Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha, Liudmila Petruchévskaia. 206 páginas. Tradução de Cecília Rosas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2018.
Uma das mais antigas reclamações dos leitores brasileiros de fc&f é a falta de novidades internacionais nos catálogos das editoras que trabalham com ficção fantástica no Brasil. Embora haja muita novidade no que se refere aos autores nacionais, entre os estrangeiros a regra é republicar o que está fora de catálogo ou publicar um novo título de um autor já consagrado. Vez ou outra, aparece um nome novo, já que as editoras brasileiras têm receio de investir em títulos que podem não ser comercialmente bem sucedidos, e os mais arriscados certamente são aqueles de autores que nunca foram publicados aqui. Por isso, é motivo de comemoração o lançamento de Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha, coletânea da escritora moscovita Liudmila Petruchévskaia, uma novidade absoluta.
Nascida em 1938, Liudmila é considerada a mais importante escritora russa viva, mas nem mesmo na Rússia ela é unanimidade, pois sua ficção não faz concessões, mas cutuca feridas e pisa nos calos sem piedade. Sua obra, proibida por muito tempo, só ganhou espaço com fim do regime comunista e chegou ao Brasil por influência de seu filho Fedor, um apaixonado pelo Brasil, que a acompanhou à edição de 2018 da FLIP, a convite da editora Companhia das Letras que lançou a coletânea com tradução de Cecília Rosas, diretamente do russo.
Uma dificuldade é citar o seu título original. Na edição brasileira, o título original está grafado em cirílico e não consegui encontrar um modo de reproduzi-lo. Para complicar ainda mais, a página oficial do livro no saite da Companhia das Letras dá como título original em inglês There once lived a girl who seduced her sister's husband, and he hanged himself: Love stories, que não se parece em nada com o título norte-americano There once lived a woman who tried to kill her neighbor's baby. E durma-se com um barulho desses.
Trata-se de um livro de pequeno volume, com apenas 206 páginas, mas de um vulto incomensurável por conta do estilo e dos temas abordados nos 21 contos divididos em quatro seções: "Contos dos eslavos do oeste", "Alegorias", Réquiens" e "Contos de fadas".
Alguns dos textos lembram os contos decadentistas franceses com traços de romantismo, em que as histórias trabalham com situações de morte, pós-morte ou quase-morte, na forma de pesadelos ou relatos, muitos em primeira pessoa, que têm o mesmo tipo de estética que encontramos nas obras surrealistas, ou seja, são situações muito reais e cotidianas, mas que estão eivadas de um estranhamento perturbador que não permite considerá-las realistas.
Não vou comentar todos aqui, é claro, pois vale muito a pena conhecê-los em primeira mão, mas destacarei alguns dos que mais me impressionaram. O conto que dá nome a antologia é o mais realista dentre todos os textos da seleção, mas a maior parte dela está identificada com a fantasia, como "O deus Posêidon", em que uma mulher visita a amiga em uma luxuosa mansão e descobre que seu marido é filho de um deus, ou "A mãe-repolho", em que uma mãe amorosa tenta desesperadamente criar a filha minúscula.
É claro que as histórias de horror são aquelas em que a situação de desconforto se potencializa. Como no primeiro texto da coletânea é "O abraço", em que um militar, depois de um sonho premonitório, desenterra o corpo da falecida esposa para recuperar a carteirinha do partido (deveria ser um documento muito importante na Rússia soviética) que acidentalmente havia caído no caixão, mas ele não obedece integralmente as instruções recebidas no sonho e isso causará consequências muito desagradáveis. Ou "O sobretudo preto", em que uma mulher se vê desorientada em uma cidade penumbrosa, na qual as pessoas têm uma ralação estranha com os fósforos. E "A história do relógio", que fecha a edição, no qual uma garotinha encontra um relógio que traz uma maldição: quem lhe dá corda uma vez, tem sua vida irremediavelmente ligada ao seu funcionamento: se o relógio parar, é morte certa.
Os textos de ficção científica também são bastante sombrios. Em "Higiene", acompanhamos a decadência física e moral de uma família isolada em seu apartamento enquanto uma virose letal dizima a população da cidade. E "A nova família Robinson", em que uma outra família tenta sobreviver ao frio, à fome e à violência de um verdadeiro apocalipse ambiental.
Duas coisas se destacam na obra de Liudmila: o protagonismo feminino, que predomina quase todos os textos, com uma reflexão profunda sobre a posição da mulher na relação com o esposo, com a família e com a sociedade, e a ausência de todos os protocolos que saturam a fc&f ocidental. Ainda que as histórias de Liudmila possam ser identificadas com este ou aquele gênero, está claro que não foram escritas com isso em mente, pois as situações de misturam sem qualquer regra estabelecida. Não há o clichê das infindáveis jornadas do herói embolando as narrativas, assim como nenhuma outra condição editorial imposta à construção dos relatos: tratam-se de criações pessoais sem qualquer modelo prévio, herdeiras de uma escola que nos parece completamente estranha.
É uma maravilha ler histórias fantásticas que não apelam para elfos, anões e magos agredindo-se mutuamente, zumbis devoradores de cérebros, astronautas com armas de raios combatendo alienígenas psicopatas e trans humanos com próteses computadorizadas lutando contra megacorporações do ciberespaço. Somente quando recebemos o frescor de uma literatura como a de Liudmila é que percebemos o quanto isso já saturou.
A leitura de Era uma vez a mulher que tentou matar o bebê da vizinha não é fácil, porque não é agradável. Não há entretenimento nela, mas um convite a reflexões sobre a vida e a morte individual e social. Para pensar o quanto, às vezes, nossas vidas podem ser tão mais fantásticas que qualquer ficção.
Vi entrevista com ela na GloboNews, durante a cobertura da Copa do Mundo. Figuraça. Pode não haver conexão, mas de repente a copa até que serviu pra alguma coisa... :-)
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