é praticado por atletas com reforço químico e o esporte se torna uma arena de violência explícita e morte, enquanto que em "O último grande craque", de Marcel Breton, são as próteses que desequilibram o espetáculo. Ambos os textos replicam o formato de entrevista visto no conto de Fernandes, o que torna a leitura um tanto enfadonha pela redundância da forma.
"Jogo puro", de Diego Matioli, também começa com uma entrevista, mas ela só dura alguns parágrafos, para depois adotar uma narrativa mais tradicional, em terceira pessoa. O conto tem laivos apocalípticos na medida que acontece após o arrebatamento bíblico, além da presença de demônios vivendo em meio à humanidade. Também aparecem aqui alguns tipos de "melhorias" nos atletas, desta vez mais para superpoderes mutantes, mas o autor tem o mérito de escapar muito bem das armadilhas narrativas criadas pelos contos anteriores.
"O último gol de Tião Canhoto", de Fabio Baptista, narra a história de um insuspeito craque do futebol varzeano que só atingia o estado de excelência quando sua amada Ritinha estava na torcida, uma mulher descrita como a mais feia do mundo. O conto não é ruim, mas a crueldade com que o autor trata da aparência da mulher cria tal constrangimento no leitor que eu não me surpreenderia se as leitoras protestassem fortemente contra ele. Fica aqui o meu protesto pessoal.
Sid Castro traz um sopro de ar fresco nesta sequência de histórias pesadas com o despretensioso "O rei do futebol". Não se trata do Pelé, mas de Arthur Friedenreich, que atuou no início da história do esporte no país, sendo o primeiro a atingir a marca dos mil gols convertidos na carreira. Outro diferencial do conto é a forma, apresentado como se fosse um jogo, com preliminar, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e pós-jogo no vestiário. O conto tem uma ambientação steampunk e traz até algumas referências históricas muito bem-vindas para os fãs do esporte. Não sei se são verdades, mas se não forem, deveriam ser.
O melhor texto da antologia é "O último jogo", de Rodrigo Van Kampen, conhecido editor da extinta revista Trasgo. Uma pérola rara da ficção fantástica brasileira, na linha do realismo fantástico latino americano. Conta a história de um grupo de meninos que amam jogar bola no campinho da vila, que nem é um campo de verdade, pois tem árvores pelo meio e um formato desengonçado mas, para eles, é exatamente como um grande estádio. Ali eles se divertem fantasiando campeonatos nacionais e internacionais, mas a coisa fica mesmo séria quando, numa certa manhã, surge no campinho uma árvore antiga e enorme, e dela saem assustadores bichos-papões que desafiam os garotos para uma partida decisiva: se os meninos vencerem, eles vão embora mas, se perderem, serão devorados ali mesmo. Maravilhamento poderoso para encher de lágrimas os olhos de quem um dia fantasiou ser um craque da bola num campinho de terra.
Fecha a seleção o texto "Nos gramados em cinzas da arena do abismo", de autoria do próprio organizador, Marco Rigobelli. Conta a história de um jogador que deve o sucesso de sua carreira a um pacto com o diabo. Mas, antes do fim do acordo, ele é convocado pelo cão para uma partida nas profundezas do inferno, com a promessa de, caso vença, ter sua alma libertada do contrato de perdição eterna. A ideia geral não é muito diferente da do conto anterior, mas não repete nem a ambientação, nem o estilo, nem o maravilhamento. Num erro de revisão, o autor chega a trocar o nome do protagonista.
Publicada em meio a euforia de um tempo em que tudo parecia dar certo no Brasil, esta antologia acabou, mais uma vez, por chancelar o fracasso da seleção brasileira, desta vez com o vergonhoso sete a um contra a Alemanha na semifinal. Mas o que mais perturba é o deliberado apagamento da antologia de 1998, da qual o organizador até emprestou contos mas não se dignou a sequer citar no prefácio, sinal claro da desagregação pelo qual o fandom passou e ainda passa ao longo deste século. Não custava reconhecer o pioneirismo de Outras copas, outros mundos, e isso acrescentaria dignidade ao trabalho. Sem isso, tornou-se uma antologia oportunista, esquecida em meio aos fracassos do futebol brasileiro.
Mas é sempre melhor olhar pelo ângulo favorável: valeu pelos bons textos publicados e por acrescentar mais alguns contos ao árido ambiente da fc&f esportiva nacional.
Sid Castro traz um sopro de ar fresco nesta sequência de histórias pesadas com o despretensioso "O rei do futebol". Não se trata do Pelé, mas de Arthur Friedenreich, que atuou no início da história do esporte no país, sendo o primeiro a atingir a marca dos mil gols convertidos na carreira. Outro diferencial do conto é a forma, apresentado como se fosse um jogo, com preliminar, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e pós-jogo no vestiário. O conto tem uma ambientação steampunk e traz até algumas referências históricas muito bem-vindas para os fãs do esporte. Não sei se são verdades, mas se não forem, deveriam ser.
O melhor texto da antologia é "O último jogo", de Rodrigo Van Kampen, conhecido editor da extinta revista Trasgo. Uma pérola rara da ficção fantástica brasileira, na linha do realismo fantástico latino americano. Conta a história de um grupo de meninos que amam jogar bola no campinho da vila, que nem é um campo de verdade, pois tem árvores pelo meio e um formato desengonçado mas, para eles, é exatamente como um grande estádio. Ali eles se divertem fantasiando campeonatos nacionais e internacionais, mas a coisa fica mesmo séria quando, numa certa manhã, surge no campinho uma árvore antiga e enorme, e dela saem assustadores bichos-papões que desafiam os garotos para uma partida decisiva: se os meninos vencerem, eles vão embora mas, se perderem, serão devorados ali mesmo. Maravilhamento poderoso para encher de lágrimas os olhos de quem um dia fantasiou ser um craque da bola num campinho de terra.
Fecha a seleção o texto "Nos gramados em cinzas da arena do abismo", de autoria do próprio organizador, Marco Rigobelli. Conta a história de um jogador que deve o sucesso de sua carreira a um pacto com o diabo. Mas, antes do fim do acordo, ele é convocado pelo cão para uma partida nas profundezas do inferno, com a promessa de, caso vença, ter sua alma libertada do contrato de perdição eterna. A ideia geral não é muito diferente da do conto anterior, mas não repete nem a ambientação, nem o estilo, nem o maravilhamento. Num erro de revisão, o autor chega a trocar o nome do protagonista.
Publicada em meio a euforia de um tempo em que tudo parecia dar certo no Brasil, esta antologia acabou, mais uma vez, por chancelar o fracasso da seleção brasileira, desta vez com o vergonhoso sete a um contra a Alemanha na semifinal. Mas o que mais perturba é o deliberado apagamento da antologia de 1998, da qual o organizador até emprestou contos mas não se dignou a sequer citar no prefácio, sinal claro da desagregação pelo qual o fandom passou e ainda passa ao longo deste século. Não custava reconhecer o pioneirismo de Outras copas, outros mundos, e isso acrescentaria dignidade ao trabalho. Sem isso, tornou-se uma antologia oportunista, esquecida em meio aos fracassos do futebol brasileiro.
Mas é sempre melhor olhar pelo ângulo favorável: valeu pelos bons textos publicados e por acrescentar mais alguns contos ao árido ambiente da fc&f esportiva nacional.
segunda-feira, 17 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: O pagamento, Philip K. Dick
O pagamento (Paycheck: Classics stories by Philip K. Dick), Philip K. Dick. 384 páginas. Tradução de Alexandre Raposo, Sylvio Gonçalves, Jorge Luiz Calife & E. Barreiros. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Desde que o cineasta Ridley Scott dirigiu Blade Runner: O caçador de andróides, baseado em um romance de Philip K. Dick, o autor tornou-se referência de fc no cinema, com diversas de suas histórias transpostas para as telonas. O próprio romance O caçador de andróides (Do androids dream of eletric sheep?) só chegou ao Brasil em 1983, pela Francisco Alves, após o lançamento do filme nas salas exibidoras. E não foi por outro motivo que a editora Record tomou a iniciativa de publicar o volume que é tema desta resenha: o lançamento do longa-metragem O pagamento, dirigido por John Woo.
Talvez seja por isso que a referida editora não demonstrou capricho na realização do volume, que teve produção gráfica digna de uma edição popular das mais simplórias, com a tradução – assinada por Alexandre Raposo, Sylvio Gonçalves, Jorge Luiz Calife e E. Barreiros – comprometida por uma revisão trágica; não se preocupou em inserir um desejável texto de apresentação para situar os contos da coletânea na obra do autor e nem mesmo fez constar seus títulos originais. Somado ao altíssimo preço de capa, só mesmo sendo fã de PKD para aguentar tanto descaso. Foi tanta a falta de confiança da Record nos atrativos da ficção de Dick que a editora fez questão de citar destacadamente na capa do volume não apenas o nome do diretor da versão cinematográfica do conto que batiza a coletânea, mas três dos seus atores também, como se isso fizesse alguma diferença num texto que PKD escreveu em 1953. E não só: citou, também na capa, a coletânea anterior, Minority report: A nova lei, cuja publicação, à sua época, também foi uma jogada de oportunismo da editora.
Apesar da forma claramente depreciativa com que a editora tratou o livro, a coletânea tem méritos. O primeiro deles é que onze dos doze contos de O pagamento estavam ainda inéditos em português, exceto por um deles, "O pai-coisa" que, de acordo com o Acervo bibliográfico em língua portuguesa de fc, de Ruby F. Medeiros, havia sido anteriormente visto apenas na edição número 49 da obscura revista Suspense.
O segundo mérito é que, dentre os contos desta coletânea, há vários que podem ter perfeitamente sido os ensaios para os romances mais destacados de PKD. Pelos comentários a seguir, o leitor perspicaz certamente vai identificá-los. Entre os parêntesis está grafado o ano em que o conto foi publicado pela primeira vez.
"O pagamento" (1953)
Num futuro próximo, a sociedade civil mundial tornou-se um estado policial e apenas as corporações particulares ainda detêm uma certa independência. A Empreiteira Rethrick contrata, por tempo determinado, profissionais especializados para seus projetos internos e, completado o contrato, os trabalhadores são bem recompensados em dinheiro, mas suas memórias são apagadas para preservar o que eles viram e fizeram dentro da empresa do assédio da Polícia Secreta do governo. Jennings é um especialista em eletromecânica que acabou de cumprir seu contrato e ter a memória apagada mas, como pagamento recebe, ao invés da boa grana que esperava, apenas sete objetos ordinários e sem nenhum sentido, juntamente com uma carta de próprio punho em que ele mesmo pediu que esses objetos substituíssem o seu gordo cachê. Confuso e acreditando ter sido passado para trás pela empresa, Jennings mal tem tempo de se indignar porque, ao sair do escritório da empresa, é imediatamente detido pela PS para interrogatório e levado para a delegacia — e todos sabem que ninguém que uma vez entra na delegacia da PS é visto novamente. Poucos minutos depois, Jennings se vê usando cada um daqueles objetos para preservar sua integridade física. Sorte? Coincidência? O que haveria por trás dos dois anos em que Jennings passou na Rethrick?
"Babá" (1955)
A família Fields tem uma babá para cuidar de seus dois filhos pequenos. Ela é uma das maravilhas da tecnologia moderna, um robô compacto similar a um besouro, absolutamente confiável e eficiente, sempre pronto a atender qualquer necessidade das crianças. A babá dos Fields é um modelo discreto e depois de três anos de uso está no limite da obsolescência, mas é mantida no posto porque as crianças a adoram. Porém, as babás dedicam-se também a uma atividade obscura que vai levar a família Fields a entrar numa escalada consumista que, em tese, ela nunca desejou.
"O mundo de Jon" (1954)
A Terra está devastada pela guerra, uma guerra total que deixou o mundo em cinzas. Os sobreviventes, que se refugiaram na Lua, voltam as poucos e tentam reconstruir o planeta, mas o trabalho é difícil e progride lentamente. Por isso, os cientistas desenvolveram uma máquina do tempo, que irá ao passado resgatar os estudos do maior cientista da história humana e permitirá recuperar a perdida tecnologia dos robôs com cérebros artificiais que foram, a princípio, a ruína da Terra, mas que podem ser agora a sua redenção. O encarregado da missão é Caleb Ryan e ele tem um filho, Jon, um garoto que está enfrentando um momento difícil. Visões de um mundo pastoral o arrebatam cada vez com mais intensidade. Seu pai acredita que ele está tendo crises psicóticas e decide lobotomizá-lo antes de embarcar em sua viagem cronal. Caleb consegue resgatar os documentos que queria mas, no processo, altera dramaticamente o passado, colocando em risco a viagem de volta ao mundo em que o lobotomizado Jon o espera.
"Café da manhã no crepúsculo" (1954)
A família MacLean, pai, mãe e três filhos, desperta para mais um dia comum. Do lado de fora uma neblina muito forte impede a visão. Quando um dos filhos tenta sair para ir à escola, é impedido por um comando militar que invade a casa e subjuga toda a família. Os soldados estão atônitos e desconfiados: diante deles está uma família americana típica tomando prosaicamente o café da manhã numa residência igualmente típica que foi a única coisa a resistir ao bombardeio de saturação da noite anterior, numa guerra que já dura oito anos da qual a família MacLean nunca tinha ouvido falar.
"A cidadezinha" (1954)
Verne Haskel é um homem de meia idade que tem uma vida infeliz. Casado com uma esposa que não o ama, com um emprego do qual não gosta e um chefe que odeia, o único prazer de sua vida é um trenzinho elétrico que ele mantém montado no porão de sua casa, para o qual, ao longo dos anos, Verne construiu uma reprodução em escala da sua própria cidade, com todos os detalhes. Num acesso de frustração, ele arranca a miniatura do prédio da firma em que trabalha e a destrói, substituindo por outra miniatura sem correspondente real, e então percebe que poderia refazer toda a cidade de acordo com sua própria definição. Demite-se do emprego no dia seguinte e surpreende a esposa em adultério, mas não se abala: tranca-se no porão e dedica-se tão somente à reconstrução de sua cidadezinha, o que pode ter desdobramentos inesperados.
"O pai-coisa" (1954)
Charles Walton tem oito anos e está apavorado. Viu seu pai na garagem conversando com alguma coisa que parecia igualzinha a ele mesmo e agora sabe que o que está diante dele, na mesa do jantar, embora pareça seu pai, não é. Ele sai da mesa sem jantar e sem pedir licença, e seu pai-coisa promete-lhe castigo pela falta de modos. Charles foge pela janela do quarto e vai à garagem procurar pelo seu verdadeiro pai. O que ele encontra é apenas o início do terror.
"A Cerca de Cromo" (1954)
Don Walsh está com problemas. A sociedade em que vive está em conflito aberto por conta da pressão de um projeto de lei que pretende exigir compulsoriamente que todos os cidadãos não tenham mais odor corporal, mau-hálito e cabelos feios. E isso está causando conflitos sérios em varias partes do país, no qual Puristas (defensores da tal lei) e Naturalistas (defensores da natureza como ela é) lutam até à morte. Walsh tenta "ficar em cima do muro" o máximo de tempo possível, de forma a se afastar da violência, mas ela já se manifesta entre os membros de sua própria família. Mais cedo ou mais tarde ele terá de tomar uma atitude.
"Autofab" (1955)
Um grupo de humanos sobreviventes de uma guerra nuclear total quer paralisar a rede de fábricas automáticas de bens de consumo e suprimentos que a humanidade instalou durante a guerra para suprir os abrigos. Isso porque as fábricas estão esgotando os recursos do planeta e impedindo que os humanos voltem a cuidar de si próprios. Como não há argumentos que convençam as fábricas que, além de inexpugnáveis, são administradas e operadas por robôs auto-replicastes, eles elaboram um plano ousado para fazer com que as fábricas entrem em conflito umas com as outras.
"Os dias de Pat Prafrente" (1963)
Depois da guerra que destruiu o planeta, a humanidade sobrevivente reúne-se em pequenas comunidades isoladas, com pouco contato entre si. Sem contato físico, alienígenas marcianos arremessam ao solo, a partir de máquinas voadoras, os mantimentos que sustentam os últimos humanos sobre a Terra. Os suprimentos são fornecidos em quantidade além da necessária e a maioria é simplesmente abandonada onde caiu, servindo de alimento apenas aos estranhos animais mutantes que habitam as ruínas da civilização.
Os homens aproveitam uma ou outra coisa, sempre tendo em vista sua aplicação no tabuleiro de um jogo de representação que todos os adultos praticam, no qual Pat Prafrente, uma boneca no estilo Barbie, é a personagem principal. Todas as relações da comunidade giram em torno desse jogo e as coisas ficam confusas quando chegam notícias de um novo jogo que é praticado em uma comunidade mais distante, algo similar a Pat Prafrente, mas com outra boneca. Um casal aceita apostar seu bem mais valioso — a sua própria boneca Pat Preferente — para jogar contra os campeões desse novo jogo.
"Plantão" (1963)
A presidência dos Estados Unidos está ocupada, há uns bons anos, por um supercomputador infalível que detém o controle absoluto de todos os mecanismos sociais, econômicos, políticos e militares do país. Só por garantia, um cidadão indicado por um sindicato de classe ocupa o lugar de plantonista da presidência, para assumir o cargo no remotíssimo caso do computador falhar, o que nunca aconteceu. Para amenizar o impacto da perturbadora notícia de que uma frota de espaçonaves alienígenas foi identificada nas proximidades do Sistema Solar, o mais popular âncora jornalístico da televisão ("palhaço", de acordo com a tradução) decide pautar uma entrevista cômica com o novo indicado para essa desnecessária função burocrática. E é exatamente no momento em que a entrevista se inicia que, devido a intervenção dos alienígenas, o supercomputador presidencial falha. É hora do mais inútil dos americanos assumir o poder.
"Uma coisinha para nós, temponautas" (1974)
Os russos saíram novamente na frente dos americanos, enviando dois temponautas ao futuro e trazendo-os de volta. Para não ficar em desvantagem, o programa temporal americano envia três temponautas duas vezes mais longe, mas algo não sai bem e ocorre um acidente fatal na viagem de volta. Um dispositivo especial, chamado Atividade de Tempo de Emergência (cuja sigla o tradutor não se decidiu entre ATE ou ETA), permitiu que os temponautas voltassem ao continuum por tempo limitado, num momento posterior ao evento fatal, de forma a participarem de seus próprios féretros e contribuírem para uma propaganda mais favorável ao programa americano. Addison Doug, um dos temponautas, sofre de insistente sensação de déjà vu, como se estivessem todos presos num loop, repetindo indefinidamente os mesmos fatos. Ele acredita que a morte no acidente é única forma de interrompê-lo. Entretanto, um dos cientistas do programa sugere que é justamente o acidente fatal que está gerando o loop. Mas Addison decide garantir, talvez mais uma vez em seu loop eterno, que o acidente aconteça.
"As pré-pessoas" (1974)
Em algum momento num futuro próximo, as leis americanas pró-aborto extrapolaram: o aborto pode ser feito enquanto a alma não entrar no corpo da criança, e os burocratas decidiram que isso só acontece quando se domina álgebra, matéria que é ensinada quando as crianças têm aproximadamente dez anos de idade. Basta que os pais façam uma solicitação e uma viatura oficial — o caminhão do aborto — retira a criança indesejada de sua casa e a leva para um campo de concentração. Caso ninguém se interesse em adotá-la, será sacrificada (ou “abortada“). O oficial do caminhão de abortos detém, na estrada, um jovem que não tem os documentos obrigatórios que provariam que não é uma criança indesejada. Nesse momento, surge o pai do garoto, um homem de 35 anos que insiste que, por também não dominar a álgebra, não tem alma e deve ser igualmente abortado. Confuso, o oficial resolve levar ambos para a instalação municipal, e não imagina o problema que isso vai causar.
A coletânea é equilibrada e isso acontece não só porque PKD é um escritor acima da média, mas principalmente porque o organizador da antologia — que pode ter sido o próprio Dick, uma vez que não há nenhuma informação a respeito no livro — optou por apresentar os contos em ordem cronológica. Isso permite que o leitor acompanhe a evolução do estado da arte do autor, atingindo o clímax no conto final, de longe o melhor do conjunto. Também oferece trabalhos de vários matizes, tanto para agradar o leitor que prefere o modelo pulpish de fc — que lida com temas recorrentes que eram encomendados pelos editores das revistas que os publicavam — como aquele que aprecia obras autorais sofisticadas.
Uma das leituras que se pode fazer desta coletânea é que PKD teria um interesse especial nas viagens no tempo, com o que construiu uma espécie de história do futuro, porém isso não ocorre na mesma proporção no total da obra do autor. Nos romances, PKD investiu no tema apenas em Now wait for last year e de modo um tanto oblíquo em Counter clockworld (Regresso ao passado, Editorial Panorama). É possível que tal acúmulo de narrativas sobre viagens no tempo neste coletânea tenha sido proposital, talvez para reunir todas elas.
Mas há mais uma interpretação importante que se pode ter da leitura deste conjunto de contos e, desta vez, o restante da obra de PKD não a desmente. Ainda que a ideia de futuro de PKD seja pessimista em relação à humanidade como um todo, o autor demonstra insistência especial em desvalorizar a figura feminina, numa mal disfarçada misoginia. Em algumas histórias, as personagens femininas simplesmente inexistem e, na maioria, assumem papel apenas coadjuvante ou de pouco significado. Mas o autor as trata de maneira declaradamente animosa em "A cidadezinha" e "As pré-pessoas". Nesta, em especial, há um discurso mais de uma página acusando as mulheres de "fêmeas castradoras" e de serem as principais interessadas na legalização do aborto. Dick casou-se nada menos que cinco vezes ao longo de sua vida e isso deve ter algo a ver com esse pensamento que é recorrente em sua obra.
Apesar de tudo, O pagamento é um livro altamente recomendável ao leitor que aprecia uma leitura inteligente, embora possa gerar perturbação psicológica e desvios na percepção da realidade. Mas essa é marca registrada de todos os trabalhos de PKD.
Desde que o cineasta Ridley Scott dirigiu Blade Runner: O caçador de andróides, baseado em um romance de Philip K. Dick, o autor tornou-se referência de fc no cinema, com diversas de suas histórias transpostas para as telonas. O próprio romance O caçador de andróides (Do androids dream of eletric sheep?) só chegou ao Brasil em 1983, pela Francisco Alves, após o lançamento do filme nas salas exibidoras. E não foi por outro motivo que a editora Record tomou a iniciativa de publicar o volume que é tema desta resenha: o lançamento do longa-metragem O pagamento, dirigido por John Woo.
Talvez seja por isso que a referida editora não demonstrou capricho na realização do volume, que teve produção gráfica digna de uma edição popular das mais simplórias, com a tradução – assinada por Alexandre Raposo, Sylvio Gonçalves, Jorge Luiz Calife e E. Barreiros – comprometida por uma revisão trágica; não se preocupou em inserir um desejável texto de apresentação para situar os contos da coletânea na obra do autor e nem mesmo fez constar seus títulos originais. Somado ao altíssimo preço de capa, só mesmo sendo fã de PKD para aguentar tanto descaso. Foi tanta a falta de confiança da Record nos atrativos da ficção de Dick que a editora fez questão de citar destacadamente na capa do volume não apenas o nome do diretor da versão cinematográfica do conto que batiza a coletânea, mas três dos seus atores também, como se isso fizesse alguma diferença num texto que PKD escreveu em 1953. E não só: citou, também na capa, a coletânea anterior, Minority report: A nova lei, cuja publicação, à sua época, também foi uma jogada de oportunismo da editora.
Apesar da forma claramente depreciativa com que a editora tratou o livro, a coletânea tem méritos. O primeiro deles é que onze dos doze contos de O pagamento estavam ainda inéditos em português, exceto por um deles, "O pai-coisa" que, de acordo com o Acervo bibliográfico em língua portuguesa de fc, de Ruby F. Medeiros, havia sido anteriormente visto apenas na edição número 49 da obscura revista Suspense.
O segundo mérito é que, dentre os contos desta coletânea, há vários que podem ter perfeitamente sido os ensaios para os romances mais destacados de PKD. Pelos comentários a seguir, o leitor perspicaz certamente vai identificá-los. Entre os parêntesis está grafado o ano em que o conto foi publicado pela primeira vez.
"O pagamento" (1953)
Num futuro próximo, a sociedade civil mundial tornou-se um estado policial e apenas as corporações particulares ainda detêm uma certa independência. A Empreiteira Rethrick contrata, por tempo determinado, profissionais especializados para seus projetos internos e, completado o contrato, os trabalhadores são bem recompensados em dinheiro, mas suas memórias são apagadas para preservar o que eles viram e fizeram dentro da empresa do assédio da Polícia Secreta do governo. Jennings é um especialista em eletromecânica que acabou de cumprir seu contrato e ter a memória apagada mas, como pagamento recebe, ao invés da boa grana que esperava, apenas sete objetos ordinários e sem nenhum sentido, juntamente com uma carta de próprio punho em que ele mesmo pediu que esses objetos substituíssem o seu gordo cachê. Confuso e acreditando ter sido passado para trás pela empresa, Jennings mal tem tempo de se indignar porque, ao sair do escritório da empresa, é imediatamente detido pela PS para interrogatório e levado para a delegacia — e todos sabem que ninguém que uma vez entra na delegacia da PS é visto novamente. Poucos minutos depois, Jennings se vê usando cada um daqueles objetos para preservar sua integridade física. Sorte? Coincidência? O que haveria por trás dos dois anos em que Jennings passou na Rethrick?
"Babá" (1955)
A família Fields tem uma babá para cuidar de seus dois filhos pequenos. Ela é uma das maravilhas da tecnologia moderna, um robô compacto similar a um besouro, absolutamente confiável e eficiente, sempre pronto a atender qualquer necessidade das crianças. A babá dos Fields é um modelo discreto e depois de três anos de uso está no limite da obsolescência, mas é mantida no posto porque as crianças a adoram. Porém, as babás dedicam-se também a uma atividade obscura que vai levar a família Fields a entrar numa escalada consumista que, em tese, ela nunca desejou.
"O mundo de Jon" (1954)
A Terra está devastada pela guerra, uma guerra total que deixou o mundo em cinzas. Os sobreviventes, que se refugiaram na Lua, voltam as poucos e tentam reconstruir o planeta, mas o trabalho é difícil e progride lentamente. Por isso, os cientistas desenvolveram uma máquina do tempo, que irá ao passado resgatar os estudos do maior cientista da história humana e permitirá recuperar a perdida tecnologia dos robôs com cérebros artificiais que foram, a princípio, a ruína da Terra, mas que podem ser agora a sua redenção. O encarregado da missão é Caleb Ryan e ele tem um filho, Jon, um garoto que está enfrentando um momento difícil. Visões de um mundo pastoral o arrebatam cada vez com mais intensidade. Seu pai acredita que ele está tendo crises psicóticas e decide lobotomizá-lo antes de embarcar em sua viagem cronal. Caleb consegue resgatar os documentos que queria mas, no processo, altera dramaticamente o passado, colocando em risco a viagem de volta ao mundo em que o lobotomizado Jon o espera.
"Café da manhã no crepúsculo" (1954)
A família MacLean, pai, mãe e três filhos, desperta para mais um dia comum. Do lado de fora uma neblina muito forte impede a visão. Quando um dos filhos tenta sair para ir à escola, é impedido por um comando militar que invade a casa e subjuga toda a família. Os soldados estão atônitos e desconfiados: diante deles está uma família americana típica tomando prosaicamente o café da manhã numa residência igualmente típica que foi a única coisa a resistir ao bombardeio de saturação da noite anterior, numa guerra que já dura oito anos da qual a família MacLean nunca tinha ouvido falar.
"A cidadezinha" (1954)
Verne Haskel é um homem de meia idade que tem uma vida infeliz. Casado com uma esposa que não o ama, com um emprego do qual não gosta e um chefe que odeia, o único prazer de sua vida é um trenzinho elétrico que ele mantém montado no porão de sua casa, para o qual, ao longo dos anos, Verne construiu uma reprodução em escala da sua própria cidade, com todos os detalhes. Num acesso de frustração, ele arranca a miniatura do prédio da firma em que trabalha e a destrói, substituindo por outra miniatura sem correspondente real, e então percebe que poderia refazer toda a cidade de acordo com sua própria definição. Demite-se do emprego no dia seguinte e surpreende a esposa em adultério, mas não se abala: tranca-se no porão e dedica-se tão somente à reconstrução de sua cidadezinha, o que pode ter desdobramentos inesperados.
"O pai-coisa" (1954)
Charles Walton tem oito anos e está apavorado. Viu seu pai na garagem conversando com alguma coisa que parecia igualzinha a ele mesmo e agora sabe que o que está diante dele, na mesa do jantar, embora pareça seu pai, não é. Ele sai da mesa sem jantar e sem pedir licença, e seu pai-coisa promete-lhe castigo pela falta de modos. Charles foge pela janela do quarto e vai à garagem procurar pelo seu verdadeiro pai. O que ele encontra é apenas o início do terror.
"A Cerca de Cromo" (1954)
Don Walsh está com problemas. A sociedade em que vive está em conflito aberto por conta da pressão de um projeto de lei que pretende exigir compulsoriamente que todos os cidadãos não tenham mais odor corporal, mau-hálito e cabelos feios. E isso está causando conflitos sérios em varias partes do país, no qual Puristas (defensores da tal lei) e Naturalistas (defensores da natureza como ela é) lutam até à morte. Walsh tenta "ficar em cima do muro" o máximo de tempo possível, de forma a se afastar da violência, mas ela já se manifesta entre os membros de sua própria família. Mais cedo ou mais tarde ele terá de tomar uma atitude.
"Autofab" (1955)
Um grupo de humanos sobreviventes de uma guerra nuclear total quer paralisar a rede de fábricas automáticas de bens de consumo e suprimentos que a humanidade instalou durante a guerra para suprir os abrigos. Isso porque as fábricas estão esgotando os recursos do planeta e impedindo que os humanos voltem a cuidar de si próprios. Como não há argumentos que convençam as fábricas que, além de inexpugnáveis, são administradas e operadas por robôs auto-replicastes, eles elaboram um plano ousado para fazer com que as fábricas entrem em conflito umas com as outras.
"Os dias de Pat Prafrente" (1963)
Depois da guerra que destruiu o planeta, a humanidade sobrevivente reúne-se em pequenas comunidades isoladas, com pouco contato entre si. Sem contato físico, alienígenas marcianos arremessam ao solo, a partir de máquinas voadoras, os mantimentos que sustentam os últimos humanos sobre a Terra. Os suprimentos são fornecidos em quantidade além da necessária e a maioria é simplesmente abandonada onde caiu, servindo de alimento apenas aos estranhos animais mutantes que habitam as ruínas da civilização.
Os homens aproveitam uma ou outra coisa, sempre tendo em vista sua aplicação no tabuleiro de um jogo de representação que todos os adultos praticam, no qual Pat Prafrente, uma boneca no estilo Barbie, é a personagem principal. Todas as relações da comunidade giram em torno desse jogo e as coisas ficam confusas quando chegam notícias de um novo jogo que é praticado em uma comunidade mais distante, algo similar a Pat Prafrente, mas com outra boneca. Um casal aceita apostar seu bem mais valioso — a sua própria boneca Pat Preferente — para jogar contra os campeões desse novo jogo.
"Plantão" (1963)
A presidência dos Estados Unidos está ocupada, há uns bons anos, por um supercomputador infalível que detém o controle absoluto de todos os mecanismos sociais, econômicos, políticos e militares do país. Só por garantia, um cidadão indicado por um sindicato de classe ocupa o lugar de plantonista da presidência, para assumir o cargo no remotíssimo caso do computador falhar, o que nunca aconteceu. Para amenizar o impacto da perturbadora notícia de que uma frota de espaçonaves alienígenas foi identificada nas proximidades do Sistema Solar, o mais popular âncora jornalístico da televisão ("palhaço", de acordo com a tradução) decide pautar uma entrevista cômica com o novo indicado para essa desnecessária função burocrática. E é exatamente no momento em que a entrevista se inicia que, devido a intervenção dos alienígenas, o supercomputador presidencial falha. É hora do mais inútil dos americanos assumir o poder.
"Uma coisinha para nós, temponautas" (1974)
Os russos saíram novamente na frente dos americanos, enviando dois temponautas ao futuro e trazendo-os de volta. Para não ficar em desvantagem, o programa temporal americano envia três temponautas duas vezes mais longe, mas algo não sai bem e ocorre um acidente fatal na viagem de volta. Um dispositivo especial, chamado Atividade de Tempo de Emergência (cuja sigla o tradutor não se decidiu entre ATE ou ETA), permitiu que os temponautas voltassem ao continuum por tempo limitado, num momento posterior ao evento fatal, de forma a participarem de seus próprios féretros e contribuírem para uma propaganda mais favorável ao programa americano. Addison Doug, um dos temponautas, sofre de insistente sensação de déjà vu, como se estivessem todos presos num loop, repetindo indefinidamente os mesmos fatos. Ele acredita que a morte no acidente é única forma de interrompê-lo. Entretanto, um dos cientistas do programa sugere que é justamente o acidente fatal que está gerando o loop. Mas Addison decide garantir, talvez mais uma vez em seu loop eterno, que o acidente aconteça.
"As pré-pessoas" (1974)
Em algum momento num futuro próximo, as leis americanas pró-aborto extrapolaram: o aborto pode ser feito enquanto a alma não entrar no corpo da criança, e os burocratas decidiram que isso só acontece quando se domina álgebra, matéria que é ensinada quando as crianças têm aproximadamente dez anos de idade. Basta que os pais façam uma solicitação e uma viatura oficial — o caminhão do aborto — retira a criança indesejada de sua casa e a leva para um campo de concentração. Caso ninguém se interesse em adotá-la, será sacrificada (ou “abortada“). O oficial do caminhão de abortos detém, na estrada, um jovem que não tem os documentos obrigatórios que provariam que não é uma criança indesejada. Nesse momento, surge o pai do garoto, um homem de 35 anos que insiste que, por também não dominar a álgebra, não tem alma e deve ser igualmente abortado. Confuso, o oficial resolve levar ambos para a instalação municipal, e não imagina o problema que isso vai causar.
A coletânea é equilibrada e isso acontece não só porque PKD é um escritor acima da média, mas principalmente porque o organizador da antologia — que pode ter sido o próprio Dick, uma vez que não há nenhuma informação a respeito no livro — optou por apresentar os contos em ordem cronológica. Isso permite que o leitor acompanhe a evolução do estado da arte do autor, atingindo o clímax no conto final, de longe o melhor do conjunto. Também oferece trabalhos de vários matizes, tanto para agradar o leitor que prefere o modelo pulpish de fc — que lida com temas recorrentes que eram encomendados pelos editores das revistas que os publicavam — como aquele que aprecia obras autorais sofisticadas.
Uma das leituras que se pode fazer desta coletânea é que PKD teria um interesse especial nas viagens no tempo, com o que construiu uma espécie de história do futuro, porém isso não ocorre na mesma proporção no total da obra do autor. Nos romances, PKD investiu no tema apenas em Now wait for last year e de modo um tanto oblíquo em Counter clockworld (Regresso ao passado, Editorial Panorama). É possível que tal acúmulo de narrativas sobre viagens no tempo neste coletânea tenha sido proposital, talvez para reunir todas elas.
Mas há mais uma interpretação importante que se pode ter da leitura deste conjunto de contos e, desta vez, o restante da obra de PKD não a desmente. Ainda que a ideia de futuro de PKD seja pessimista em relação à humanidade como um todo, o autor demonstra insistência especial em desvalorizar a figura feminina, numa mal disfarçada misoginia. Em algumas histórias, as personagens femininas simplesmente inexistem e, na maioria, assumem papel apenas coadjuvante ou de pouco significado. Mas o autor as trata de maneira declaradamente animosa em "A cidadezinha" e "As pré-pessoas". Nesta, em especial, há um discurso mais de uma página acusando as mulheres de "fêmeas castradoras" e de serem as principais interessadas na legalização do aborto. Dick casou-se nada menos que cinco vezes ao longo de sua vida e isso deve ter algo a ver com esse pensamento que é recorrente em sua obra.
Apesar de tudo, O pagamento é um livro altamente recomendável ao leitor que aprecia uma leitura inteligente, embora possa gerar perturbação psicológica e desvios na percepção da realidade. Mas essa é marca registrada de todos os trabalhos de PKD.
sábado, 15 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: O livro do cemitério, Neil Gaiman
O livro do cemitério (The graveyard book), Neil Gaiman. 336 páginas. Ilustrações de Dave McKean. Tradução de Ryta Vinagre. Coleção Jovens Leitores. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
O autor britânico Neil Gaiman, desde que voltou sua carreira prioritariamente para a literatura – antes ele se dedicava mais aos quadrinhos – vem arrebatando os mais cobiçados prêmios da FC&F internacional, como os Hugo, Nebula e Locus, às vezes com contos, outras com novelas e romances. Em 2010, a editora Rocco publicou, em sua coleção Jovens Leitores, O livro do cemitério que, em 2009, recebeu o prêmio Hugo de Melhor Romance. A história apareceu primeiro como um conto na antologia M is for magic (2008) e recebeu o prêmio Locus de melhor noveleta.
Conta a delicada história de Ninguém Owens, um bebê que, numa noite trágica, escapa de seu berço e gatinha pela rua até ter a atenção atraída por um cemitério antigo. Enquanto o bebê faz sua viagem de exploração, Jack, um assassino implacável e perfeccionista a serviço de uma organização muito misteriosa, chacina seus pais e irmãos. Quando chega ao berço para completar o serviço, o encontra vazio. Furioso, parte para a rua na intenção completar a tarefa.
O espírito recém desencarnado da mãe assassinada, nos poucos momentos de que dispõe, implora aos fantasmas do cemitério que protejam o seu bebê. Ele é escondido e o assassino vai embora frustrado, mas resoluto em terminar o trabalho no futuro.
O pequeno é adotado pelo falecido casal Owen que, como não sabe seu nome, o chama de Ninguém. Silas, um estranho morador da capela do cemitério, que não é fantasma mas também não está exatamente vivo, aceita proteger o menino e é ele quem proporciona, a partir de então, alimento, roupas e outras necessidades básicas da criança. Sua educação, contudo, fica ao cargo da população desencarnada que ali habita, gente de diversas épocas, algumas mortas há centenas de anos. Nin, como é carinhosamente chamado, vive escondido no cemitério, sem contato com os vivos, pois os fantasmas temem que, caso ele saia, seja atacado pelo assassino. Contra todos os prognósticos, Nin cresce e se desenvolve nas artes fantasmagóricas, adquirindo poderes que geralmente só os fantasmas têm.
Muitos outros personagens intrigantes aparecem na história, entre eles a Sra. Lupescu, membro dos Sabujos de Deus, por quem a princípio Nin não nutre muita simpatia, mas que se revela sua mais dedicada protetora.
As aventuras de Nin dentro do cemitério têm um aspecto épico grandioso. É um mundo à parte, com regras especiais e uma beleza que só mesmo um fantasma pode apreciar. Uma das tumbas, por exemplo, guarda a entrada do mundo dos ghouls, os devoradores de cadáveres, assim como uma estranha e assustadora cripta encravada nas profundezas do cemitério, onde habita uma entidade tão antiga quanto poderosa.
Certo dia, Nin conhece Scalett, uma menina viva que vai brincar no cemitério. Ela não fica por muito tempo, mas Nin desenvolve por ela uma afeição especial e acaba iniciando-a nos mistérios de sua estranha vida. Nem ele, nem ela e nem mesmo os leitores podem imaginar a importância que a garota terá no desfecho desta história.
Os fantasmas tentam, mas não conseguem refrear a curiosidade e a iniciativa do menino quando ele começa a explorar o exterior do cemitério. Sua aparência desgrenhada e roupas estranhas chamam a atenção e logo Jack está de volta para concluir o serviço inacabado.
O Livro do Cemitério tem muitos atributos para agradar o leitor, além da riqueza de seus personagens, todos memoráveis – incluindo Jack – e do enredo movimentado e surpreendente. O maravilhamento emana mais intensamente das coisas que não chegam a ser mostradas e explicadas, como a imensa cidade fortificada dos ghouls, as motivações da estranha corporação que quer Nin morto, a natureza incógnita dos protetores de Nin, além das histórias fascinantes de cada um dos fantasmas daquele cemitério.
Gaiman constrói um ambiente britânico de intenso clima gótico e, espertamente, adota o mesmo artifício que Stephen King e Peter Straub usaram em O talismã, encerrando a história quando o menino atinge a idade em que não será mais um menino, deixando ao leitor a perspectiva de imaginar como seria uma possível sequência. Não sei se Gaiman resistirá em contá-la ele mesmo; King e Straub não conseguiram evitá-lo.
As ilustrações são uma atração à parte. Dave McKean é parceiro histórico de Gaiman desde seu primeiro trabalho americano, a minissérie em quadrinhos Orquídea Negra, depois como capista de todas as edições de Sandman. Seu estilo está intimamente identificado com a arte de Gaiman, de forma que não poderia ter sido uma escolha melhor. McKean trabalhou aqui apenas com nanquim negro, num desenho repleto de contrastes dramáticos que lembram o cinema expressionista alemão. A presença das ilustrações reforça o objetivo juvenil da edição, porém a história de infância de Nin Owen no cemitério guarda segredos suficientes para causar interesse nos adultos também. E o estilo arrojado de McKean contribui para dar-lhe os contornos visuais adequados.
Gaiman tem tantas qualidades como contador de histórias que não é de estranhar, portanto, que o livro tenha sido premiado com o Hugo, numa votação popular de fãs de ficção científica. Além do Hugo, O livro do cemitério recebeu a Newbery Medal, a Carnegie Medal e foi indicado ao prêmio Locus de Melhor Novela Juvenil. Uma leitura extremamente agradável, desde que o leitor não se incomode com alguma morbidez.
O autor britânico Neil Gaiman, desde que voltou sua carreira prioritariamente para a literatura – antes ele se dedicava mais aos quadrinhos – vem arrebatando os mais cobiçados prêmios da FC&F internacional, como os Hugo, Nebula e Locus, às vezes com contos, outras com novelas e romances. Em 2010, a editora Rocco publicou, em sua coleção Jovens Leitores, O livro do cemitério que, em 2009, recebeu o prêmio Hugo de Melhor Romance. A história apareceu primeiro como um conto na antologia M is for magic (2008) e recebeu o prêmio Locus de melhor noveleta.
Conta a delicada história de Ninguém Owens, um bebê que, numa noite trágica, escapa de seu berço e gatinha pela rua até ter a atenção atraída por um cemitério antigo. Enquanto o bebê faz sua viagem de exploração, Jack, um assassino implacável e perfeccionista a serviço de uma organização muito misteriosa, chacina seus pais e irmãos. Quando chega ao berço para completar o serviço, o encontra vazio. Furioso, parte para a rua na intenção completar a tarefa.
O espírito recém desencarnado da mãe assassinada, nos poucos momentos de que dispõe, implora aos fantasmas do cemitério que protejam o seu bebê. Ele é escondido e o assassino vai embora frustrado, mas resoluto em terminar o trabalho no futuro.
O pequeno é adotado pelo falecido casal Owen que, como não sabe seu nome, o chama de Ninguém. Silas, um estranho morador da capela do cemitério, que não é fantasma mas também não está exatamente vivo, aceita proteger o menino e é ele quem proporciona, a partir de então, alimento, roupas e outras necessidades básicas da criança. Sua educação, contudo, fica ao cargo da população desencarnada que ali habita, gente de diversas épocas, algumas mortas há centenas de anos. Nin, como é carinhosamente chamado, vive escondido no cemitério, sem contato com os vivos, pois os fantasmas temem que, caso ele saia, seja atacado pelo assassino. Contra todos os prognósticos, Nin cresce e se desenvolve nas artes fantasmagóricas, adquirindo poderes que geralmente só os fantasmas têm.
Muitos outros personagens intrigantes aparecem na história, entre eles a Sra. Lupescu, membro dos Sabujos de Deus, por quem a princípio Nin não nutre muita simpatia, mas que se revela sua mais dedicada protetora.
As aventuras de Nin dentro do cemitério têm um aspecto épico grandioso. É um mundo à parte, com regras especiais e uma beleza que só mesmo um fantasma pode apreciar. Uma das tumbas, por exemplo, guarda a entrada do mundo dos ghouls, os devoradores de cadáveres, assim como uma estranha e assustadora cripta encravada nas profundezas do cemitério, onde habita uma entidade tão antiga quanto poderosa.
Certo dia, Nin conhece Scalett, uma menina viva que vai brincar no cemitério. Ela não fica por muito tempo, mas Nin desenvolve por ela uma afeição especial e acaba iniciando-a nos mistérios de sua estranha vida. Nem ele, nem ela e nem mesmo os leitores podem imaginar a importância que a garota terá no desfecho desta história.
Os fantasmas tentam, mas não conseguem refrear a curiosidade e a iniciativa do menino quando ele começa a explorar o exterior do cemitério. Sua aparência desgrenhada e roupas estranhas chamam a atenção e logo Jack está de volta para concluir o serviço inacabado.
O Livro do Cemitério tem muitos atributos para agradar o leitor, além da riqueza de seus personagens, todos memoráveis – incluindo Jack – e do enredo movimentado e surpreendente. O maravilhamento emana mais intensamente das coisas que não chegam a ser mostradas e explicadas, como a imensa cidade fortificada dos ghouls, as motivações da estranha corporação que quer Nin morto, a natureza incógnita dos protetores de Nin, além das histórias fascinantes de cada um dos fantasmas daquele cemitério.
Gaiman constrói um ambiente britânico de intenso clima gótico e, espertamente, adota o mesmo artifício que Stephen King e Peter Straub usaram em O talismã, encerrando a história quando o menino atinge a idade em que não será mais um menino, deixando ao leitor a perspectiva de imaginar como seria uma possível sequência. Não sei se Gaiman resistirá em contá-la ele mesmo; King e Straub não conseguiram evitá-lo.
As ilustrações são uma atração à parte. Dave McKean é parceiro histórico de Gaiman desde seu primeiro trabalho americano, a minissérie em quadrinhos Orquídea Negra, depois como capista de todas as edições de Sandman. Seu estilo está intimamente identificado com a arte de Gaiman, de forma que não poderia ter sido uma escolha melhor. McKean trabalhou aqui apenas com nanquim negro, num desenho repleto de contrastes dramáticos que lembram o cinema expressionista alemão. A presença das ilustrações reforça o objetivo juvenil da edição, porém a história de infância de Nin Owen no cemitério guarda segredos suficientes para causar interesse nos adultos também. E o estilo arrojado de McKean contribui para dar-lhe os contornos visuais adequados.
Gaiman tem tantas qualidades como contador de histórias que não é de estranhar, portanto, que o livro tenha sido premiado com o Hugo, numa votação popular de fãs de ficção científica. Além do Hugo, O livro do cemitério recebeu a Newbery Medal, a Carnegie Medal e foi indicado ao prêmio Locus de Melhor Novela Juvenil. Uma leitura extremamente agradável, desde que o leitor não se incomode com alguma morbidez.
sexta-feira, 14 de abril de 2023
Resenha do Almanaque: Jonathan Strange & Mr. Norrell, Susanna Clarke
Jonathan Strange & Mr. Norrell, Susanna Clarke. 818 páginas. Ilustrações de Portia Rosenberg, tradução de José Antonio Arantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Por volta de 1806, a Inglaterra passava por dificuldades dramáticas. Napoleão Bonaparte conquistara toda a Europa e estava às portas das ilhas britânicas. Havia dificuldades para o povo, que passava por tempos bicudos. Em York havia uma muito respeitada associação de magos, a Sociedade Culta dos Magos de York, que reunia-se periodicamente para discutir magia. Certo dia, um jovem membro da confraria, chamado Secundus, ousou fazer a pergunta fatídica: “por que não se praticava mais magia na Inglaterra?”
É claro que tal pergunta causou embaraço aos magos. Afinal, todo mundo sabia que apenas o estudo da história da magia era algo respeitável. Não era de bom tom praticar magia, coisa de trapaceiros, espertalhões e vagabundos que faziam truques baratos nas ruas para ganhar trocados dos transeuntes crédulos. Isso posto, voltaram aos seus estudos e discussões, deixando o pobre Secundus abandonado em seu canto. Mas um daqueles homens veneráveis acabou por compartilhar da dúvida dele. Mr. Honeyfoot aproximou-se de Secundus e ambos planejaram procurar a opinião de um mago recluso, um tal Mr. Norrel, que morava numa herdade afastada em Hurtfew Abbey. Depois de trocarem algumas cartas combinando o encontro, foram visitá-lo. Mr. Norrell residia numa casa severa, mas confortável, e possuía a maior biblioteca de livros de magia que qualquer mago jamais vira. Era, de fato, um fanático por livros e passava todas as horas de seus dias enfiado nessa biblioteca. Livros raríssimos ali estavam, muitos centenários, exemplares únicos escritos a mão por seus próprios autores. Livros sobre magia que encantaram Mr. Honneyfoot, mas também muitos livros DE magia, escritos por magos antigos e esquecidos pelo mundo. Ao ser questionado sobre o motivo de não haver mais magia na Inglaterra, Mr. Norrel preferiu aceitar o desafio de ele mesmo realizar um ato de magia. Para isso, marcou data, hora e local, a igreja de York. No dia e hora marcados, todos os desconfiados membros da Sociedade Culta dos Magos de York compareceram à igreja para testemunhar, na hora exata, a pretensa manifestação de magia de Mr. Norrell. O mesmo, porém, não se apresentava ali. Enviara apenas um criado, Mr. Childermass, pois para realizar magia não era preciso que o mago estivesse presente. Nem mesmo Childermass era necessário ali. Ele compareceu apenas para trazer um tipo de contrato que todos os magos da Sociedade deveriam assinar. Ele condicionava que, em caso de uma demonstração satisfatória, a Sociedade Culta dos Magos de York deveria ser dissolvida e todos os seus membros deveriam abandonar imediatamente os estudos de magia.
Aceita a condição, todos reuniram-se na nave da igreja e testemunharam, boquiabertos, cada uma das estátuas de pedra santos, gárgulas, e até os rococós barrocos e os motivos florais ganharem uma súbita e voluptuosa loquacidade, discursando, cantando, dançando e toda a gama possível de coisas que uma estátua viva poderia fazer, inclusive contando segredos que deixaram os magos de cabelos em pé. Era o fim da Sociedade Culta dos Magos de York.
Assim principia a saga de Jonathan Strange & Mr. Norrell no surpreendente universo alternativo que a escritora britânica Susanna Clarke criou e desenvolveu até os seus mínimos detalhes, e lhe valeu o merecido Prêmio Hugo de melhor romance de 2005. O volume massivo, com mais de oitocentas páginas, assusta, mas não são páginas difíceis de devorar e, como em todo bom romance, voam uma pós a outra até que o leitor se vê desejando que elas não acabem nunca.
O livro foi dividido em três tomos principais, mais ou menos autônomos. No primeiro, chamado " Mr. Norrell", acompanhamos o ressurgimento da magia inglesa através das ações de Norrell em sua busca por estabelecer uma esfera de influência na corte, e cada um dos pequenos detalhes necessários à construção da maior parte dos personagens importantes à trama, bem como ao entendimento desse universo em tudo semelhante ao nosso, exceto pelo fato da magia ser uma força funcional, esquecida, mas passível de ser recuperada. A autora recria a história pregressa da Inglaterra, contando sobre um reino autônomo no norte da ilha no qual, por algumas centenas de anos, imperou um mago poderoso, o Rei Corvo, chamado entre os homens de John Uskglass, que desapareceu repentinamente em certa altura.
Nos tempos do Rei Corvo, as estradas entre o mundo dos homens e o mundo encantado estavam francamente abertas, homens e seres mágicos circulavam livremente entre os mundos. Na ausência do Rei Corvo, essas ligações foram desaparecendo e caindo no esquecimento. Durante esse período, ainda existiram magos práticos, que fizeram maravilhas e deixaram livros com suas instruções. Foram os magos áureos, que usavam as estradas do Rei Corvo e mantinham servos mágicos, o que lhes garantia um acréscimo significativo de poder. Depois deles vieram os magos argênteos, bem menos poderosos, geralmente dedicados a estudos acadêmicos da magia e, seguido-se a eles, mais de 200 anos de esquecimento. Porém, muitos dos homens das terras do norte esperam a volta do Rei Corvo e mesmo aqueles que dele não se recordam, comungam dessa mesma esperança em seu íntimo mais profundo. Além do que, as terras do norte estão ainda encharcadas do poder da magia adormecida do rei Corvo e, eventualmente, coisas inexplicáveis acontecem.
Essa superestrutura pseudo-histórica é construída ao longo de todo o livro, tanto nas ações e diálogos do texto principal, quanto em numerosas e deliciosas notas de pé-de-página, algumas bastante extensas, que formam um livro a parte dentro do romance e emprestam a ele uma sensação de realismo eficiente. Muitas dessas pequenas histórias são tão interessantes que, bem desenvolvidas, cada uma delas resultaria em um romance muito bom.
Na sequência dos fatos desta primeira parte, Mr. Norrel, confiante na notoriedade adquirida com o sucesso de sua demonstração de magia em York, transferiu-se para Londres para estabelecer-se, junto a sociedade londrina como o único mago em atividade na Inglaterra. Pretendia oferecer seus serviços à Coroa e servir ao país na guerra, usando suas habilidade e conhecimentos mágicos para enfrentar Napoleão. Mas os militares não estavam dispostos a aceitar esse tipo de ajuda, na qual não confiavam. Foi quando Norrel, já um tanto deprimido, teve a chance de demonstrar mais uma vez seus poderes quando a jovem noiva de um figurão faleceu. Chamado com urgência, Norrell foi encarregado de ressuscitá-la e, muito a contragosto, o fez, selando para isso uma pacto com um ser mágico que viria a se tornar um grande problema não apenas para o próprio Norrell, mas para toda a comunidade britânica.
Na segunda parte do livro, chamada "Jonathan Strange", somos enfim apresentados ao protagonista do romance. Herdeiro de uma grande fortuna e absolutamente incompetente em quase tudo o que um homem pode fazer, Jonathan decidiu finalmente que seria um mago. Passou a pesquisar por conta própria e, apesar da pouca oferta de literatura adequada – afinal, TODOS os livros de magia estavam seguramente guardados na biblioteca de Norrell – conseguiu executar alguns encantamentos notáveis que logo o elevaram a categoria de segundo maior mago da Inglaterra.
Isso bastou para que Norrel quisesse conhecê-lo e, apesar de todos esperarem que os dois magos não se simpatizariam, acabaram se entendendo muito bem um com outro, de modo que desde então Strange passou a ser aprendiz de Norrell. É claro que havia segundas intenções de parte a parte. Enquanto Strange via em Norrell a única oportunidade de lhe ser franqueado o acesso a mais completa e relevante literatura sobre magia disponível na Inglaterra, Norrell queria orientar seu pupilo na sua própria filosofia mágica e evitar que ele restabelecesse, como era evidente que faria, o tipo de prática mágica do desaparecido John Uskglass, que Norrell abominava.
Quando Strange é convocado para servir a Inglaterra junto ao Lorde Wellington contra as tropas de francesas em Portugal, é que a história deste livro finalmente começa. Strange tem que improvisar no campo de batalha e, aos poucos, com erros e acertos, conquista o respeito e a confiança de Wellington, retornando para a Inglaterra como herói nacional. Quando Napoleão realiza uma grande investida final, Strange é novamente convocado para a batalha. Desta vez os combates são ainda mais ferozes e Strange novamente prova ser uma peça de importância na sangrenta batalha de Waterloo.
Com a Europa pacificada, Strange retorna a Inglaterra para passar algum tempo em férias com sua esposa Arabella e escrever seu primeiro livro. Durante uma temporada em sua residência natal, Arabella é raptada pelo ser mágico que auxiliara Norrel em sua magia necromante, e usa de astúcia para fazer Strange acreditar que ela morreu. A partir desse episódio, a vida de Strange, bem como seu equilíbrio emocional, vão se complicando, decorrente das ações tomadas por ele mesmo e por outros antes dele, inclusive o acomodado Norrell.
A terceira parte, chamada "John Uskglass", é a mais sombria de todo o volume e caracteriza uma história dark fantasy típica. Nela, é lançada a primeira edição do livro de Strange, no qual ele se investe da vocação mágica do Rei Corvo. Isso desgosta profundamente Norrell e a relação entre os dois magos fica estremecida. Strange rompe com Norrell e viaja para a Itália.
Em Veneza, Strange descobre os mais profundos segredos da magia do Rei Corvo, o destino verdadeiro de sua esposa e a única forma de realmente adquirir poder suficiente para resgatá-la do domínio de perigoso ser mágico que está disposto a matar todos os magos da Inglaterra. Para isso terá de encontrar O LIVRO, o mais poderoso compêndio de magia jamais escrito, de autoria nada menos do próprio Rei Corvo e escrito numa língua exclusiva, por ele inventada. Mas este não é um livro como outro qualquer, pois ele vaga pela Inglaterra, na forma de um homem. Esse torvelinho ainda apresenta outros perigos vindo do mundo encantado, o surgimento de um novo rei para a Inglaterra e a uma tremenda maldição que vai acompanhar Strange até o final de seus dias, quem sabe.
Susanna Clarke prova ser uma excelente construtora de personagens cativantes e profundos. Mesmo aqueles que aparecem apenas durante algumas páginas deixam sua marca na narrativa. Cada detalhe deixado solto em algum lugar é retomado e enovelado cuidadosamente antes de se virar a 817ª página. A autora também demonstra muita habilidade com a pesquisa e a ambientação histórica, e seu romance fica na fronteira entre a fantasia e a história alternativa, gozando plenamente das qualidades de ambos os gêneros.
Por volta de 1806, a Inglaterra passava por dificuldades dramáticas. Napoleão Bonaparte conquistara toda a Europa e estava às portas das ilhas britânicas. Havia dificuldades para o povo, que passava por tempos bicudos. Em York havia uma muito respeitada associação de magos, a Sociedade Culta dos Magos de York, que reunia-se periodicamente para discutir magia. Certo dia, um jovem membro da confraria, chamado Secundus, ousou fazer a pergunta fatídica: “por que não se praticava mais magia na Inglaterra?”
É claro que tal pergunta causou embaraço aos magos. Afinal, todo mundo sabia que apenas o estudo da história da magia era algo respeitável. Não era de bom tom praticar magia, coisa de trapaceiros, espertalhões e vagabundos que faziam truques baratos nas ruas para ganhar trocados dos transeuntes crédulos. Isso posto, voltaram aos seus estudos e discussões, deixando o pobre Secundus abandonado em seu canto. Mas um daqueles homens veneráveis acabou por compartilhar da dúvida dele. Mr. Honeyfoot aproximou-se de Secundus e ambos planejaram procurar a opinião de um mago recluso, um tal Mr. Norrel, que morava numa herdade afastada em Hurtfew Abbey. Depois de trocarem algumas cartas combinando o encontro, foram visitá-lo. Mr. Norrell residia numa casa severa, mas confortável, e possuía a maior biblioteca de livros de magia que qualquer mago jamais vira. Era, de fato, um fanático por livros e passava todas as horas de seus dias enfiado nessa biblioteca. Livros raríssimos ali estavam, muitos centenários, exemplares únicos escritos a mão por seus próprios autores. Livros sobre magia que encantaram Mr. Honneyfoot, mas também muitos livros DE magia, escritos por magos antigos e esquecidos pelo mundo. Ao ser questionado sobre o motivo de não haver mais magia na Inglaterra, Mr. Norrel preferiu aceitar o desafio de ele mesmo realizar um ato de magia. Para isso, marcou data, hora e local, a igreja de York. No dia e hora marcados, todos os desconfiados membros da Sociedade Culta dos Magos de York compareceram à igreja para testemunhar, na hora exata, a pretensa manifestação de magia de Mr. Norrell. O mesmo, porém, não se apresentava ali. Enviara apenas um criado, Mr. Childermass, pois para realizar magia não era preciso que o mago estivesse presente. Nem mesmo Childermass era necessário ali. Ele compareceu apenas para trazer um tipo de contrato que todos os magos da Sociedade deveriam assinar. Ele condicionava que, em caso de uma demonstração satisfatória, a Sociedade Culta dos Magos de York deveria ser dissolvida e todos os seus membros deveriam abandonar imediatamente os estudos de magia.
Aceita a condição, todos reuniram-se na nave da igreja e testemunharam, boquiabertos, cada uma das estátuas de pedra santos, gárgulas, e até os rococós barrocos e os motivos florais ganharem uma súbita e voluptuosa loquacidade, discursando, cantando, dançando e toda a gama possível de coisas que uma estátua viva poderia fazer, inclusive contando segredos que deixaram os magos de cabelos em pé. Era o fim da Sociedade Culta dos Magos de York.
Assim principia a saga de Jonathan Strange & Mr. Norrell no surpreendente universo alternativo que a escritora britânica Susanna Clarke criou e desenvolveu até os seus mínimos detalhes, e lhe valeu o merecido Prêmio Hugo de melhor romance de 2005. O volume massivo, com mais de oitocentas páginas, assusta, mas não são páginas difíceis de devorar e, como em todo bom romance, voam uma pós a outra até que o leitor se vê desejando que elas não acabem nunca.
O livro foi dividido em três tomos principais, mais ou menos autônomos. No primeiro, chamado " Mr. Norrell", acompanhamos o ressurgimento da magia inglesa através das ações de Norrell em sua busca por estabelecer uma esfera de influência na corte, e cada um dos pequenos detalhes necessários à construção da maior parte dos personagens importantes à trama, bem como ao entendimento desse universo em tudo semelhante ao nosso, exceto pelo fato da magia ser uma força funcional, esquecida, mas passível de ser recuperada. A autora recria a história pregressa da Inglaterra, contando sobre um reino autônomo no norte da ilha no qual, por algumas centenas de anos, imperou um mago poderoso, o Rei Corvo, chamado entre os homens de John Uskglass, que desapareceu repentinamente em certa altura.
Nos tempos do Rei Corvo, as estradas entre o mundo dos homens e o mundo encantado estavam francamente abertas, homens e seres mágicos circulavam livremente entre os mundos. Na ausência do Rei Corvo, essas ligações foram desaparecendo e caindo no esquecimento. Durante esse período, ainda existiram magos práticos, que fizeram maravilhas e deixaram livros com suas instruções. Foram os magos áureos, que usavam as estradas do Rei Corvo e mantinham servos mágicos, o que lhes garantia um acréscimo significativo de poder. Depois deles vieram os magos argênteos, bem menos poderosos, geralmente dedicados a estudos acadêmicos da magia e, seguido-se a eles, mais de 200 anos de esquecimento. Porém, muitos dos homens das terras do norte esperam a volta do Rei Corvo e mesmo aqueles que dele não se recordam, comungam dessa mesma esperança em seu íntimo mais profundo. Além do que, as terras do norte estão ainda encharcadas do poder da magia adormecida do rei Corvo e, eventualmente, coisas inexplicáveis acontecem.
Essa superestrutura pseudo-histórica é construída ao longo de todo o livro, tanto nas ações e diálogos do texto principal, quanto em numerosas e deliciosas notas de pé-de-página, algumas bastante extensas, que formam um livro a parte dentro do romance e emprestam a ele uma sensação de realismo eficiente. Muitas dessas pequenas histórias são tão interessantes que, bem desenvolvidas, cada uma delas resultaria em um romance muito bom.
Na sequência dos fatos desta primeira parte, Mr. Norrel, confiante na notoriedade adquirida com o sucesso de sua demonstração de magia em York, transferiu-se para Londres para estabelecer-se, junto a sociedade londrina como o único mago em atividade na Inglaterra. Pretendia oferecer seus serviços à Coroa e servir ao país na guerra, usando suas habilidade e conhecimentos mágicos para enfrentar Napoleão. Mas os militares não estavam dispostos a aceitar esse tipo de ajuda, na qual não confiavam. Foi quando Norrel, já um tanto deprimido, teve a chance de demonstrar mais uma vez seus poderes quando a jovem noiva de um figurão faleceu. Chamado com urgência, Norrell foi encarregado de ressuscitá-la e, muito a contragosto, o fez, selando para isso uma pacto com um ser mágico que viria a se tornar um grande problema não apenas para o próprio Norrell, mas para toda a comunidade britânica.
Na segunda parte do livro, chamada "Jonathan Strange", somos enfim apresentados ao protagonista do romance. Herdeiro de uma grande fortuna e absolutamente incompetente em quase tudo o que um homem pode fazer, Jonathan decidiu finalmente que seria um mago. Passou a pesquisar por conta própria e, apesar da pouca oferta de literatura adequada – afinal, TODOS os livros de magia estavam seguramente guardados na biblioteca de Norrell – conseguiu executar alguns encantamentos notáveis que logo o elevaram a categoria de segundo maior mago da Inglaterra.
Isso bastou para que Norrel quisesse conhecê-lo e, apesar de todos esperarem que os dois magos não se simpatizariam, acabaram se entendendo muito bem um com outro, de modo que desde então Strange passou a ser aprendiz de Norrell. É claro que havia segundas intenções de parte a parte. Enquanto Strange via em Norrell a única oportunidade de lhe ser franqueado o acesso a mais completa e relevante literatura sobre magia disponível na Inglaterra, Norrell queria orientar seu pupilo na sua própria filosofia mágica e evitar que ele restabelecesse, como era evidente que faria, o tipo de prática mágica do desaparecido John Uskglass, que Norrell abominava.
Quando Strange é convocado para servir a Inglaterra junto ao Lorde Wellington contra as tropas de francesas em Portugal, é que a história deste livro finalmente começa. Strange tem que improvisar no campo de batalha e, aos poucos, com erros e acertos, conquista o respeito e a confiança de Wellington, retornando para a Inglaterra como herói nacional. Quando Napoleão realiza uma grande investida final, Strange é novamente convocado para a batalha. Desta vez os combates são ainda mais ferozes e Strange novamente prova ser uma peça de importância na sangrenta batalha de Waterloo.
Com a Europa pacificada, Strange retorna a Inglaterra para passar algum tempo em férias com sua esposa Arabella e escrever seu primeiro livro. Durante uma temporada em sua residência natal, Arabella é raptada pelo ser mágico que auxiliara Norrel em sua magia necromante, e usa de astúcia para fazer Strange acreditar que ela morreu. A partir desse episódio, a vida de Strange, bem como seu equilíbrio emocional, vão se complicando, decorrente das ações tomadas por ele mesmo e por outros antes dele, inclusive o acomodado Norrell.
A terceira parte, chamada "John Uskglass", é a mais sombria de todo o volume e caracteriza uma história dark fantasy típica. Nela, é lançada a primeira edição do livro de Strange, no qual ele se investe da vocação mágica do Rei Corvo. Isso desgosta profundamente Norrell e a relação entre os dois magos fica estremecida. Strange rompe com Norrell e viaja para a Itália.
Em Veneza, Strange descobre os mais profundos segredos da magia do Rei Corvo, o destino verdadeiro de sua esposa e a única forma de realmente adquirir poder suficiente para resgatá-la do domínio de perigoso ser mágico que está disposto a matar todos os magos da Inglaterra. Para isso terá de encontrar O LIVRO, o mais poderoso compêndio de magia jamais escrito, de autoria nada menos do próprio Rei Corvo e escrito numa língua exclusiva, por ele inventada. Mas este não é um livro como outro qualquer, pois ele vaga pela Inglaterra, na forma de um homem. Esse torvelinho ainda apresenta outros perigos vindo do mundo encantado, o surgimento de um novo rei para a Inglaterra e a uma tremenda maldição que vai acompanhar Strange até o final de seus dias, quem sabe.
Susanna Clarke prova ser uma excelente construtora de personagens cativantes e profundos. Mesmo aqueles que aparecem apenas durante algumas páginas deixam sua marca na narrativa. Cada detalhe deixado solto em algum lugar é retomado e enovelado cuidadosamente antes de se virar a 817ª página. A autora também demonstra muita habilidade com a pesquisa e a ambientação histórica, e seu romance fica na fronteira entre a fantasia e a história alternativa, gozando plenamente das qualidades de ambos os gêneros.
quinta-feira, 13 de abril de 2023
Lançamento: Tapioca Fantástica
Acaba de ser lançada mais uma revista eletrônica de literatura especulativa: Tapioca Fantástica.
Editada por Diogo Andrade, traz textos inéditos de Ana Lúcia Merege, Elias Flamel, Clecius Alexandre Duran, Moacir Fio, GabiOz, Bruno Crispim, Bernardo Stamato, Carol Mancini e do próprio editor, todos trabalhando sob o tema "piratas".
Diz o texto de divulgação: "Tapioca Fantástica é um coletivo de amigos escritores, que decidiram criar uma revista literária mesclando o que têm em comum: escrever literatura fantástica. Temperando seus textos por modos diferentes de criar mundos, nossos autores trarão o melhor das histórias de fantasia, terror, aventuras e tudo o que a inspiração mandar. Nessa primeira edição, nós te convidamos a um mergulho. Não no mar. Na tua memória, lá onde estão guardadas as primeiras histórias que você leu ou que te contaram. Talvez não seja muito diferente, em termos simbólicos. Mais de um escritor já usou a expressão 'mar de histórias' pra se referir à fonte de todas as narrativas que ecoam pelo mundo. E quando mergulhar, aposto, você vai encontrar piratas. Eles navegam o mar de histórias há milênios, levando o terror e o fascínio onde quer que estejam."
A revista está disponível para leitores Kindle, e também pode ser lida online no aplicativo do próprio saite. Aproveite rápido, pois esta Tapioca está temporariamente gratuita aqui.
Editada por Diogo Andrade, traz textos inéditos de Ana Lúcia Merege, Elias Flamel, Clecius Alexandre Duran, Moacir Fio, GabiOz, Bruno Crispim, Bernardo Stamato, Carol Mancini e do próprio editor, todos trabalhando sob o tema "piratas".
Diz o texto de divulgação: "Tapioca Fantástica é um coletivo de amigos escritores, que decidiram criar uma revista literária mesclando o que têm em comum: escrever literatura fantástica. Temperando seus textos por modos diferentes de criar mundos, nossos autores trarão o melhor das histórias de fantasia, terror, aventuras e tudo o que a inspiração mandar. Nessa primeira edição, nós te convidamos a um mergulho. Não no mar. Na tua memória, lá onde estão guardadas as primeiras histórias que você leu ou que te contaram. Talvez não seja muito diferente, em termos simbólicos. Mais de um escritor já usou a expressão 'mar de histórias' pra se referir à fonte de todas as narrativas que ecoam pelo mundo. E quando mergulhar, aposto, você vai encontrar piratas. Eles navegam o mar de histórias há milênios, levando o terror e o fascínio onde quer que estejam."
A revista está disponível para leitores Kindle, e também pode ser lida online no aplicativo do próprio saite. Aproveite rápido, pois esta Tapioca está temporariamente gratuita aqui.
quarta-feira, 12 de abril de 2023
Psiu 7
Junto ao QI 181, cuja publicação foi comentada aqui há aguns dias, o editor Edgard Giimarães, através do selo EGO-Edgard Guimarães Organizador, da Editora Marca de Fantasia, lançou a sétima edição de Psiu, fanzine de quadrinhos que teve edições memoráveis nos anos de ouro dos fanzines. Agora em formato exclusivamente digital, a publicação recupera materiais que estavam "represados" nos arquivos do editor desde a época do fanzine impresso. Nem tudo é inédito mas mesmo os já publicados são trabalhos antigos nunca vistos pelos leitores desta geração.
Em 52 páginas, Psiu 7 apresenta trabalhos de Luiz Iório, Mário Latino, Paulo Emmanuel, George Silva, Angelo Pastro, Domício e até um antigo trabalho meu, a hq "O futuro dos símbolos", de uma única página, publicada em algum dos muitos fanzines de quadrinhos dos anos 1990. Psiu também resgata trabalhos publicados em jornais e revistas antigos, como as produções de Isomar (de 1960) e de J. Carlos (de 1929), além de um trabalho do próprio editor quando jovem.
Esta edição do Psiu pode ser baixada gratuitamente aqui. Todas as edições anteriores estão também disponíveis.
Em 52 páginas, Psiu 7 apresenta trabalhos de Luiz Iório, Mário Latino, Paulo Emmanuel, George Silva, Angelo Pastro, Domício e até um antigo trabalho meu, a hq "O futuro dos símbolos", de uma única página, publicada em algum dos muitos fanzines de quadrinhos dos anos 1990. Psiu também resgata trabalhos publicados em jornais e revistas antigos, como as produções de Isomar (de 1960) e de J. Carlos (de 1929), além de um trabalho do próprio editor quando jovem.
Esta edição do Psiu pode ser baixada gratuitamente aqui. Todas as edições anteriores estão também disponíveis.
terça-feira, 11 de abril de 2023
Conexão Literatura 94
Está disponível a edição 94 do periódico eletrônico Conexão Literatura, editado por Ademir Pascale, dedicado à divulgação e publicidade de novos autores e obras da literatura brasileira.
A edição, referente a abril de 2023, tem 164 páginas e destaca o trabalho do escritor e ilustrador paraibano Junior Misaki. Traz ainda contos de Iraci Marin, Roberto Schima, Ney Alencar, Maria Izelda Frizzo, Gilmar Duarte Rocha, Idicampos, Mirian Santiago e Mónica Palacios, além de entrevistas com artistas, poemas, crônicas, resenhas e artigos de assuntos variados.
A revista tem distribuição gratuita e esta edição pode ser baixada aqui. Números anteriores também estão disponíveis.
A edição, referente a abril de 2023, tem 164 páginas e destaca o trabalho do escritor e ilustrador paraibano Junior Misaki. Traz ainda contos de Iraci Marin, Roberto Schima, Ney Alencar, Maria Izelda Frizzo, Gilmar Duarte Rocha, Idicampos, Mirian Santiago e Mónica Palacios, além de entrevistas com artistas, poemas, crônicas, resenhas e artigos de assuntos variados.
A revista tem distribuição gratuita e esta edição pode ser baixada aqui. Números anteriores também estão disponíveis.