A assombração da Casa da Colina (The haunting of Hill House), Shirley Jackson, Tradução de Débora Landsberg. 240 páginas. Editora Companhia das Letras, selo Suma, São Paulo, 2018.
Muitas vezes, conhecemos um clássico não pela obra original, mas por suas inúmeras adaptações. Mas é claro que as adaptações, por não serem obrigatoriamente idênticas ao original, tomam liberdades, mudam contornos e até alteram completamente seu conteúdo. Na maior parte das vezes, as adaptações não fazem justiça ao original e as exceções são raras.
Não foi diferente com relação a este romance de Shirley Jackson (1916-1965), escritora norte-americana que viveu de maneira reclusa e morreu jovem, aos 48 anos, tendo escrito uma porção de contos e uns poucos livros, geralmente associados ao gênero do horror, dentre os quais seu quinto romance, A assombração da Casa da Colina (1959), é o mais destacado. Apesar disso, sua obra é muito respeitada, sendo frequentemente creditada como influência por autores como Richard Matheson (1926-2013), Stephen King e Neil Gaiman. Contudo, foi pouco publicada no Brasil; além deste, somente está disponível o romance Sempre vivemos no castelo (We have always lived in the castle, 1962), publicado pela editora Companhia da Letras em 2017. E isso é bastante sintomático. Jackson trabalha temas incômodos e delicados, entre os quais a condição da mulher na sociedade. Finalmente, a Companhia das Letras decidiu traduzir e publicar esses dois títulos em edições luxuosas de capas duras, a altura de seu significado.
Mas o teor feminista é apenas um dos muitos atributos de sua arte. Jackson é senhora de um estilo limpo e elegante, de descrições vívidas, personagens bem construídos e uma sensibilidade emocional que impacta o leitor.
A história é conhecida dos brasileiros nas adaptações cinematográficas Desafio do além (1963, Robert Wise) e A casa amaldiçoada (1999, Jan de Bont). O filme de Wise tem uma proposta mais cerebral, próxima à ficção científica e com um desfecho que tudo explica de forma mais ou menos satisfatória. O de Bont é um festival de efeitos especiais em que a história é o que menos importa. Nenhuma delas prepara o leitor para a experiência emocional que é mergulhar nas páginas da narrativa literária. A mais recente adaptação do romance é uma série exclusiva do servidor de streaming Netflix, que dizem ser bastante fiel ao romance, mas isso é algo que ainda preciso conferir.
Acompanhamos a história pelos olhos da jovem desempregada Eleanor, que se inscreve para um projeto de pesquisa acadêmica de um tal Montague, doutor em filosofia que pretende estudar uma casa incomum próxima a Hillsdale. Ela vê nisso a oportunidade de encontrar um rumo para sua vida, depois da longa doença e morte da mãe da qual cuidava, o que comprometeu as chances de uma carreira mais precoce. Ao ser selecionada, Eleanor empreende uma corajosa viagem dirigindo seu próprio automóvel, chega ao vilarejo em que se encontra a mansão e, numa breve parada para um café, percebe de imediato a animosidade dos habitantes locais com relação ao lugar. Quando avista a construção pela primeira vez, fica angustiada com a aparência externa da casa. E fica ainda mais alarmada com a recepção feroz que recebe dos empregados do lugar, um casal de zeladores muito rudes e intimidadores. Mas, ao adentrar a mansão, fica impressionada com o luxo das dependências, que beira ao extravagante. Apesar de tudo, a casa é aconchegante e confortável, mas de uma arquitetura que confunde os sentidos.
Suas preocupações reduzem-se com a chegada dos outros membros da equipe de pesquisas: Theodora, garota segura e expansiva com a qual Eleanor se identifica de imediato; Luke, jovem herdeiro da mansão que participa do grupo por insistência dos proprietários, e o próprio dr. Montague, que parece muito mais interessado em curtir o luxo da residência do que realmente realizar uma pesquisa séria.
Depois de alguns dias, período em que os jovens passam a se conhecer e dominar a confusa estrutura da casa, que tem peculiaridades como portas que se fecham sozinhas, armários que se auto-organizam e áreas em que a temperatura é radicalmente contrastante com o ambiente ao redor. Mas o mais assustador são os acontecimentos noturnos, que parecem ameaçar a vida dos hóspedes, mas que não deixam quaisquer rastros: a casa sempre se recompõe depois de cada evento, deixando em todos a impressão de que tudo não passou de alucinação.
As coisas complicam quando chegam dois novos hóspedes: a sra. Montague e seu motorista. Agora percebemos por que o dr. Montague não parecia tão interessado na pesquisa: a verdadeira pesquisadora é a sua autoritária esposa, uma mulher de personalidade forte e dominadora, que acredita piamente em espíritos desencarnados e quer fazer contato com eles para poder “libertá-los” de sua sina. O trabalho, enfim, começa. Mas a casa tem outros planos e Eleanor parece fazer parte deles. E quando uma casa escolhe alguém, é muito difícil negociar com ela.
A assombração da Casa da Colina é uma história apavorante, mas está longe de ser uma história de horror. Não há monstros, nem assassinos psicopatas. Não há perigos maiores do que aqueles que enfrentamos em qualquer outro lugar. O grande terror é mesmo a tensão psicológica de estar vinculado a uma situação da qual sabemos que precisamos nos afastar mas que, ao mesmo tempo, não queremos, por razões muitas vezes justificadas, mas que mesmo assim nos fazem mal. O destino da equipe de pesquisadores importa menos que o de Eleanor. A história que se conta aqui é a dela, e só a dela.
O final é surpreendente, sem ser um “final surpresa”, por contraditório que isso possa parecer. Talvez até escorra uma lágrima, mas não choramos por Eleanor. Choramos por nós mesmos, que ficamos na Casa da Colina.
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